O impacto de uma relação com um indivíduo com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) transcende o período da convivência, deixando marcas profundas que se podem prolongar por anos ou mesmo para toda a vida. As vítimas frequentemente experimentam um conjunto de sintomas psicológicos, emocionais, sociais e físicos, decorrentes de abuso emocional crónico, abuso financeiro, manipulação, desvalorização e instabilidade relacional.
O presente capítulo explora o efeito do narcisismo em parceiros/as românticos/as, filhos de pais narcisistas, colegas e amigos. Inclui ainda o impacto psicológico, incluindo PTSD/Complex PTSD, depressão, ansiedade, baixa autoestima, trauma bonding e desregulação emocional.
Também serão analisados os mecanismos que mantêm as vítimas presas ao ciclo abusivo, como a dissonância cognitiva e o reforço intermitente. Estes são factores que dificultam o reconhecimento da situação e a tomada de decisão para sair.
Relacionar-se intimamente com um indivíduo com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) é entrar num terreno instável e enganador, onde a perceção da realidade é cuidadosamente distorcida e a autoestima é minada de forma contínua, ora por gestos aparentemente inofensivos, ora por ataques frontais e cruéis. Embora cada narcisista tenha o seu estilo e arsenal de estratégias, existe um padrão reconhecível: a relação segue uma trajetória de intensa idealização, seguida de desvalorização, depois descarte e, por vezes, hoovering.
Esse ciclo não é acidental. É calculado, sustentado por mecanismos de manipulação emocional como gaslighting, DARVO, triangulação, reforço intermitente e até campanhas de assassinato de caráter. Tudo isto opera num pano de fundo onde a vítima é simultaneamente confundida e seduzida, presa num laço de dependência emocional (trauma bonding) que torna a saída dolorosa e, muitas vezes, tardia.
No início, o narcisista constrói a imagem do parceiro perfeito. É atento, disponível, sedutor e, sobretudo, parece ter uma afinidade extraordinária com a vítima. Esta impressão de alma gémea não é espontânea, nasce de um processo calculado de espelhamento (mirroring), no qual o narcisista reflete exatamente os gostos, opiniões, valores e experiências da vítima, criando uma sensação de ligação profunda e mágica.
Segue-se o love bombing: declarações prematuras de amor, promessas irrealistas sobre o futuro, gestos românticos grandiosos e uma disponibilidade total para estar presente. O narcisista demonstra uma espécie de empatia cognitiva, não sente genuinamente as emoções, mas compreende-as intelectualmente e sabe exatamente como reproduzi-las para manipular.
Durante esta fase, tudo é pensado para baixar as defesas e acelerar o investimento emocional da vítima. A atenção é constante, as mensagens são frequentes e há um fascínio teatralizado por cada detalhe da vida do parceiro. Pequenas mentiras já podem surgir, não necessariamente para encobrir algo grave, mas para reforçar a imagem idealizada: histórias exageradas sobre feitos passados, conquistas profissionais inflacionadas, ex-parceiros descritos como obsessivos, controladores ou cruéis, sempre posicionando-se como vítima ou herói.
Logo que a vítima está emocionalmente comprometida, a narrativa muda. Pequenas críticas começam a infiltrar-se, quase impercetíveis no início, mas que lentamente corroem a autoestima. O narcisista pode lançar comentários disfarçados de preocupação ("Só disse isso porque quero o melhor para ti") ou de humor ("Estás a ficar mesmo esquecido(a), não é?"). O tom é calculado: suficiente para magoar, mas subtil o bastante para que, se confrontado, ele possa acusar a vítima de ser demasiado sensível.
Surge então o gaslighting. O narcisista nega acontecimentos óbvios, distorce conversas passadas e planta dúvidas sobre a memória e perceção do parceiro. A vítima começa a questionar-se constantemente: "Será que estou a exagerar? Será que me lembro mal?" enfraquecendo a confiança em si própria.
A par disso, o narcisista utiliza o DARVO: quando acusado ou confrontado, o narcisista nega ("Nunca disse isso"), ataca ("Estás a inventar porque queres discutir") e inverte o papel de vítima e agressor ("Estás sempre a magoar-me com essas acusações"). Este mecanismo mantém a vítima na defensiva, confusa e, muitas vezes, a pedir desculpa por ter tentado defender-se.
O reforço intermitente entra em ação: períodos de frieza ou hostilidade são seguidos por repentinos momentos de afeto ou nostalgia, reativando a esperança da vítima de recuperar o início da relação. Esta alternância cria um padrão viciante, semelhante ao jogo de azar, em que a recompensa emocional é rara mas intensamente desejada.
No dia a dia, começam a surgir ataques de raiva desproporcionados, decisões unilaterais que afetam a vida do casal, e manipulação sexual, usando intimidade como moeda de troca ou como punição. O narcisista também pode iniciar comportamentos de flirt público, ostensivos ou subtis, para provocar insegurança e instigar triangulação, trazendo terceiros reais ou imaginários como rivais emocionais.
Quando a utilidade ou novidade da vítima diminui, ou quando surge uma nova fonte de suprimento, inicia-se o descarte. Pode ser súbito, um corte frio, sem explicações, ou gradual, com afastamento emocional, menos contacto e aumento de críticas. Muitas vezes, já existe uma nova relação preparada, e a apresentação pública desta serve como humilhação e demonstração de poder.
Durante o descarte, o narcisista reescreve a história da relação. Tudo o que recebeu da vítima é minimizado ou negado ("Fizeste porque quiseste, nunca te pedi nada"), e a culpa de todos os problemas é atribuída exclusivamente ao parceiro.
Simultaneamente, ocorre compartimentalização: a imagem pública do narcisista, charmosa, sociável, impecável, contrasta violentamente com a frieza e crueldade demonstrada em privado. Essa contradição confunde terceiros e dificulta que a vítima seja acreditada.
Aqui, é frequente o início de campanhas de assassinato de caráter. Informações pessoais, distorcidas ou tiradas do contexto, são partilhadas com conhecidos, familiares ou colegas. Os chamados flying monkeys, pessoas manipuladas pelo narcisista, passam a confrontar a vítima, defendendo a narrativa do abusador e perpetuando o seu isolamento.
Depois da rutura, o narcisista pode desaparecer completamente (silent treatment prolongado), deixando a vítima num vazio que, paradoxalmente, alimenta o desejo de contacto. Ou pode iniciar o hoovering: reaparecimentos repentinos, com mensagens nostálgicas ("Sonhei contigo esta noite"), apelos emocionais ("Ninguém me entende como tu") ou pedidos de ajuda. Este regresso não é motivado por amor ou arrependimento genuíno, mas pela necessidade de reafirmar controlo, reativar o suprimento emocional ou obter benefícios concretos. Caso a vítima resista, o narcisista pode alternar entre sedução e hostilidade, intensificando campanhas de difamação.
Muitas vezes, durante esta fase, ele mantém várias fontes em paralelo, ex-parceiros, novos relacionamentos, amizades utilitárias, cada uma num compartimento próprio, sem conhecimento das outras. Este padrão de compartimentalização garante que, se uma fonte falhar, outra possa ser acionada.
As consequências são devastadoras. A autoestima da vítima é reduzida até ao ponto em que ela se vê apenas através do olhar crítico do narcisista. A confiança em si própria desaparece, e tarefas simples tornam-se fonte de ansiedade pelo medo de errar.
A dependência emocional criada pelo trauma bonding mantém a vítima ligada, mesmo depois de reconhecer o abuso. O isolamento social, provocado por anos de manipulação coadjuvada pelos flying monkeys, dificulta o acesso a redes de apoio. No plano psicológico, é comum surgirem sintomas de PTSD complexo: hipervigilância, pesadelos, flashbacks emocionais e dificuldades para confiar novamente.
A nível prático, não é raro que a vítima saia financeiramente arruinada, com dívidas, bens perdidos ou oportunidades profissionais comprometidas. A perceção do que constitui uma relação saudável fica distorcida, tornando os relacionamentos futuros desafiadores e carregados de insegurança.
A recuperação exige tempo, terapia especializada e reconstrução gradual da identidade. Mesmo longe fisicamente, muitas vítimas continuam a ouvir o eco das críticas e manipulações nas suas próprias decisões. A cicatrização é possível, mas requer consciência, paciência e apoio consistente, porque o abuso emocional não termina no momento da separação.
Gabriel conheceu Manuela numa conferência profissional. Ele, um arquiteto respeitado, mas de temperamento calmo e reservado. Ela, uma consultora de imagem com uma presença magnética, sempre rodeada de pessoas, risos e olhares curiosos. Desde o primeiro momento, Manuela parecia brilhar, não apenas pela aparência cuidada, mas pela forma como olhava para Gabriel como se ele fosse a pessoa mais interessante da sala. Naquele instante, Gabriel sentiu-se visto, valorizado e, de alguma forma, escolhido. Era como se Manuela tivesse aberto uma porta para um mundo vibrante onde ele, finalmente, poderia ser mais do que o discreto profissional que sempre fora.
As primeiras semanas foram um turbilhão. Manuela ligava-lhe a toda a hora, enviava mensagens carinhosas e inesperadas, elogiava-o diante de amigos e familiares, dizia que nunca tinha conhecido alguém tão inteligente, sensível e íntegro. Gabriel, que sempre fora contido nas demonstrações de afeto, sentiu-se envolvido por uma energia quase viciante. As atenções de Manuela eram intensas, mas também envolventes, como se ela o estivesse a colocar no centro de uma narrativa especial.
No entanto, aos poucos, pequenas fissuras começaram a surgir. Um dia, durante um jantar, Manuela comentou casualmente que Gabriel era "maravilhoso, mas demasiado ingénuo". Noutra ocasião, criticou-lhe a escolha da gravata antes de uma reunião importante, dizendo que não combinava com a imagem que ele precisava de projetar para ter sucesso de verdade. Gabriel riu, desconfortável, mas não deu grande importância. Afinal, ela dizia que queria apenas o melhor para ele.
Com o tempo, estas observações tornaram-se mais frequentes e mais incisivas. Manuela parecia alternar entre um encanto radiante e uma frieza cortante. Havia dias em que Gabriel acordava com uma mensagem apaixonada e convites inesperados para escapadelas. Noutros, ela passava horas ou dias sem responder, deixando-o a interrogar-se sobre o que teria feito de errado. Quando ele, hesitante, perguntava se algo a incomodava, Manuela suspirava e respondia que estava cansada das inseguranças dele ou que não tinha paciência para lidar com dramas inventados.
A cada afastamento, Gabriel esforçava-se mais para recuperar a versão luminosa de Manuela que conhecera no início. Tentava agradar-lhe em tudo: mudava o estilo de roupa, aceitava convites para eventos que o deixavam exausto, adaptava a agenda profissional para se encaixar nos planos dela. Mas a estabilidade nunca durava. Quando ele conseguia provocar um sorriso ou um gesto de afeto, este vinha sempre acompanhado de uma nova exigência ou de um comentário que minava a sua confiança.
Manuela tinha também um talento especial para inverter as situações. Se Gabriel expressava desconforto por algo que ela tivesse dito ou feito, ela respondia com frases como: "Estás a distorcer as coisas outra vez" ou "Estás demasiado sensível, eu estava a brincar". Este padrão deixou-o progressivamente inseguro quanto à sua própria perceção da realidade. Começou a duvidar de si mesmo, a pedir desculpa por reações legítimas e a evitar conversas que pudessem gerar conflito.
A presença de Manuela na vida de Gabriel tornou-se dominante. Ela tinha opinião sobre tudo: as amizades dele, os projetos que devia aceitar, até a forma como devia interagir com a família. Com o tempo, Gabriel foi afastando-se de alguns amigos, "por não terem nada a acrescentar", como ela dizia, e começou a sentir-se isolado, dependente da aprovação dela para se sentir válido.
Apesar de tudo, havia momentos em que Manuela voltava a ser encantadora. Nessas fases, enchia-o de elogios, fazia planos de futuro e criava um ambiente quase idílico. Gabriel vivia para esses períodos, acreditando que, esforçando-se o suficiente, poderia manter aquele equilíbrio. Mas cedo percebeu que esses momentos vinham sempre após uma fase particularmente dura de críticas e distanciamento, como se fossem recompensas calculadas para mantê-lo ligado.
A pressão começou a afetar o trabalho de Gabriel. Tornou-se mais hesitante nas decisões, receoso de cometer erros. Colegas notaram a sua falta de concentração, e ele começou a faltar a compromissos sociais para evitar discussões com Manuela. O sono tornou-se irregular, e as dores de cabeça constantes.
O ponto de rutura veio numa noite em que, após um jantar com colegas de Gabriel, Manuela acusou-o de ter dado demasiada atenção a uma arquiteta presente no evento. Sem lhe dar espaço para responder, lançou uma série de insultos e críticas, dizendo que ele nunca seria suficientemente homem para lidar com uma mulher como ela. Gabriel, exausto e emocionalmente drenado, tentou explicar que não havia fundamento para a acusação, mas cada palavra sua parecia alimentar mais a fúria dela.
Nos dias seguintes, Manuela manteve um silêncio glacial. Quando finalmente voltou a falar com ele, foi para dizer que talvez fosse melhor fazer uma pausa para que ele pensasse sobre o que realmente queria. Gabriel, dilacerado, percebeu que estava preso num ciclo que já não controlava: cada afastamento dela deixava-o em ansiedade e cada retorno trazia um alívio temporário, mas que logo voltava a desmoronar.
Foi nesse momento que, por acaso, encontrou um artigo sobre Perturbação de Personalidade Narcisista. À medida que lia sobre o ciclo de idealização, desvalorização e descarte, sobre o gaslighting e o reforço intermitente, começou a sentir um peso sair-lhe dos ombros. Pela primeira vez em muito tempo, percebeu que não estava a perder o juízo: havia um padrão claro no comportamento de Manuela.
Ainda levou semanas até reunir coragem para terminar a relação. Quando o fez, Manuela reagiu com uma mistura de desprezo e vitimização, acusando-o de ser ingrato e fraco. Gabriel resistiu à tentação de justificar-se, limitando-se a dizer que precisava de recuperar a sua vida.
O processo de reconstrução não foi fácil. Durante meses, lutou contra impulsos de contactá-la, sonhava com os momentos bons e questionava se tinha exagerado. Mas, com apoio terapêutico e tempo, começou a reconhecer que os momentos bons eram parte de um mecanismo de controlo. Hoje, Gabriel ainda sente as marcas da relação, mas aprendeu a identificar comportamentos semelhantes e a proteger-se. Sobretudo, compreendeu que educar-se sobre o narcisismo não só lhe devolveu a clareza, como lhe deu as ferramentas para não voltar a cair numa teia tão destrutiva.
Crescer com um progenitor com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) é viver numa realidade onde as leis do afeto e da segurança mudam constantemente. O que para muitas crianças é dado por adquirido como um lar sinónimo de refúgio e amor incondicional, transforma-se, para estas, num campo minado onde cada passo pode desencadear aprovação efusiva ou humilhação silenciosa. A previsibilidade, que é o alicerce da segurança emocional na infância, desaparece. No seu lugar instala-se um jogo cruel de regras invisíveis, onde o afeto é condicional e a validação só chega quando a criança se molda às necessidades e humores do progenitor.
No seio desta dinâmica, a criança não é reconhecida como um indivíduo com sentimentos próprios, mas como uma extensão da personalidade do pai ou da mãe narcisista. Tudo o que sente, pensa ou deseja é filtrado pela lente do que é útil ou conveniente para esse adulto. Se é obediente e reflete a imagem idealizada que o progenitor quer mostrar ao mundo, pode ser tratada como um troféu vivo, uma prova da sua suposta competência parental. No entanto, esse lugar de filho exemplar é frágil, sustentado apenas pela capacidade de cumprir expectativas arbitrárias. Basta uma discordância, um deslize ou simplesmente uma mudança no humor do progenitor para que o orgulho se transforme em desprezo. Como os filhos de pais narcisistas raramente são vistos como indivíduos com necessidades próprias, são-lhes atribuídos papéis funcionais: a) Filho dourado (golden child): elogiado e idealizado, mas apenas enquanto corresponde às expectativas do progenitor. Pode ser usado como prova da competência parental. b) Bode expiatório (scapegoat): alvo de críticas, culpas e humilhações, independentemente de comportamentos ou resultados. c) Filho invisível: ignorado, negligenciado emocionalmente e muitas vezes fisicamente. Estes papéis podem alternar, criando confusão e insegurança constante.
Quando apenas um dos pais é narcisista, a situação pode assumir contornos diferentes. O progenitor não narcisista pode tentar compensar, oferecendo à criança um espaço de segurança emocional e um contraponto saudável. Contudo, mesmo nesse cenário, o poder de manipulação do narcisista tende a infiltrar-se, criando tensão entre os pais e colocando a criança no centro de conflitos de lealdade. A criança pode sentir-se dividida: num momento é valorizada por corresponder às exigências do progenitor narcisista, e, no outro, é reconfortada pelo progenitor saudável, que, no entanto, pode também ficar exausto por tentar neutralizar o impacto do abuso emocional. Quando, pelo contrário, ambos os pais têm traços narcisistas, a criança perde qualquer porto seguro. As regras contraditórias duplicam-se, e não há espaço para a validação emocional genuína uma vez que cada progenitor disputa a lealdade da criança, não para a proteger, mas para a usar como reforço do próprio ego.
No caso de crianças criadas apenas por um pai ou mãe narcisista a experiência pode ser ainda mais sufocante. Sem testemunhar um modelo alternativo de afeto saudável no lar, a criança cresce sem referências sobre o que é amor incondicional ou empatia genuína. Aprende desde cedo que a sua sobrevivência emocional depende de prever e gerir as necessidades do adulto, numa inversão de papéis onde ela própria se torna o cuidador emocional do progenitor. Este processo, conhecido como parentificação, destrói gradualmente a capacidade da criança de reconhecer e atender às suas próprias necessidades.
O lar narcisista é, muitas vezes, um palco de projeções. O progenitor transfere para a criança as inseguranças, frustrações e falhas que não consegue admitir em si próprio. Se sente inveja, pode criticar a aparência ou desvalorizar conquistas da criança, se sente insegurança, pode rotular o filho como fraco ou incapaz, independentemente das evidências em contrário. Conflitos banais rapidamente se transformam em ataques de carácter, e qualquer tentativa da criança de se defender é interpretada como desafio ou falta de respeito. A distorção da realidade é constante: episódios dolorosos são reescritos pelo progenitor, que se apresenta como vítima e atribui à criança a culpa pelo seu mau humor ou pelas explosões emocionais.
Outro elemento marcante é a manipulação através da comparação. O progenitor narcisista cria rivalidade entre irmãos, primos ou colegas, insinuando que a criança nunca é tão boa como o outro. Estes comentários, aparentemente inocentes, instalam um sentimento crónico de inadequação e desencadeiam uma busca incessante por aprovação. Paradoxalmente, quando a criança se destaca, esse sucesso pode ser recebido com indiferença ou até com hostilidade, especialmente se for percebido como uma ameaça à superioridade do progenitor.
A alternância entre momentos de afeto e episódios de humilhação cria um vínculo traumático. O cérebro da criança, ansioso por recuperar o calor momentâneo do cuidado, aprende a aceitar a crueldade como preço inevitável pelo afeto. Este ciclo reforça-se na idade adulta, quando a vítima, sem perceber, procura relações que recriam essa dinâmica, parceiros que alternam charme e abuso, amigos que valorizam apenas quando há utilidade, chefes que manipulam através de culpa ou medo.
As consequências atravessam décadas. Muitos adultos que cresceram sob a influência de um progenitor narcisista carregam uma autoestima fragilizada, dificuldade em estabelecer e manter limites, e uma tendência para se autoanular em relações para evitar rejeição. Alguns desenvolvem uma hipersensibilidade à crítica, reagindo com ansiedade intensa a qualquer sinal de desaprovação. Outros seguem o caminho oposto, dissociando-se emocionalmente para não sentir a dor. Um sentimento difuso de culpa, mesmo em situações onde nada fizeram de errado, acompanha-os, alimentado por anos de acusações injustas e inversões de responsabilidade.
A dependência emocional e até financeira é muitas vezes prolongada pelo progenitor narcisista na idade adulta do filho. A chantagem emocional é uma ferramenta recorrente. Frases como "Depois de tudo o que fiz por ti" ou "Se me deixares, vais destruir-me" são usadas para impedir a independência. Este controlo pode estender-se às escolhas mais íntimas, desde a carreira até aos relacionamentos amorosos, sendo frequentemente disfarçado como preocupação ou conselho.
Apesar da profundidade do impacto, é possível quebrar o ciclo. O reconhecimento do padrão é o ponto de viragem. Muitos só o conseguem ao entrar em contacto com histórias semelhantes ou através da intervenção de terapeutas especializados. A reconstrução de uma identidade própria implica reaprender a validar as próprias emoções, estabelecer limites claros e procurar redes de apoio fora do contexto abusivo. Este caminho, embora desafiante, abre espaço para compreender que o amor saudável não é condicionado, não humilha e não exige a anulação do próprio ser para ser mantido.
Gabriel cresceu numa casa grande, mas fria. Não fria pela temperatura, mas pelo ar pesado que pairava sempre que a mãe, Helena, estava presente. À primeira vista, Helena era encantadora: elegante, sempre com um sorriso ensaiado, atenta à forma como se apresentava aos outros. Os vizinhos viam nela uma mãe dedicada e elogiavam frequentemente a educação exemplar do filho. Mas, atrás das portas fechadas, o que Gabriel conhecia era bem diferente.
Desde pequeno, Gabriel percebeu que o afeto da mãe não era incondicional. Quando tirava boas notas, ganhava abraços, fotografias para mostrar às amigas e até pequenas recompensas. Mas se cometia um erro, se trazia um teste com nota baixa ou esquecia-se de arrumar o quarto, o olhar dela tornava-se frio e distante. Por vezes, o silêncio estendia-se por dias. Noutras, as palavras vinham carregadas de desprezo, lembrando-o de que estava a desapontar a família ou que assim nunca seria ninguém na vida.
Helena alternava entre papéis para o filho. Houve momentos em que o tratou como o orgulho da família, exibindo-o como troféu em reuniões sociais, elogiando o seu talento no desporto ou a sua inteligência. Mas, sem aviso, transformava-o no bode expiatório. Se estava de mau humor, se algo corria mal no trabalho ou com amigos, Gabriel tornava-se o alvo perfeito para descarregar frustrações. Chamava-lhe preguiçoso, ingrato, exagerado. Dizia que não sabia o "que tinha feito para merecer um filho tão insensível".
Outras vezes, Gabriel sentia-se invisível. Podia passar o dia inteiro em casa sem ouvir uma palavra dirigida a si, como se a sua presença fosse irrelevante. Nessas alturas, era como se a mãe nem se lembrasse que ele existia, até precisar dele para alguma tarefa ou para mostrar aos outros a sua "boa educação".
Helena tinha uma habilidade especial para inverter qualquer situação. Se Gabriel tentava explicar que algo a magoara, rapidamente a conversa se tornava sobre como ele a estava a atacar ou a desrespeitar. Qualquer tentativa de expressar tristeza era ridicularizada como dramatização, e a raiva era considerada rebeldia. Aprendeu cedo a engolir sentimentos, a sorrir mesmo quando queria chorar, a calar-se para evitar conflitos.
Comparações eram constantes. Helena falava do filho da amiga, que já ajudava nos negócios do pai, ou do primo mais novo, que "nunca dava trabalho". Dizia que Gabriel devia seguir esses exemplos, sem se importar com o impacto que tais comentários tinham. Cada comparação deixava nele uma ferida invisível e uma sensação de nunca ser suficiente.
O afeto era distribuído como quem dá migalhas a um pássaro: às vezes generoso, noutras cruelmente escasso. Gabriel nunca sabia se iria encontrar um sorriso ou uma crítica quando chegasse a casa. Esse padrão criou nele uma procura constante por aprovação. Passava horas a estudar, a arrumar, a tentar adivinhar o que agradaria à mãe, mesmo que isso significasse abdicar do que queria para si.
À medida que crescia, Gabriel começou a sentir os efeitos dessa educação. A autoestima era frágil, os limites com os outros quase inexistentes. No liceu, permitia que colegas se aproveitassem dele, convencido de que, se fosse prestável o suficiente, finalmente seria aceite. Mais tarde, nos primeiros relacionamentos amorosos, atraía parceiros críticos ou controladores, dinâmicas que, de forma inconsciente, lhe eram familiares.
Quando expressava uma opinião ou dizia não, sentia um peso de culpa, como se estivesse a cometer uma traição. A voz da mãe ecoava na mente: "Depois de tudo o que fiz por ti, é assim que me agradeces?" Mesmo adulto, já a viver fora, Helena encontrava formas subtis de manter o controlo: críticas veladas às escolhas de carreira, insinuações de que a namorada não era suficientemente boa, lembranças de sacrifícios feitos por amor de mãe.
O momento de viragem começou quando Gabriel, aos vinte e sete anos, procurou terapia. Inicialmente, não via a infância como abusiva, pois acreditava que apenas tivera uma mãe exigente. Mas, à medida que o terapeuta lhe explicava os padrões do narcisismo parental, uma nova compreensão emergia. Reconheceu o jogo de papéis, a manipulação, a forma como as suas necessidades foram sistematicamente ignoradas.
Não foi um processo rápido. Durante meses, lutou contra a culpa e a sensação de que estava a trair a mãe ao estabelecer limites. Mas, pouco a pouco, começou a recusar certas conversas, a proteger o seu tempo e a cultivar amizades onde podia ser ele próprio. Aprendeu que amor verdadeiro não exige que nos anulemos.
Ainda hoje, Helena continua a alternar entre tentativas de aproximação calorosa e momentos de frieza cortante. Mas Gabriel já não vive preso ao papel que ela lhe atribuiu. Compreendeu que a validação que procura não virá dela. E, pela primeira vez, começa a construir uma vida em que o afeto não é condicional e onde as suas emoções têm lugar.
A relação entre irmãos é, em condições saudáveis, um espaço de afeto, apoio e companheirismo, onde cada um desenvolve a sua individualidade enquanto partilha experiências e memórias comuns. No entanto, quando um dos irmãos apresenta traços de Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), essa relação tende a ser marcada por dinâmicas profundamente assimétricas, abusivas e desgastantes. O narcisismo dentro da família não afeta apenas os progenitores e filhos, as relações fraternas também se tornam palco de manipulação, rivalidade, desvalorização e competição tóxica.
Ao contrário de relacionamentos com parceiros românticos, onde a vítima pode eventualmente cortar contacto, a ligação familiar, especialmente fraternal, é frequentemente moldada por anos ou décadas de convívio, memórias partilhadas e pressões familiares para manter laços, independentemente do custo emocional. A experiência é marcada por uma dinâmica em que a vítima é constantemente colocada numa posição de inferioridade, manipulação ou exploração, enquanto o irmão narcisista mantém o controlo através de uma mistura de charme intermitente, críticas veladas e jogos de poder.
Um irmão ou irmã narcisista tende a ver o outro não como um aliado ou parceiro de vida, mas como um recurso, alguém que existe para ser usado, manipulado ou eclipsado. A ligação é instrumental e centrada nas necessidades do narcisista, raramente no bem-estar do irmão. Em muitos casos, o irmão narcisista sente-se no direito de dominar o espaço emocional e físico, interferir nas escolhas de vida do outro e, de forma mais insidiosa, reescrever a narrativa familiar para se colocar sempre no papel de protagonista ou vítima injustiçada.
Um dos aspetos mais marcantes é a competição permanente fomentada pelo irmão narcisista. Este tende a interpretar qualquer sucesso do outro como uma ameaça pessoal. Se o irmão vítima tiver bons resultados académicos, profissionais ou relacionais, o narcisista pode responder com inveja encoberta, tentativas de desvalorização ou mesmo sabotagem direta. Ao mesmo tempo, procura monopolizar a atenção e aprovação da família, criando uma narrativa em que ele próprio é o filho especial e a vítima é o menos capaz ou problemático.
Este tipo de dinâmica pode manifestar-se de diferentes formas. Por exemplo, o irmão narcisista poderá não tolerar que o outro tenha êxito ou reconhecimento, podendo até pequenas conquistas ser alvo de comentários depreciativos ou tentativas de sabotagem (competição constante). Frequentemente, o irmão narcisista envolve outros membros da família para criar divisões ("Ela sempre foi a preferida dos pais" ou "Ele nunca fez nada pela família"), alimentando conflitos e alianças estratégicas que o favoreçam (comparação e triangulação). Poderá ocorrer pouca ou nenhuma consideração pelo espaço, privacidade ou autonomia do irmão, manifestada pela entrada do narcisista em quartos sem permissão, pelo uso de objetos sem pedir, ou intromissão em relações de amizade e amorosas (invasão de limites pessoais). O narcisista poderá minimizar ou desvalorizar sentimentos, dificuldades ou sucessos do irmão respondendo com sarcasmo, ironia ou indiferença para deixar claro que apenas as suas próprias questões importam (desvalorização de necessidades). O irmão narcisista poderá pedir favores constantes, apoio financeiro, ou exigir ajuda em momentos críticos, mas raramente retribuir dado a reciprocidade ser mínima ou inexistente (exploração material e emocional).
A divisão artificial criada pelos pais também é comum. Em famílias onde um dos filhos tem traços narcisistas, é frequente existir um desequilíbrio na distribuição de afeto, atenção e recursos. O narcisista pode ser favorecido devido ao seu carisma, à sua capacidade de encantar os pais ou, simplesmente, porque sabe manipular melhor a dinâmica familiar. A vítima, por outro lado, pode sentir que está constantemente em desvantagem e que precisa de provar o seu valor, alimentando um ciclo de baixa autoestima e procura incessante de validação.
A manipulação entre irmãos pode assumir várias formas: a) Gaslighting: o irmão narcisista nega eventos passados, distorce conversas e faz a vítima duvidar da sua própria memória. b) Projeção: acusa a vítima de comportamentos que ele próprio pratica, como egoísmo ou falta de empatia. c) Triangulação: envolve outros membros da família ou amigos para colocar a vítima numa posição de isolamento ou descrédito. d) Apropriação de conquistas: tenta assumir o mérito por realizações da vítima, ou desvaloriza-as de forma sistemática.
Com o tempo, o irmão vítima pode desenvolver dissonância cognitiva, uma contradição interna entre recordar momentos em que o narcisista foi amável e reconhecer padrões claros de abuso. Esta dissonância é agravada pelo reforço intermitente: o narcisista alterna períodos de afeto ou colaboração com momentos de desprezo, manipulação ou raiva. O resultado é um vínculo emocional difícil de quebrar, pois a vítima continua a procurar o lado bom do irmão, acreditando que a relação pode voltar a ser como nos raros momentos positivos.
Um aspeto particularmente doloroso desta relação é o papel da família alargada. Pais, avós ou outros irmãos podem cair no jogo de manipulação do narcisista, reforçando o seu comportamento e isolando a vítima. Isso pode ocorrer porque o narcisista sabe apresentar-se como o mais responsável ou o mais necessitado, enquanto o irmão vítima é retratado como ingrato, distante ou egoísta. Este fenómeno, conhecido como "scapegoating" (transformar alguém no bode expiatório), é devastador para a autoestima e para a coesão familiar.
Do ponto de vista psicológico, crescer ou conviver com um irmão narcisista prolonga no tempo uma forma de abuso relacional crónico. Ao normalizar a dinâmica abusiva, a vítima pode entrar noutras relações onde o padrão se repete ocorrendo o estabelecimento de relações tóxicas. Desta forma, as vítimas frequentemente desenvolvem padrões de codependência em amizades e relações amorosas, replicando a dinâmica de abuso. Também a autoimagem fica frequentemente distorcida em que a vítima se vê como menos competente ou menos digna de amor, e surgem problemas de confiança com dificuldade em acreditar nas intenções dos outros, mesmo em relações fora da família.
Além disso, a vítima pode carregar culpa e responsabilidade indevida, sentindo-se obrigada a salvar ou apaziguar o irmão, mesmo em detrimento da sua própria saúde mental. Esta obrigação é muitas vezes reforçada pela família com frases como "Mas ele é teu irmão, tens de o ajudar" ou "Família é para sempre", perpetuando a ligação abusiva.
A complexidade da relação com um irmão narcisista reside também no caráter inevitável do contacto, especialmente quando há eventos familiares, responsabilidades partilhadas ou bens em comum. O corte total de contacto, embora por vezes necessário, pode trazer consequências sociais e emocionais significativas, como afastamento de outros familiares ou sentimento de luto por uma relação que nunca foi saudável.
Em alguns casos, quando o irmão narcisista atinge a idade adulta, o padrão de abuso continua, mas de forma mais sofisticada. Pode envolver chantagem emocional relacionada com heranças, divisão de responsabilidades familiares (deixando o peso sobre a vítima) ou a exclusão em eventos importantes. Por vezes, o narcisista até se torna protetor em certas ocasiões, apenas para depois usar esse gesto como moeda de troca para obter controlo ou gratidão forçada.
O desafio para a vítima é que a sociedade, e muitas vezes a própria família, raramente reconhece a gravidade do abuso fraternal. Existe uma ideia culturalmente enraizada de que "irmãos discutem" ou que "é apenas rivalidade saudável". Esta banalização impede que a vítima valide a sua dor e procure apoio. Além disso, cortar contacto com um irmão é frequentemente visto como uma decisão extrema e incompreensível, gerando ainda mais culpa e isolamento.
Reconhecer estas dinâmicas é o primeiro passo para quebrar o ciclo. O irmão vítima precisa de estabelecer limites claros, procurar apoio externo (terapia individual ou grupos de apoio) e, em alguns casos, considerar o "low contact" ou "no contact" como forma de preservar a sua saúde emocional. Importante também é desmistificar o mito de que laços de sangue obrigam à tolerância ilimitada, uma vez que a preservação da integridade mental deve ser prioritária.
Hugo sempre acreditou que a relação com o seu irmão mais velho, Tiago, tinha algo de errado, mas demorou décadas até conseguir dar nome ao que vivia. Desde criança, habituara-se a andar em redor de Tiago como quem pisa gelo fino. A cada passo, não sabia se seria recebido com um sorriso encantador ou com uma ironia afiada que lhe atravessava o peito. Tiago tinha um talento particular para dominar qualquer espaço, não pelo grito imediato, mas pelo controlo subtil, a palavra que diminuía, o comentário que ficava a ecoar.
Quando eram pequenos, Tiago parecia o centro do universo familiar. Os pais riam-se das suas piadas, gabavam as suas notas, e mesmo quando cometia erros evidentes, encontravam sempre uma desculpa: "Ele só fez isso porque é muito inteligente e se aborrece". Hugo, por outro lado, era o tranquilo, o que não dava problemas, e essa suposta neutralidade significava apenas uma coisa: não tinha direito à mesma atenção. Quando conseguia um feito, um desenho premiado na escola, um bom resultado num teste, Tiago encontrava uma forma de se colocar no centro da conversa: "Eu é que lhe ensinei isso" ou "Se não fosse por mim, ele nem tinha participado".
A adolescência trouxe novas formas de confronto. Tiago dominava as narrativas familiares como um hábil argumentista. Quando queria algo, usava o charme com os pais e, se isso falhasse, lançava farpas calculadas contra Hugo. Comparações constantes eram a norma: "Olha para o teu irmão, ele já conseguiu estágio… e tu, ainda nada?", "Se fosses mais como o Tiago, talvez tivesses mais sucesso", diziam, alternando papéis de forma a manter ambos numa competição velada. Mas a competição nunca era justa. Tiago tinha sempre vantagem: mais tempo de fala, mais confiança, mais espaço para brilhar.
Com o tempo, Hugo percebeu que o sucesso, para Tiago, não era algo para partilhar, mas uma ameaça pessoal. Quando Hugo recebeu uma promoção, o irmão comentou com um sorriso frio: "Cuidado, não subas demasiado depressa… as quedas assim são piores." Na altura, Hugo riu, mas aquela frase ficou a latejar, plantando a dúvida e diminuindo a alegria que sentia.
Tiago não invadia apenas as conversas; invadia também o espaço físico e emocional. Usava os objetos de Hugo sem pedir, lia mensagens no seu telemóvel "por curiosidade" e dava palpites sobre as amizades ou relações amorosas do irmão, sempre com um tom de autoridade moral. Por vezes, até se mostrava protetor, como quando interveio numa discussão que Hugo teve com um amigo, mas depois cobrava esse gesto durante anos, como se fosse uma dívida impossível de saldar.
A manipulação era constante e multifacetada. Tiago reescrevia memórias partilhadas para que parecessem corresponder à sua versão dos factos. Negava conversas inteiras, insinuava que Hugo estava a exagerar ou que tinha imaginação fértil. Acusava-o de egoísmo, ironicamente, nos mesmos momentos em que ele próprio estava a exigir tempo, favores ou dinheiro. Sempre que possível, envolvia outros membros da família nas suas manobras: "O Hugo anda distante… não vos parece estranho?"ou "Acho que ele não valoriza tudo o que já fiz por ele."
Hugo, que sempre tentou manter a paz, começou a duvidar da própria memória. Recordava-se de momentos em que Tiago parecia genuinamente afetuoso, e isso tornava mais difícil aceitar que, na maior parte do tempo, vivia sob um jogo constante de manipulação. O lado bom de Tiago surgia de forma intermitente, pequenos gestos que alimentavam a esperança de que a relação pudesse ser saudável, mas que, na verdade, apenas reforçavam o ciclo abusivo.
A família alargada, sem conhecer a fundo a dinâmica, via Tiago como o irmão mais presente e prestável. Ele sabia exatamente como se mostrar em público: atento, bem-humorado, sempre pronto a ajudar. Hugo, mais reservado, acabava por ser pintado como o distante, o difícil, o ingrato. As palavras dos outros reforçavam o isolamento: "Ele é teu irmão, tens de o apoiar", "Família é para sempre, não deixes que pequenas coisas estraguem isso".
Na idade adulta, a relação não melhorou apenas ganhando novas camadas. Surgiram discussões sobre heranças, responsabilidades com os pais idosos e decisões familiares importantes. Tiago apresentava-se como o responsável, mas empurrava para Hugo a maior parte das tarefas práticas, reservando para si as que garantiam visibilidade e reconhecimento. E quando Hugo questionava essa desigualdade, ouvia respostas calculadas: "Não sejas sensível, eu só quero ajudar" ou "És tu que estás a interpretar mal as coisas".
Hugo carregou, durante anos, a culpa e a sensação de que precisava de salvar a relação, mesmo à custa da sua própria saúde mental. Até que, após uma conversa particularmente desgastante, percebeu que o laço de sangue não podia justificar um sofrimento contínuo. Procurou terapia, começou a reconhecer o padrão e a aceitar que, por mais difícil que fosse, estabelecer limites era a única forma de preservar a própria sanidade.
Hoje, mantém um contacto mínimo com Tiago. Sabe que esta decisão tem um custo, há familiares que não compreendem, há eventos onde o constrangimento é inevitável. Mas também sabe que, pela primeira vez, não vive na sombra do irmão. E, nesse espaço conquistado, começa finalmente a descobrir quem é, para além das histórias que Tiago sempre contou por ele.
Conviver, trabalhar ou manter interações sociais regulares com uma pessoa que apresenta traços narcisistas, ou que se enquadra no diagnóstico clínico de Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), constitui uma experiência singularmente desgastante. Diferente do abuso evidente que por vezes se manifesta no contexto íntimo, aqui a violência psicológica assume uma forma mais subtil, estrategicamente camuflada sob a capa de cortesia, profissionalismo ou convívio social saudável. O narcisista encontra nesses ambientes públicos um terreno fértil para exercer a sua influência: as regras formais, a pressão para manter as aparências e a dificuldade das vítimas em denunciar comportamentos abusivos sem receio de represálias funcionam como barreiras protetoras para o agressor. Assim, este tipo de cenário torna-se um palco seguro onde o narcisista pode projetar a sua imagem idealizada, enquanto neutraliza e silencia, de forma quase invisível, aqueles que lhe possam fazer frente.
O mundo profissional oferece ao narcisista inúmeras oportunidades para brilhar aos olhos da hierarquia e da equipa, não tanto pelo mérito técnico ou pela competência genuína, mas pela capacidade de manipular perceções, explorar vulnerabilidades humanas e capitalizar o trabalho alheio. As vítimas descobrem rapidamente que, em vez de um colega de equipa colaborativo, enfrentam um jogador experiente num jogo de poder constante. É frequente, por exemplo, que o narcisista se aproprie de ideias e conquistas que não lhe pertencem, apresentando-as como fruto exclusivo do seu génio. Quando confrontado, recorre ao seu estatuto ou à proximidade com superiores para inverter a acusação, insinuando que a vítima está a reagir de forma emocional ou exagerada. A consequência é corrosiva: a vítima começa a censurar-se antes mesmo de partilhar uma nova ideia, temendo vê-la usurpada e depois utilizada contra si.
Outro mecanismo particularmente desgastante é o chamado gaslighting profissional. Pequenas e consistentes distorções da realidade levam a vítima a duvidar da sua memória, da sua interpretação dos factos e até da sua própria competência. O narcisista pode negar ter dado instruções, alterar a ordem dos acontecimentos ou recontar reuniões e situações de forma tão convincente que outros acabam por acreditar. Com o tempo, a vítima passa a questionar-se antes de agir, paralisada pela incerteza sobre o que realmente aconteceu.
Há ainda o isolamento estratégico. Reuniões importantes decorrem sem que a vítima seja convocada, circulam e-mails decisivos dos quais é excluída, e informações essenciais à execução do seu trabalho simplesmente não lhe chegam. Quando o seu desempenho começa a ser afetado, o narcisista utiliza precisamente esses resultados como prova de que ela não está à altura das responsabilidades.
Não é raro que, simultaneamente, a vítima seja sobrecarregada com tarefas irrealistas e prazos impossíveis, para depois ser acusada de incompetência quando não cumpre. Este ciclo desgastante mina não só a produtividade, mas também a saúde física e mental. E, enquanto isto acontece, o narcisista pode lançar comentários ambíguos, em privado ou em conversas de corredor, que minam a reputação da vítima. Observações aparentemente inocentes, "Ele anda com muito trabalho, talvez por isso se esteja a distrair", espalham-se rapidamente, envenenando a perceção que outros têm da vítima.
Fora do ambiente profissional, as estratégias mantêm-se, mas adaptam-se às dinâmicas próprias da vida social. O narcisista sabe que, em eventos de grupo, a exposição é maior e as defesas da vítima estão mais vulneráveis, especialmente quando o abuso é mascarado de diversão ou convívio.
Uma das formas mais comuns é a humilhação disfarçada de humor. O narcisista pode contar histórias embaraçosas ou fazer piadas com detalhes íntimos da vida da vítima, sempre sob a desculpa de que era só uma brincadeira. Quem observa de fora tende a rir, reforçando o isolamento emocional da vítima e levando-a a questionar se está a exagerar.
Outra prática recorrente é a construção de narrativas exageradas ou totalmente inventadas, nas quais o narcisista se apresenta como protagonista heroico, vítima injustiçada ou figura central de acontecimentos. Ao controlar a narrativa, reforça a sua imagem perante o grupo e relega os outros para papéis secundários ou desvalorizados.
O controlo social também passa pela criação de pequenos círculos de influência. O narcisista decide quem é incluído em conversas ou eventos e quem é deixado de fora, fomentando rivalidades veladas e inseguranças. Ao manipular o acesso à informação ou ao convívio, cria uma dependência social subtil, mas eficaz.
Quando pretende neutralizar alguém, recorre à manipulação da narrativa social: conta versões distorcidas de eventos, omite detalhes cruciais e reorganiza a história de modo a que a vítima pareça instável, conflituosa ou ingrata. Esta manobra impede que a vítima encontre apoio no grupo, pois os outros já foram condicionados a desconfiar dela.
A permanência da vítima nesse tipo de relação não se deve apenas a fatores externos, mas também a mecanismos internos que se desenvolvem sob pressão constante. A dissonância cognitiva desempenha um papel central: é profundamente confuso ver alguém que, aos olhos de todos, é encantador e bem-sucedido, comportar-se de forma abusiva e manipuladora longe das testemunhas. Esta contradição prolonga a dúvida interna e retarda o afastamento.
O reforço intermitente é igualmente poderoso. Momentos ocasionais de aparente gentileza funcionam como recompensas emocionais imprevisíveis, mantendo a esperança de que o lado bom do narcisista prevaleça. É o mesmo mecanismo que mantém jogadores presos às máquinas de azar, em que nunca se sabe quando a próxima recompensa surgirá.
O medo de retaliação é constante. No trabalho, pode significar perder o emprego, ser sabotado ou ver a sua reputação destruída. No contexto social, implica o risco de exclusão e difamação. Paralelamente, o isolamento intencional mina as redes de apoio da vítima, tornando-a mais dependente do agressor para manter a sua posição ou aceitação.
As consequências acumuladas são profundas. O corpo e a mente entram num estado de alerta permanente, originando stress crónico e, em muitos casos, burnout. A autoestima é erodida de forma sistemática, até que a vítima passa a duvidar não só das suas competências, mas também do seu valor intrínseco. A ansiedade social instala-se, tornando qualquer interação carregada de receio por julgamentos e interpretações negativas. Em última instância, o isolamento emocional e social torna-se quase inevitável, e não é raro que a vítima desenvolva sintomas de trauma relacional, repetindo inconscientemente padrões de submissão e procura de validação junto de figuras abusivas.
Gabriel tinha 36 anos e trabalhava há seis numa agência de marketing digital de média dimensão. Desde o início, foi reconhecido pela sua criatividade e pela capacidade de encontrar soluções para problemas que pareciam insolúveis. Era visto como alguém capaz de unir equipas, orientar colegas mais novos e lidar com clientes exigentes sem perder a calma. Quando a nova diretora de departamento, Natália, foi contratada, Gabriel sentiu um misto de curiosidade e esperança. Ela tinha presença marcante, um discurso envolvente e um olhar que parecia fixar-se intensamente em cada pessoa com quem falava, transmitindo a sensação de que estava a escutar com atenção absoluta. Nas primeiras semanas, elogiou repetidamente a equipa e afirmou que queria dar oportunidades a todos e modernizar a forma de trabalhar.
Nos primeiros meses, Natália procurava Gabriel com frequência para discutir ideias. Chamava-o ao seu gabinete para brainstormings informais e, nessas conversas, mostrava-se calorosa e confiante. Quando algumas dessas ideias surgiam mais tarde em reuniões com a administração, eram apresentadas como fruto da visão inovadora de Natália. No início, Gabriel assumiu que isso fazia parte do trabalho de liderança, afinal, era natural que a chefe assumisse a autoria de propostas para negociar com a direção. Mas com o tempo percebeu que nunca era mencionado como fonte de inspiração ou coautor.
Quando, um dia, comentou de forma ligeira que aquela ideia para a campanha do novo cliente tinha sido desenvolvida em conjunto, Natália sorriu e disse, num tom simultaneamente doce e condescendente: "Gabriel, acho que estás a confundir as coisas… lembro-me bem de ter pensado nisso numa reunião anterior. Mas é bom saber que estamos tão alinhados." A frase ficou-lhe gravada. Ele tinha a memória clara do momento em que, numa conversa privada, lhe tinha explicado o conceito. Mas o modo seguro como ela afirmava o contrário fê-lo hesitar. Talvez tivesse realmente trocado as datas na memória. Essa dúvida plantada começou a repetir-se em outros episódios, um fenómeno que mais tarde reconheceria como gaslighting.
Pouco a pouco, Gabriel começou a ser excluído de determinadas reuniões. Não eram canceladas no calendário dele, simplesmente deixava de receber convites. Quando confrontava Natália, ela respondia de forma ligeira: "Foi decidido em cima da hora. Achei que estavas atolado com outras tarefas e não quis sobrecarregar-te."
Havia algo mais subtil. Colegas com quem ele tinha uma boa relação passaram a mostrar-se mais distantes. Alguns deixaram de o convidar para almoçar. Outros evitavam cruzar conversas nos corredores. Mais tarde, Gabriel soube que Natália fazia comentários "preocupados" em conversas privadas: "O Gabriel tem andado tão cansado… não sei se está com algum problema pessoal. Tenho notado que a energia dele já não é a mesma." Estas observações, ditas num tom quase maternal, moldavam a perceção da equipa sem que ele se apercebesse. A imagem de um profissional em declínio foi-se infiltrando no grupo.
O padrão intensificou-se quando começaram a surgir decisões que, para Gabriel, não faziam sentido algum. Projetos eram reorientados para seguir modas superficiais do setor, mesmo quando os dados internos mostravam que a estratégia não era a mais eficaz. Num caso concreto, Natália insistiu em abandonar uma abordagem que estava a gerar bons resultados para adotar uma tendência que tinha visto num evento internacional. Quando Gabriel apresentou dados que provavam o risco, ela respondeu: "O mercado está a mudar e precisamos mostrar que estamos na vanguarda. Não é só sobre resultados imediatos, é sobre sermos vistos como inovadores."
A decisão acabou por comprometer a relação com o cliente, e quem teve de gerir o descontentamento foi Gabriel. Ainda assim, quando o assunto foi recontado noutra reunião, Natália descreveu os acontecimentos numa ordem que invertia responsabilidades, sugerindo que Gabriel tinha sido o primeiro a defender a nova abordagem.
Outro padrão inquietante era a negação de instruções. Gabriel recebia orientações diretas e específicas, como alterar a prioridade de um projeto, e, dias depois, quando as consequências dessas alterações se manifestavam, Natália negava ter dado tais ordens. "Não me lembro de ter dito isso. Tens a certeza de que não interpretaste mal?" perguntava, com ar inocente. Ele ficava perplexo, mas sem registos escritos (pois muitas dessas instruções eram dadas oralmente, num "passa pelo meu gabinete"), não tinha como provar.
O ciclo emocional também se repetia: depois de períodos de frieza e críticas subtis, Natália aparecia com elogios grandiosos, quase encenados. "O cliente adorou a tua apresentação. És um dos profissionais mais talentosos que já vi." Esses momentos criavam uma ilusão de reconciliação e esperança, dificultando que Gabriel rompesse com aquela dinâmica abusiva.
O desgaste começou a transbordar para fora do trabalho. Amigos comentavam que ele estava mais calado, menos disponível. Em eventos do setor, notava olhares estranhos ou cumprimentos breves. Mais tarde, percebeu que Natália também tecia comentários aparentemente inocentes em ambientes sociais: "O Gabriel anda tão atarefado… e acho que anda um pouco tenso. Espero que esteja tudo bem."
O ponto de rutura deu-se quando uma colega lhe confidenciou que tinha ouvido Natália dizer a um cliente que estava a considerar reorganizar a equipa porque Gabriel já não tinha a mesma energia criativa. Nesse momento, ele percebeu que não era apenas a sua imagem interna que estava a ser corroída, mas também a sua reputação no mercado.
Quando tentou reportar a situação ao departamento de RH, encontrou descrença. Natália tinha cultivado uma imagem de líder visionária e inspiradora junto da direção. Para os níveis hierárquicos acima, ela era praticamente intocável. As queixas de Gabriel soavam como interpretações pessoais de decisões de gestão.
Eventualmente, pediu demissão. Mas a saída não foi um alívio imediato. Nos meses seguintes, sofreu de ansiedade, insónias e uma constante sensação de insegurança. Socialmente, estava retraído e desconfiado. Na terapia, começou a reconhecer os padrões: gaslighting, distorção de factos, negação de instruções, tomada de decisões irracionais para autopromoção, isolamento estratégico e reforço intermitente.
Com o tempo, compreendeu que o jogo invisível de Natália não era acidental, mas sim uma teia de manipulação cuidadosamente tecida para lhe minar a confiança, enfraquecer a sua rede de apoio e consolidar o próprio poder à custa do bem-estar alheio.
A relação com um narcisista não se mede apenas pelas agressões verbais, manipulações subtis, explosões de raiva e os variados abusos que marcam o quotidiano da vítima. O que torna verdadeiramente devastador este tipo de vínculo é a forma como ele aprisiona psicologicamente quem nele se encontra, criando um laço invisível que persiste mesmo quando o abuso é reconhecido de forma consciente. Muitas vítimas, ao tentarem explicar porque não se afastam, recorrem a expressões como "não consigo", "sinto-me presa" ou "é como uma droga". Este sentimento não resulta de uma fraqueza individual ou de uma escolha consciente, mas sim de mecanismos psicológicos profundos que se ativam na interação com a personalidade narcisista. Três dinâmicas são particularmente relevantes: a dissonância cognitiva, o reforço intermitente e o chamado trauma bonding. Cada uma destas forças atua de forma distinta, mas todas convergem no mesmo resultado: a dificuldade extrema em cortar o vínculo.
A dissonância cognitiva é um conceito da psicologia social que descreve o desconforto mental que surge quando uma pessoa mantém simultaneamente duas crenças ou perceções contraditórias. No contexto das relações com um narcisista, esta dissonância torna-se uma experiência quotidiana. A vítima convive com duas imagens inconciliáveis: por um lado, a pessoa encantadora, atenciosa e idealizada que conheceu no início da relação. Por outro, a figura fria, abusiva e manipuladora que se revela na intimidade.
Este conflito não é abstrato, mas alimentado pela própria dinâmica relacional do narcisista. O ciclo de idealização, desvalorização, descarte e hoovering cria uma alternância constante entre a versão ideal e a versão abusiva do mesmo indivíduo. Durante a fase da idealização, a vítima é colocada num pedestal, recebendo uma avalanche de atenção, amor e validação que desperta sentimentos intensos de confiança e entrega. Quando o ciclo avança para a desvalorização, essa mesma vítima passa a ser criticada, diminuída e tratada com frieza ou desprezo. No momento do descarte, a rejeição pode ser tão violenta que a autoestima da vítima fica devastada. No entanto, o ciclo raramente termina aqui: através do hoovering, o narcisista regressa com promessas de mudança, gestos de arrependimento ou demonstrações de afeto seletivas, reativando a esperança da vítima e relançando o ciclo.
Este movimento circular não apenas alimenta a dissonância cognitiva, como a intensifica. A vítima esforça-se por conciliar a crença de que está numa relação significativa e especial com a realidade do sofrimento constante. Para reduzir o desconforto, recorre a mecanismos de racionalização: "ele não quis dizer aquilo", "ela estava nervosa por causa do trabalho", "se eu fizer melhor, as coisas vão voltar a ser como no início". Assim, a vítima não se prende apenas à memória da fase de idealização, mas também ao desejo de que a versão bondosa do parceiro seja a verdadeira. O resultado é uma mente em permanente conflito, onde cada momento de abuso é contrabalançado pela esperança de redenção, tornando a decisão de sair ainda mais dolorosa.
Se a dissonância cognitiva explica o conflito interno da vítima, o reforço intermitente descreve o mecanismo comportamental que prende emocionalmente. O termo vem da psicologia do comportamento e refere-se à forma como recompensas distribuídas de forma irregular e imprevisível criam dependências mais fortes do que recompensas constantes. É este o princípio que sustenta a atração viciante dos jogos de azar: não é o ganho constante que motiva o jogador, mas sim a incerteza sobre quando virá a próxima vitória.
Na relação com o narcisista, o reforço intermitente manifesta-se na alternância imprevisível entre abuso e momentos de afeto. Uma discussão devastadora pode ser seguida de um gesto inesperado de ternura. Após dias de silêncio ou frieza, pode surgir um elogio ou uma recordação carinhosa. Esta irregularidade mantém a vítima em estado de vigilância permanente, na expectativa de que um novo gesto positivo possa surgir a qualquer momento. Cada pequena demonstração de afeto funciona como um prémio emocional, reativando a ligação afetiva e recompensando, ainda que momentaneamente, a persistência em permanecer na relação.
Um fenómeno particularmente devastador, associado a este padrão, é o chamado breadcrumbing. Tal como as migalhas de pão deixadas num caminho, o narcisista oferece pequenos sinais de atenção ou interesse, uma mensagem carinhosa, um olhar cúmplice, uma promessa vaga, que nunca se materializam em compromisso ou mudança real. Estas migalhas mantêm viva a esperança da vítima, que se agarra a cada gesto mínimo como prova de que o vínculo ainda tem potencial de recuperação. O breadcrumbing, conjugado com o reforço intermitente, cria uma dinâmica semelhante à de uma adição: quanto mais rara e imprevisível a recompensa, mais a vítima se empenha em conquistar novamente esse momento de afeto, reforçando o laço.
Assim, o reforço intermitente não apenas explica a dificuldade de afastamento, como mostra porque é que vítimas conscientes do abuso continuam a procurar aprovação do narcisista. A mente aprende a associar sofrimento com a possibilidade futura de alívio, criando um ciclo viciante onde cada pequena recompensa adquire um valor desproporcional.
O trauma bonding descreve o vínculo emocional intenso que se forma entre vítima e abusador em relações marcadas por ciclos de abuso e reconciliação. A sua essência está na associação paradoxal entre dor e alívio, medo e esperança, violência e proximidade. Este laço é fortalecido justamente porque as emoções extremas geradas pelo abuso são seguidas por momentos de resgate emocional, em que o narcisista se apresenta como a única fonte de conforto para o sofrimento que ele próprio provocou.
Diferente da simples dependência afetiva, o trauma bonding tem raízes fisiológicas. A exposição alternada ao stress e ao alívio ativa sistemas neurobiológicos ligados à sobrevivência, libertando hormonas como a dopamina e a oxitocina, que reforçam a ligação emocional. O resultado é um laço tão profundo que a vítima sente que não apenas ama o abusador, mas que precisa dele para sobreviver emocionalmente. Este mecanismo é comparável ao que se observa em casos de sequestro, conhecidos como síndrome de Estocolmo, onde a vítima cria uma ligação afetiva com quem a ameaça, precisamente porque o mesmo agressor que gera medo oferece também momentos de proteção.
O trauma bonding torna-se ainda mais intenso pela forma como o narcisista manipula a perceção da realidade. Ao alternar abuso com gestos de aparente carinho, reforça a ideia de que o sofrimento tem um propósito e que a vítima poderá recuperar a versão "boa" do parceiro se apenas se esforçar o suficiente. O laço não se constrói apesar do abuso, mas precisamente por causa dele: cada episódio doloroso aumenta a intensidade da recompensa que se segue, cimentando ainda mais o vínculo.
Outro fator que contribui para a dificuldade em sair da relação é a forma como a culpa e a responsabilidade são manipuladas. O narcisista raramente assume responsabilidade pelos seus comportamentos abusivos, preferindo transferi-la para a vítima. Assim, críticas, agressões verbais ou momentos de negligência emocional são justificados com argumentos como "tu é que me provocaste", "se fosses diferente eu não reagia assim" ou "és demasiado sensível". Este deslocamento de culpa leva a vítima a questionar constantemente o seu próprio papel, desenvolvendo a convicção de que é responsável pelo bem-estar do parceiro e, por extensão, pela saúde da relação.
A armadilha torna-se ainda mais poderosa quando combinada com os mecanismos anteriores. A dissonância cognitiva faz com que a vítima racionalize o abuso. O reforço intermitente mantém viva a esperança de mudança. O trauma bonding fortalece a ligação emocional. Finalmente, a culpa bloqueia a possibilidade de saída ao fazer a vítima acreditar que abandonar a relação equivaleria a falhar no seu dever. Assim, o círculo fecha-se: a vítima não apenas sente que não consegue sair, mas que não deve sair.
Vicente sempre se considerou um homem racional, pragmático e com os pés assentes na terra. Trabalhava como engenheiro civil, apreciava a previsibilidade dos cálculos e a lógica das estruturas, e era respeitado pelos colegas como alguém de confiança e de caráter íntegro. A sua vida, até conhecer Benedita, tinha sido estável, marcada por rotinas seguras e amizades duradouras. No entanto, como tantas vítimas de relações abusivas com narcisistas, nunca imaginou que a sua própria mente pudesse tornar-se um campo de batalha, onde a clareza se desfazia em confusão e onde a sua identidade se esbatia lentamente até se tornar quase irreconhecível.
Conheceu Benedita num jantar de amigos em comum. Ela entrou na sala como se fosse feita de luz. A confiança no seu olhar, o sorriso cativante, a energia envolvente: tudo nela parecia vibrar de intensidade e de magnetismo. Não houve apenas química, houve um encantamento imediato. Para Vicente, era como se tivesse encontrado alguém que lia diretamente na sua alma. A forma como ela escutava as suas histórias, como se risse no momento certo, como validava as suas inseguranças com palavras de ternura e compreensão, tudo aquilo parecia um milagre raro, uma sintonia que ele nunca tinha experimentado antes.
Essa fase inicial, a idealização, foi arrebatadora. Benedita não poupava nos gestos de afeto: enviava-lhe mensagens logo pela manhã, declarava o quanto se sentia afortunada por o ter conhecido, planeava surpresas constantes e enchia-o de elogios. Dizia-lhe que ele era diferente de todos os outros, que era o homem com quem sempre sonhara. Para Vicente, que estava habituado a uma vida sóbria e pouco dada a grandes exaltações, aquilo era intoxicante. A intensidade da atenção e do carinho gerou nele uma sensação de pertença imediata, como se tivesse finalmente encontrado o porto seguro que lhe faltava.
No entanto, lentamente, quase impercetivelmente, a atmosfera começou a mudar. O que antes era riso e ternura, começou a dar lugar a pequenas críticas subtis, quase disfarçadas de preocupação. Benedita dizia-lhe: "Estás a engordar um bocadinho, mas não te preocupes, eu ajudo-te a melhorar a tua dieta". Noutras ocasiões insinuava: "És tão sério… às vezes parece que me aborreces". Vicente, surpreendido, aceitava os comentários como construtivos, convencido de que eram fruto da intimidade crescente entre ambos. Mas à medida que os dias se transformavam em meses, as críticas intensificaram-se e assumiram uma natureza corrosiva. Já não eram observações leves, mas acusações diretas: "Tu não me dás atenção suficiente", "És frio, insensível", "Nunca vais ser capaz de me acompanhar no que eu mereço".
Foi então que Vicente começou a experienciar a dissonância cognitiva. Dentro de si coexistiam duas imagens inconciliáveis: a Benedita da fase inicial, que parecia perfeita, atenciosa e apaixonada, e a Benedita atual, crítica, distante e muitas vezes cruel. A mente dele procurava incessantemente uma explicação. Talvez ela estivesse stressada com o trabalho, talvez fosse apenas uma fase, talvez ele não estivesse a corresponder às suas expectativas. A contradição entre a memória da idealização e a experiência da desvalorização empurrava-o para tentativas desesperadas de agradar, de recuperar a mulher que o tinha seduzido no início.
Esse ciclo tornou-se cada vez mais evidente. Depois de uma explosão de críticas, Benedita surgia com uma súbita onda de afeto, declarando que não conseguia viver sem ele, que a relação era intensa porque era verdadeira, que se zangava porque o amava demasiado. Vicente agarrava-se a esses momentos como náufrago a uma tábua, acreditando que o amor inicial ainda estava ali, escondido por trás das tempestades.
Nessa altura, o reforço intermitente estava totalmente instalado. As doses imprevisíveis de carinho e frieza funcionavam como o mais eficaz dos condicionamentos. Vicente nunca sabia o que esperar: um beijo apaixonado ou uma semana de silêncio glacial. Essa imprevisibilidade não o afastava, pelo contrário, criava uma dependência cada vez mais profunda. O cérebro humano, quando exposto a recompensas intermitentes, ativa circuitos de prazer semelhantes aos envolvidos nas dependências químicas. Vicente sentia-se preso a uma esperança intermitente de voltar a ser amado como no início, vivendo cada sinal de afeto como uma vitória, mesmo que minúscula.
O fenómeno intensificava-se com o chamado "breadcrumbing". Benedita, mesmo nos momentos em que parecia afastada ou desinteressada, lançava-lhe migalhas de atenção. Uma mensagem curta a dizer "Estás bem?", um emoji carinhoso enviado no meio de dias de silêncio, um elogio súbito depois de uma enxurrada de críticas. Essas migalhas mantinham Vicente emocionalmente investido, sempre à espera da próxima centelha de afeto, sempre disposto a acreditar que ela ainda o amava.
O descarte não tardou a acontecer. Um dia, sem grande aviso, Benedita terminou a relação de forma abrupta, acusando Vicente de ser insuportável, de a sufocar e de não a compreender. Para ele, foi um choque devastador. O mundo que tinha construído em torno dela desmoronou-se num instante. Mas a história não acabou aí. Semanas mais tarde, surgiu o hoovering: mensagens nostálgicas, telefonemas a altas horas da noite, promessas de que tinha refletido e de que agora tudo seria diferente. Vicente, ainda apegado emocionalmente e dilacerado pela saudade da fase inicial, cedeu e voltou. O ciclo recomeçou, com a mesma cadência de idealização breve, seguida de desvalorização e nova violência emocional.
A ligação entre ambos transformou-se num autêntico trauma bonding. A alternância entre abuso e afeto criou em Vicente uma amarra emocional difícil de quebrar. Quanto mais era maltratado, mais ansiava pelos momentos raros de ternura, que funcionavam como alívio temporário para a dor. Este laço paradoxal não se baseava em amor saudável, mas em dependência emocional forjada através da manipulação e da oscilação de recompensas.
Com o passar do tempo, Vicente começou a perder a noção de si mesmo. O que antes eram convicções firmes e gostos pessoais, foi-se dissolvendo em tentativas de agradar a Benedita. Abandonou amigos de longa data porque ela os considerava aborrecidos. Desistiu de projetos profissionais porque ela dizia que eram uma perda de tempo. Até as suas preferências mais simples, música, filmes, hobbies, foram moldadas para se alinhar com os gostos dela. A erosão da identidade era quase completa: Vicente já não sabia quem era sem Benedita.
Quando finalmente procurou ajuda psicológica, Vicente descreveu-se como uma sombra do que fui. O terapeuta explicou-lhe os mecanismos que estavam em jogo: a dissonância cognitiva que o fazia oscilar entre a memória do amor inicial e o abuso presente, o reforço intermitente que o mantinha preso à esperança de recuperar o que fora perdido, e o trauma bonding que transformava a dor em apego. Reconhecer estes mecanismos foi doloroso, mas também libertador. Pela primeira vez, Vicente compreendeu que não estava a enlouquecer, que a confusão e o sofrimento tinham uma explicação psicológica.
A história de Vicente e Benedita é paradigmática porque expõe com clareza a forma como a Perturbação de Personalidade Narcisista pode devastar uma vítima. Mais do que agressões físicas ou insultos evidentes, o que marca estas relações é o jogo subtil e constante entre luz e sombra, entre promessa e frustração, entre idealização e abuso. Para quem observa de fora, pode ser difícil compreender porque a vítima não se afasta de imediato. Mas, mergulhado no ciclo, preso pela dissonância cognitiva e condicionado pelo reforço intermitente, o afastamento torna-se um processo complexo, que exige consciência, apoio e tempo para que a identidade possa ser reconstruída.
A exposição prolongada ao abuso narcisista, seja em relações íntimas, familiares ou no ambiente de trabalho, provoca consequências psicológicas profundas e duradouras, muitas das quais persistem mesmo após o corte definitivo com o agressor. Estes efeitos não surgem de forma imediata, instalando-se de maneira gradual, resultado de um conjunto articulado de manipulação psicológica, abuso emocional, gaslighting e isolamento social. O impacto é corrosivo: pouco a pouco, a vítima perde referências sobre quem é, o que sente e no que pode acreditar. O narcisista, através de técnicas subtis mas constantes, consegue remodelar a perceção da vítima sobre si própria, distorcendo a sua visão da realidade.
O trauma resultante deste tipo de abuso é muitas vezes invisível para o exterior. Como não há, na maioria dos casos, marcas físicas evidentes, familiares, amigos ou colegas podem minimizar a gravidade do que está a acontecer. Contudo, internamente, a vítima vive num estado de tensão permanente, incapaz de relaxar, hipervigilante e emocionalmente desgastada.
O transtorno de stress pós-traumático (PTSD) e o transtorno de stress pós-traumático complexo (C-PTSD) são comuns em vítimas de abuso narcisista prolongado.
O PTSD associa-se normalmente a eventos traumáticos únicos e agudos, como acidentes, agressões ou desastres naturais. No contexto de abuso narcisista, pode manifestar-se através de flashbacks intensos de episódios específicos, pesadelos recorrentes, hipervigilância e respostas físicas exageradas a gatilhos emocionais ou ambientais que lembram a vítima do abuso.
O C-PTSD, por sua vez, é frequentemente consequência de trauma repetido e prolongado ao longo de meses ou anos, como o vivido numa relação controlada por um narcisista. Este quadro inclui todos os sintomas do PTSD, mas acrescenta problemas mais complexos: dificuldade em regular emoções, sentimentos persistentes de vergonha e culpa, imagem pessoal fortemente negativa e dificuldade em confiar em outras pessoas.
Uma particularidade do abuso narcisista é que, frequentemente, não envolve violência física. Trata-se, na maioria das vezes, de um trauma emocional crónico, subtil e contínuo, o que dificulta a sua validação externa e, muitas vezes, retarda o diagnóstico. A vítima pode passar anos sem compreender que o que viveu foi trauma, justamente porque a agressão é invisível e muitas vezes disfarçada de preocupação ou amor.
O narcisista mina a autoconfiança da vítima através de críticas veladas, humilhações discretas e uma constante desvalorização dos seus esforços e qualidades. Isto cria um terreno fértil para o desenvolvimento de vários problemas emocionais.
A depressão instala-se gradualmente. Caracteriza-se por uma sensação constante de desesperança, perda de interesse por atividades que antes eram prazerosas e dificuldade em sentir alegria genuína. A vítima pode sentir-se exausta, incapaz de imaginar um futuro melhor, como se estivesse permanentemente aprisionada num túnel sem saída.
A ansiedade manifesta-se tanto de forma generalizada como através de crises agudas, incluindo ataques de pânico. Viver com um narcisista significa lidar com a imprevisibilidade: nunca se sabe se uma conversa levará a uma discussão, se um gesto inocente será interpretado como provocação ou se o silêncio será usado como castigo. Esta instabilidade cria um estado de hiperalerta crónico, onde o corpo e a mente estão sempre prontos para responder a uma ameaça.
A baixa autoestima é consequência direta de anos de mensagens, explícitas ou implícitas, que transmitem a ideia de que a vítima não é suficiente. Com o tempo, esta internaliza a visão do narcisista, acreditando que merece menos do que os outros e que deve constantemente provar o seu valor para ser aceite.
O trauma bonding descreve o laço emocional intenso que se forma entre vítima e abusador, alimentado por ciclos repetidos de abuso seguidos de momentos de afeto ou reconciliação aparente. O narcisista alterna períodos de frieza, críticas e hostilidade com fases em que se mostra atencioso, afetuoso e até encantador. Esta alternância imprevisível ativa o sistema de recompensa do cérebro da vítima, criando uma dependência emocional muito semelhante à provocada por substâncias aditivas.
A vítima passa a viver na expectativa do próximo momento bom, interpretando-o como prova de que a relação ainda pode ser saudável. Paradoxalmente, é esta esperança, alimentada por breves gestos positivos, que mantém a vítima presa, dificultando o reconhecimento do abuso e atrasando a decisão de sair.
A dissonância cognitiva instala-se quando a vítima mantém simultaneamente duas perceções contraditórias sobre o narcisista. Por um lado, há a memória dos gestos de carinho, dos momentos de apoio e das promessas feitas. Por outro, existe a realidade dos insultos, manipulações, mentiras e desvalorizações.
Para reduzir o desconforto mental gerado por esta contradição, a vítima tende a racionalizar ou minimizar o abuso, focando-se nos momentos positivos e reinterpretando os negativos como mal-entendidos ou reações passageiras. Este mecanismo psicológico, embora protetor a curto prazo, perpetua o ciclo abusivo, pois impede que a vítima confronte a realidade de forma plena.
No abuso narcisista, o reforço intermitente é uma das ferramentas mais poderosas para criar dependência emocional. Consiste na alternância imprevisível entre recompensas emocionais (e.g. elogios, demonstrações de afeto, atenção), e punições subtis ou abertas (e.g. silêncio, críticas, sarcasmo, humilhação).
Tal como acontece nos jogos de azar, esta imprevisibilidade mantém a vítima constantemente à procura da próxima recompensa. O cérebro entra num ciclo de antecipação e frustração, que, paradoxalmente, fortalece a ligação ao agressor.
O abuso prolongado afeta diretamente o funcionamento do sistema nervoso. A vítima, vivendo num estado de alerta contínuo, perde a capacidade de regular as próprias emoções. Pequenos estímulos podem gerar reações desproporcionadas, seja explosões de ansiedade, seja um desligamento emocional quase total.
Esta instabilidade emocional contribui para o isolamento social: familiares e amigos, não compreendendo a origem destas reações, podem afastar-se, interpretando-as como sensibilidade excessiva ou instabilidade pessoal.
Ao longo do tempo, a vítima molda os seus comportamentos, opiniões e preferências para evitar conflitos e minimizar punições. Adota, por sobrevivência, gostos, hábitos e até discursos que não lhe são próprios.
Este processo gradual leva à perda de autenticidade. Um dia, a vítima percebe que já não sabe quais são as suas verdadeiras opiniões, o que gosta ou quem realmente é. Essa sensação de vazio e desconexão de si mesma é uma das sequelas mais profundas do abuso narcisista.
O aspeto mais destrutivo do abuso narcisista não reside em cada mecanismo isoladamente, mas na forma como todos se entrelaçam e se reforçam mutuamente. A dissonância cognitiva impede que a vítima reconheça claramente o abuso. O reforço intermitente alimenta a esperança de que as coisas ião melhorar. O trauma bonding cria um apego emocional que dificulta o afastamento. O gaslighting distorce a perceção da realidade. O isolamento social reduz drasticamente as fontes de apoio externo. O resultado é uma prisão invisível, mas extremamente eficaz: a vítima sente medo de sair, vergonha de ficar e confusão constante sobre o que é real.
Carolina, aos 38 anos, recordava-se nitidamente da primeira vez que viu Bernardo, num evento de networking empresarial. Ele destacava-se na multidão, não apenas pela aparência cuidada e presença marcante, mas pela forma como parecia genuinamente interessado em cada pessoa com quem falava. Quando finalmente se cruzaram, Carolina sentiu uma estranha mistura de nervosismo e entusiasmo. Bernardo ouvia atentamente, ria nos momentos certos e sabia fazer perguntas que pareciam revelar uma atenção rara. Naquela noite, ao regressar a casa, Carolina pensou que talvez tivesse encontrado alguém com quem finalmente poderia partilhar uma vida estável e significativa.
As primeiras semanas foram um turbilhão de atenção e afeto. Bernardo enviava mensagens de bom dia antes mesmo de ela acordar, aparecia com cafés e pequenos presentes, surpreendia-a com convites para jantares em restaurantes novos. Ele mostrava um interesse quase enciclopédico pela vida dela: perguntava sobre a infância, as amizades, os sonhos e até os medos mais íntimos. Carolina sentia-se vista e ouvida como nunca antes. Amigos e familiares notaram uma mudança positiva: ela parecia mais radiante, mais confiante, mais viva.
Contudo, lentamente, os primeiros sinais de manipulação começaram a surgir, embora tão discretos que, à época, Carolina não lhes atribuiu importância. Bernardo começou a tecer comentários sobre o estilo de roupa dela, sugerindo que algumas peças não refletiam todo o seu potencial. Ao falar em reuniões ou eventos sociais, ele corrigia suavemente certas expressões ou modos de dizer, como se estivesse a ajudá-la a soar mais convincente. No início, Carolina interpretou esses gestos como cuidado e apoio. Mas, sem se dar conta, começou a ajustar comportamentos para agradar, moldando-se a um padrão que não era verdadeiramente seu.
O que se seguiu foi um ciclo lento e insidioso. Depois de períodos de críticas subtis ou frieza emocional, Bernardo voltava a surpreendê-la com demonstrações intensas de afeto: flores entregues no trabalho, declarações públicas de amor, momentos íntimos carregados de emoção. Esta alternância entre desvalorização e recompensa mantinha Carolina emocionalmente ligada, presa na esperança de que os momentos bons significavam que o amor verdadeiro ainda estava lá, apenas à espera de ser restaurado. Era o trauma bonding em pleno funcionamento: cada gesto de carinho parecia compensar dias de frieza, criando uma dependência emocional quase impossível de quebrar.
Com o passar dos meses, as críticas tornaram-se mais incisivas. Bernardo insinuava que Carolina não teria a mesma projeção profissional sem a sua orientação, que ela não era suficientemente assertiva nas decisões e que dizia coisas erradas nas conversas com clientes. Quando ela reagia ou mostrava desconforto, Bernardo revertia para o gaslighting: negava ter dito certas frases, afirmava que ela estava a exagerar ou que tinha memória seletiva. Aos poucos, Carolina começou a duvidar da própria perceção dos acontecimentos, questionando a sua sanidade.
Bernardo também plantava desconfiança em relação às pessoas mais próximas. Criticava discretamente algumas amigas, insinuando que tinham inveja ou que não eram verdadeiras amigas. Em relação à família, dizia que não a valorizavam como ele fazia. Sempre com argumentos plausíveis, foi minando as ligações que a poderiam apoiar. Carolina começou a recusar convites sociais para evitar discussões, até que, sem perceber, estava isolada.
Internamente, o desgaste era devastador. Carolina começou a experienciar sintomas clássicos de C-PTSD: insónia, pesadelos recorrentes sobre discussões, hipervigilância constante. Pequenos sons, mudanças de tom na voz de Bernardo ou até mensagens atrasadas desencadeavam uma avalanche de ansiedade. A depressão instalou-se silenciosamente, retirando-lhe o prazer das coisas simples: já não se sentia motivada para as caminhadas matinais, evitava os hobbies que antes adorava e via o futuro como um corredor estreito e sem saída.
O reforço intermitente mantinha-a num estado de expectativa. Cada gesto positivo de Bernardo como um elogio inesperado, um toque carinhoso, ou um sorriso cúmplice, parecia uma prova de que o "verdadeiro Bernardo" ainda existia, o mesmo que conhecera no início. Este padrão psicológico, tão semelhante ao mecanismo que mantém jogadores presos a máquinas de casino, reforçava a ideia de que abandonar a relação significaria perder para sempre a oportunidade de recuperar aquele amor inicial.
A dissonância cognitiva tornava-se um campo de batalha mental diário. Carolina oscilava entre as memórias de gestos de ternura e as experiências reais de abuso emocional. Para reduzir a dor dessa contradição, criava narrativas internas: Bernardo estava stressado, era pressionado no trabalho, tinha passado por traumas pessoais. Racionalizava comportamentos inaceitáveis para manter viva a ilusão de que o relacionamento era recuperável.
Ao fim de três anos, o corpo e a mente de Carolina estavam exaustos. O ataque de pânico no trabalho foi o ponto de rutura, um colapso físico e emocional que a deixou vulnerável o suficiente para, pela primeira vez, contar parte da história a outra pessoa. A colega, reconhecendo os sinais de abuso narcisista, insistiu que procurasse terapia especializada.
A terapia revelou-se uma experiência dolorosa e libertadora. Carolina aprendeu a identificar os mecanismos de manipulação que a mantinham presa, a compreender que o seu apego não era fraqueza mas sim um efeito calculado do trauma bonding e do reforço intermitente. Quebrar o contacto ("no contact") foi a medida mais difícil e mais decisiva: bloquear Bernardo, eliminar todas as formas de comunicação, resistir à tentação de verificar redes sociais.
O processo de recuperação foi lento e irregular. Houve dias em que Carolina sentia uma saudade inexplicável de Bernardo, não da pessoa real, mas da versão idealizada que criara para sobreviver à relação. Outras vezes, sentia raiva intensa por ter perdido tantos anos da sua vida num ciclo abusivo. Com o tempo, e através do apoio terapêutico e do reaproximamento com familiares e amigos, começou a reconstruir a própria identidade. Redescobriu preferências que tinha abandonado, retomou atividades que lhe davam prazer, aprendeu a reconhecer sinais de manipulação em interações sociais.
Mesmo assim, as sequelas persistiam: respostas emocionais desproporcionadas a pequenos conflitos, dificuldade em confiar plenamente noutras pessoas, episódios de ansiedade em situações imprevistas. Mas agora havia uma consciência nova, a compreensão de que aquelas reações eram cicatrizes psicológicas e não defeitos pessoais. E, com essa consciência, veio também a capacidade de se proteger e estabelecer limites.
Carolina passou de uma vida em suspenso para uma vida em reconstrução. E, embora as marcas do abuso narcisista nunca desapareçam completamente, aprendeu que a cura não é apagar o passado, mas recuperar o presente.
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Washington, DC: American Psychiatric Publishing. https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425596
Caligor, E., Levy, K. N., & Yeomans, F. E. (2015). Narcissistic Personality Disorder: Diagnostic and Clinical Challenges. American Journal of Psychiatry, 172(5), 415–422. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2014.14060723
Campbell, W. K., Foster, C. A., & Finkel, E. J. (2002). Does self-love lead to love for others? A story of narcissistic game playing. Journal of Personality and Social Psychology, 83(2), 340–354. https://doi.org/10.1037/0022-3514.83.2.340
Campbell, W. K., & Miller, J. D. (Eds.). (2011). The handbook of narcissism and narcissistic personality disorder: Theoretical approaches, empirical findings, and treatments. John Wiley & Sons, Inc.. https://doi.org/10.1002/9781118093108
Day N.J.S., Bourke ME, Townsend M.L., Grenyer B.F.S. Pathological Narcissism: A Study of Burden on Partners and Family. J Pers Disord. 2020 Dec;34(6):799-813. https://doi.org/10.1521/pedi_2019_33_413
Day, N.J.S., Townsend, M.L. & Grenyer, B.F.S. Living with pathological narcissism: a qualitative study. Borderline Personality Disorder and Emotion Dysregulation 7, 19 (2020). https://doi.org/10.1186/s40479-020-00132-8
Durvasula, R. S. (2019). Don’t You Know Who I Am? How to stay sane in an era of narcissism, entitlement, and incivility. Post Hill Press.
Durvasula, R. S. (2017). Should I Stay or Should I Go? Post Hill Press.
Durvasula, R. S. (2024). It’s not you: Identifying and healing from narcissistic people. Penguin Random House.
Edershile, E. A., & Wright, A. G. C. (2021). Fluctuations in grandiose and vulnerable narcissistic states: A momentary perspective. Journal of Personality and Social Psychology, 120(6), 1617–1636. https://doi.org/10.1037/pspp0000370
Foster, C. (2021). Narcissistic mothers: How to handle a narcissistic parent and recover from CPTSD. Independently published.
Harsey, S. J., Zurbriggen, E. L., & Freyd, J. J. (2017). Perpetrator responses to victim confrontation: DARVO and victim self-blame. Journal of Aggression, Maltreatment & Trauma, 26(6), 644–663. https://doi.org/10.1080/10926771.2017.1320777
Krizan, Z., & Johar, O. (2015). Narcissistic rage revisited. Journal of Personality and Social Psychology, 108(5), 784–801. https://doi.org/10.1037/pspp0000013
MacKenzie, J. (2015). Psychopath free: Recovering from emotionally abusive relationships with narcissists, sociopaths, and other toxic people (Expanded ed.). Berkley.
MedCircle. (2022, May 16). MasterClass: Narcissism - What you MUST know [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=V87G95bGTTk
Miller, J. D., & Campbell, W. K. (2011). The Handbook of Narcissism and Narcissistic Personality Disorder: Theoretical Approaches, Empirical Findings, and Treatments. Wiley.
Miller, J. D., Campbell, W. K., & Pilkonis, P. A. (2007). Narcissistic personality disorder: Relations with distress and functional impairment. Comprehensive Psychiatry, 48(2), 170–177. https://doi.org/10.1016/j.comppsych.2006.10.003
Morf, C. C., & Rhodewalt, F. (2001). Unraveling the paradoxes of narcissism: A dynamic self-regulatory processing model. Psychological Inquiry, 12(4), 177–196. https://doi.org/10.1207/S15327965PLI1204_1
Nook, E. C., Jaroszewski, A. C., Finch, E. F., & Choi-Kain, L. W. (2022). A Cognitive-Behavioral Formulation of Narcissistic Self-Esteem Dysregulation. Focus (American Psychiatric Association), 20(4), 378–388. https://doi.org/10.1176/appi.focus.20220055
Oliver E, Coates A, Bennett JM, Willis ML. Narcissism and Intimate Partner Violence: A Systematic Review and Meta-Analysis. Trauma Violence Abuse. 2024 Jul;25(3):1871-1884. https://doi.org/10.1177/15248380231196115
Pincus, A. L., & Lukowitsky, M. R. (2010). Pathological narcissism and narcissistic personality disorder. Annual Review of Clinical Psychology, 6, 421–446. https://doi.org/10.1146/annurev.clinpsy.121208.131215
Ronningstam, E. (2009). Narcissistic personality disorder: Facing DSM-V. Psychiatric Annals, 39(3), 111–121. https://doi.org/10.3928/00485713-20090301-09
Saraiva, C. B., & Cerejeira, J. (2024). Psiquiatria fundamental (2nd ed.). Lidel.
Shaw, D. (2014). Traumatic narcissism: Relational systems of subjugation. Routledge/Taylor & Francis Group.
Strutzenberg, C., Wiersma-Mosley, J., Jozkowski, K. & Becnel, J. (2017). Love-bombing: A narcissistic approach to relationship formation. Discovery Journal.
Sweet, P. L. (2019). The sociology of gaslighting. American Sociological Review, 84(5), 851–875. https://doi.org/10.1177/0003122419874843
The Diary Of A CEO. (2024, February 29). The narcissism doctor: "1 in 6 people are narcissists!" How to spot them & can they change? [Video]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=hTkKXDvSJvo
van Schie, C.C., Jarman, H.L., Huxley, E. et al. Narcissistic traits in young people: understanding the role of parenting and maltreatment. Borderline Personality Disorder and Emotion Dysregulation 7, 10 (2020). https://doi.org/10.1186/s40479-020-00125-7
Weinberg, I., & Ronningstam, E. (2022). Narcissistic personality disorder: Progress in understanding and treatment. Focus, 20(4), 368–377. https://doi.org/10.1176/appi.focus.20220052