Este capítulo explora as origens da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), enfatizando a interação entre predisposição genética e fatores ambientais no seu desenvolvimento. Serão analisadas as duas vias ambientais mais comuns associadas ao surgimento de traços narcisistas patológicos: (1) a excessiva adulação da criança e (2) a negligência ou maus-tratos, incluindo a ausência de empatia parental e experiências recorrentes de vergonha e humilhação. Através das teorias de Heinz Kohut, Otto Kernberg e Alexander Lowen, serão explicados os mecanismos psicológicos que ligam essas experiências precoces ao desenvolvimento de um "falso self" e de estratégias maladaptativas de regulação emocional. Por fim, será discutido o papel da predisposição genética e a importância da herança familiar na vulnerabilidade para PPN, salientando que nem todas as crianças expostas a ambientes adversos desenvolvem a perturbação.
O desenvolvimento da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) resulta de uma combinação complexa entre fatores genéticos e ambientais. Embora experiências adversas na infância desempenhem um papel central, a literatura científica aponta que apenas algumas crianças expostas a esses contextos desenvolvem NPD, sugerindo uma predisposição genética e temperamental que modula o risco.
A compreensão da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) exige reconhecer que, em muitos casos, existe uma base biológica que predispõe o indivíduo ao desenvolvimento de traços narcisistas. Estudos com gémeos, particularmente aqueles que comparam gémeos monozigóticos (idênticos) e dizigóticos, têm sido fundamentais para desvendar este componente hereditário. A evidência sugere que cerca de 40% a 60% da variabilidade nos traços de personalidade narcisista pode ser atribuída a fatores genéticos (Livesley & Jang, 2008).
Isto não significa que exista um gene do narcisismo isolado, mas sim que determinadas combinações genéticas influenciam sistemas cerebrais relacionados com a regulação emocional, empatia e recompensa social. Por exemplo, variações nos sistemas dopaminérgicos e serotoninérgicos podem afetar a forma como a pessoa reage a estímulos de admiração, crítica ou rejeição. Um sistema de recompensa hipersensível à validação externa pode tornar o indivíduo mais propenso a procurar constantemente aprovação, reforçando padrões narcisistas.
O risco genético, contudo, raramente se expressa de forma isolada. Filhos de pais com PPN podem herdar não apenas vulnerabilidades biológicas, mas também crescer em contextos familiares permeados por dinâmicas relacionais típicas de personalidades narcisistas. Essa sobreposição entre herança genética e modelagem comportamental cria um terreno fértil para a perpetuação intergeracional da perturbação.
Importa sublinhar que predisposição não é destino. Existem inúmeros casos de crianças criadas por pais com traços narcisistas que desenvolvem personalidades empáticas e equilibradas. Isto demonstra que a expressão da vulnerabilidade genética é fortemente modulada por fatores de proteção, como a presença de outros cuidadores empáticos, redes de apoio social, experiências de vida reparadoras e traços temperamentais mais resilientes (Czarna et al., 2021). Deste modo, compreender a PPN implica sempre considerar o diálogo constante entre a biologia e o ambiente.
O ambiente no qual a criança cresce exerce um papel determinante na forma como a predisposição genética se manifesta. As experiências precoces moldam a organização interna do "self" e a forma como o indivíduo aprende a relacionar-se consigo próprio e com os outros. Dois padrões ambientais distintos, mas igualmente prejudiciais, têm sido amplamente identificados na literatura clínica como catalisadores do desenvolvimento de traços narcisistas patológicos: a adulação excessiva e a negligência ou abuso emocional.
Num extremo, encontramos contextos familiares onde a criança é constantemente celebrada, tratada como excecional, quase intocável. Não se trata de um amor saudável e incondicional, mas de um padrão em que os elogios são desproporcionais e frequentemente dissociados do comportamento real ou do esforço empreendido. Uma criança que recebe aplausos independentemente do mérito não desenvolve um sentido realista das suas capacidades ou limitações.
Ao longo do tempo, essa dinâmica promove a formação de uma autoimagem grandiosa, alimentada por mensagens repetidas de superioridade. Essa criança pode crescer a acreditar que é naturalmente mais importante ou merecedora do que os outros, tornando-se dependente de validação externa para sustentar a autoestima. Sem a experiência de frustrações moderadas e feedback realista, não aprende a regular internamente o seu valor pessoal.
Estudos de Brummelman et al. (2015) indicam que este padrão parental contribui para a formação de crenças implícitas de "direito" (entitlement), ou seja, a convicção de que a pessoa merece tratamento especial independentemente das circunstâncias. Estas crenças, quando consolidadas, tornam-se pilares da PPN, sustentando comportamentos exploradores e relações superficiais baseadas na utilidade e não na reciprocidade genuína.
No outro extremo do espectro ambiental, encontramos histórias de carência emocional. Aqui, a criança cresce sem sentir que as suas necessidades emocionais são reconhecidas ou validadas. Pais emocionalmente indisponíveis, críticos ou abusivos transmitem, de forma explícita ou implícita, a mensagem de que o valor da criança depende do seu desempenho, aparência ou utilidade para o adulto.
A ausência de empatia parental tem efeitos desastrosos. Quando a criança não encontra nos cuidadores figuras capazes de reconhecer e acolher as suas emoções, vê-se forçada a criar estratégias para sobreviver emocionalmente. Por vezes, isso significa adotar comportamentos hipercompetitivos, perfeccionistas ou manipuladores como forma de garantir algum nível de atenção e validação.
A literatura psicanalítica oferece diferentes perspectivas sobre este processo.
a) Teoria de Heinz Kohut: Falha de espelhamento empático
Segundo Kohut (1971), um desenvolvimento saudável do "self" exige que, nos primeiros anos, os pais funcionem como espelhos empáticos, refletindo de volta à criança a legitimidade das suas emoções e experiências. Este espelhamento permite que a criança se sinta compreendida e valorizada, integrando gradualmente uma autoimagem coesa.
Quando este processo falha, por exemplo, porque o pai ou a mãe é narcisista e incapaz de reconhecer as necessidades emocionais do filho, a criança desenvolve um self grandioso e mágico como defesa. Este self não é genuinamente seguro. Pelo contrário, depende de uma procura incessante por admiração e reconhecimento externos para evitar sentimentos esmagadores de vazio e insegurança.
b) Teoria de Otto Kernberg: Compartimentalização do self
Kernberg (1975) oferece outra lente interpretativa, destacando a dificuldade em integrar representações positivas e negativas de si mesmo e dos outros. Em lares narcisistas, o afeto parental é frequentemente condicional: a criança é valorizada apenas quando cumpre determinadas expectativas ou exibe habilidades específicas, como bom desempenho escolar, aparência física ou talento artístico.
Neste contexto, a criança aprende a compartimentalizar o seu valor, associando-o apenas a áreas onde obtém reconhecimento. O resultado é uma oscilação constante entre períodos de grandiosidade quando cumpre ou supera as expectativas, e estados de profunda desvalorização quando falha. Essa instabilidade torna-se um núcleo persistente da PPN na vida adulta.
c) Teoria de Alexander Lowen: Vergonha e humilhação
Lowen (1983) acrescenta que, em ambientes dominados por pais controladores ou hostis, a vergonha crónica e a humilhação tornam-se experiências formadoras. Incapaz de enfrentar de forma direta a dor de se sentir inadequada, a criança constrói uma persona de superioridade, poder e controlo. Esta máscara serve para manter os outros a uma distância segura e evitar novas experiências de humilhação, mas também dificulta a intimidade emocional e a confiança nas relações.
Nenhum dos fatores descritos, predisposição genética ou experiências ambientais, é suficiente por si só para explicar o desenvolvimento da PPN. O que a investigação demonstra de forma consistente é que a perturbação encontra terreno mais fértil para se desenvolver na interação entre vulnerabilidade biológica e condições ambientais adversas.
Uma criança com sensibilidade temperamental elevada, por exemplo, pode reagir de forma mais intensa à ausência de empatia ou a críticas repetidas. Se, além disso, herdar de um progenitor traços narcisistas, a probabilidade de desenvolver padrões disfuncionais de autoestima e regulação emocional aumenta substancialmente.
No entanto, a história não é invariavelmente trágica. Estudos longitudinais demonstram que a presença de pelo menos uma figura cuidadora empática, mesmo que não seja o pai ou a mãe, pode exercer um efeito protetor considerável. Professores, familiares próximos ou mentores podem fornecer experiências de validação e segurança emocional que contrabalançam os efeitos prejudiciais do lar disfuncional (Otway & Vignoles, 2006).
O reconhecimento desta interação entre herança e ambiente sublinha a importância das intervenções precoces. Quanto mais cedo a criança tiver acesso a modelos relacionais saudáveis e experiências consistentes de empatia, maior a probabilidade de mitigar os riscos e promover um desenvolvimento psicológico equilibrado.
Elisa nasceu num verão português particularmente quente, num pequeno bairro com ruas arborizadas e casas de pedra antiga. Cresceu orfã de mãe desde muito cedo e, por isso, os primeiros anos da sua vida foram marcados por uma presença dupla que lhe imprimiria a direção dos afetos e das fragilidades futuras: um avô paterno exigente, carismático e profundamente manipulador, e um pai ausente emocionalmente mas hábil em projetar uma imagem de homem bem-sucedido e admirado na comunidade. Esses dois homens narcisistas moldaram-na, sem intenção aparente, agindo como campo privilegiado da transmissão intergeracional do narcisismo. A predisposição genética encontrou assim terreno fértil nas dinâmicas comportamentais do núcleo familiar.
O avô de Elisa, António, era um homem de presença marcante. No bairro, era reconhecido como "um senhor nobre", sempre impecavelmente vestido, dono de histórias cativantes e um sorriso que iluminava reuniões familiares. Era, no fundo, o arquétipo do narcisista grandioso, cuja validação dependia da aura que conseguia incutir nos outros. Porém, no íntimo do lar, era capaz de abandonar Elisa num instante quando esta apenas esperava um afago paternal. Criticava-a sem pudor, insinuando que deveria ser melhor, esforçar-se mais na escola ou falar com mais elegância. Esses comentários, velados como incentivo, penetravam-lhe a alma com uma sensação de inadequação que, ao longo dos anos, se sedimentaria no seu self infantil como uma pedra silenciosa e pesada.
O pai de Elisa, por seu turno, era uma presença ainda mais evasiva. Passageiro entre viagens de trabalho e eventos sociais que lhe realçavam a imagem de chefe exemplar e amigo incansável, deixava em casa um vazio emocional difícil de descodificar para uma criança pequena. Quando se lembrava de ela existir, distribuía elogios cuja grandiosidade lembrava a adulação excessiva: "És a pessoa mais talentosa que conheci", "Chegarás muito longe, meu amor". Mas bastava Elisa hesitar num estudo ou demonstrar frustração para que surgisse uma reprovação mascarada de preocupação: "Por que falhaste agora?", dizia, com um tom que misturava afeto e acusação. Nessa tensão oscilava a sua presença: pedindo adoração, exigindo perfeição, mas sempre revestida de um manto que parecia benigno.
A combinação entre o rigor frio do avô e a validação condicional do pai instalou em Elisa uma fricção permanente entre dois autoconceitos. De um lado, cultivava o ideal narcisista de superioridade e dedicação constante, reflexo das vozes familiares que exaltavam o seu melhor só quando ela se tornava admirável. De outro, cresceu com a sensação de nunca ser suficiente, de precisar provar-se sempre novamente. Esta cisão entre grandiosidade e inadequação foi descrita por Kernberg como uma interferência na construção de um self coeso, levando à compartimentalização, e tornou-se o centro silencioso da sua personalidade em desenvolvimento.
Mais profundamente do que simples comportamentos ancestrais, Elisa herdou um terreno genético vulnerável: sistemas de regulação emocional frágeis, uma tendência inerente para procurar validação externa e uma sensibilidade aumentada à crítica. A literatura indica que entre 40 % a 60 % da variabilidade nos traços narcisistas pode ser explicada por fatores genéticos relacionados com circuitos dopaminérgicos e serotonérgicos. No caso de Elisa, essa predisposição encontrou uma modelagem ambiental eloquente e persistente.
A educação de Elisa, embora envolta em cuidados materiais e estímulo à excelência, nunca lhe ofereceu o espelhamento empático necessário para integrar uma autoimagem estável. Kohut ensinava que a criança precisa de ser refletida nas suas emoções e vivências para construir um self seguro. No entanto, Elisa aprendeu que só era visível quando correspondia à idealização dos adultos, e invisível quando os seus sentimentos não eram performativos. O avô e o pai não validavam a Elisa com base na sua humanidade, mas na utilidade simbólica que ela trazia à família.
Quando Elisa adoeceu na adolescência com uma depressão que se expressou em isolamento social e perfeccionismo obsessivo nos estudos, os progenitores reagiram com perplexidade. O pai atribuía-lhe tendência para dramatização, enquanto o avô recomendava mais disciplina. Nenhuma das figuras apresentou empatia. Foi numa visita ocasional a um vizinha professora de psicologia que Elisa sentiu pela primeira vez ser validada como pessoa complexa: ouviu pela voz dela que sentia medo e que isso era legítimo. Essa experiência foi, apesar de informal, a primeira experiência reparadora de espelhamento empático na sua vida.
Na vida adulta, o comportamento narcisista emergiu com clareza: Elisa tornou-se uma profissional extremamente dedicada e reconhecida na sua área, excitada pelos elogios dos outros mas incapaz de aceitar críticas, retraindo-se com sentimentos de humilhação e invalidando-se interiormente. Instaurou uma persona de sucesso quase impecável, mas internamente vivia presa àquela dúvida infantil: significativo somente enquanto excelente. As suas relações pessoais tornaram-se distantes, afetivamente calculadas, porque intimidade exigia demais do self frágil.
Este caso exemplifica a etiologia da PPN como resultado da interação entre vulnerabilidade biológica e contexto familiar disfuncional. Elisa não é diferente daquilo que a literatura descreve como típico: uma criança exposta a pais narcisistas que, mesmo sem intenção maligna, falharam em oferecer validação emocional consistente, e cujo legado comportamental e genético se perpetuou na sua personalidade adulta. Kernberg, Kohut e Lowen foram apelidados de visionários por terem conceptualizado aspetos desta dinâmica: a compartimentalização do self, o falso self necessário à sobrevivência emocional, o poder protetor da vergonha transformada em grandiosidade defensiva.
Na ligação entre as teorias e a vivência de Elisa, fica claro que a emergência da PPN é quase inevitável quando há uma predisposição genética que é alimentada por dinâmicas familiares de adulação condicional, ausência de empatia e exigência de performance emocional. O reconhecimento desta trajetória não pretende culpabilizar, mas inspirar intervenção. Mostra ainda que figuras empáticas podem, mesmo tardiamente, intervir como fatores reparadores, uma esperança que Elisa agora carrega consigo, num equilíbrio frágil entre reconstrução e autenticidade.
Brummelman, E., Thomaes, S., Nelemans, S. A., Orobio de Castro, B., Overbeek, G., & Bushman, B. J. (2015). Origins of narcissism in children. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 112(12), 3659–3662. https://doi.org/10.1073/pnas.1420870112
Durvasula, R. S. (2019). Don’t You Know Who I Am? How to stay sane in an era of narcissism, entitlement, and incivility. Post Hill Press.
MedCircle. (2022, May 16). MasterClass: Narcissism - What you MUST know [Vídeo]. YouTube.
https://www.youtube.com/watch?v=V87G95bGTTk
Kernberg, O. F. (1975). Borderline conditions and pathological narcissism. Jason Aronson.
Kohut, H. (1971). The analysis of the self: A systematic approach to the psychoanalytic treatment of narcissistic personality disorders. International Universities Press.
Livesley, W. J., & Jang, K. L. (2008). The behavioral genetics of personality disorder. Annual Review of Clinical Psychology, 4, 247–274. https://doi.org/10.1146/annurev.clinpsy.4.022007.141203
Lowen, A. (1983). Narcissism: Denial of the true self. Simon & Schuster.
Otway, L. J., & Vignoles, V. L. (2006). Narcissism and childhood recollections: A quantitative test of psychoanalytic predictions. Personality and Social Psychology Bulletin, 32(1), 104–116. http://dx.doi.org/10.1177/0146167205279907
Saraiva, C. B., & Cerejeira, J. (2024). Psiquiatria fundamental (2nd ed.). Lidel.
The Diary Of A CEO. (2024, February 29). The narcissism doctor: "1 in 6 people are narcissists!" How to spot them & can they change? [Video]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=hTkKXDvSJvo
Weinberg, I., & Ronningstam, E. (2022). Narcissistic personality disorder: Progress in understanding and treatment. Focus, 20(4), 368–377. https://doi.org/10.1176/appi.focus.20220052