Este capítulo tem como objetivo oferecer uma compreensão sólida, aprofundada e acessível do diagnóstico da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) à luz dos critérios do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5), permitindo que o leitor não apenas reconheça as manifestações desta perturbação, mas também entenda as suas raízes, a sua diferenciação em relação a traços saudáveis e a sua posição dentro do panorama mais amplo das perturbações de personalidade. A PPN é uma perturbação da autoestima e da forma como o indivíduo estrutura a sua identidade e se relaciona com os outros. Caracteriza-se por um padrão persistente de grandiosidade, arrogância, necessidade constante e quase compulsiva de admiração, e uma ausência marcante de empatia.
Antes de mergulharmos no diagnóstico formal, importa estabelecer bases sólidas sobre o que constitui um traço de personalidade e como, em determinados contextos, esses traços podem evoluir para padrões rígidos e disfuncionais. O texto avança depois para o enquadramento da PPN dentro do chamado Cluster B das perturbações de personalidade, explorando as semelhanças e diferenças em relação a outros distúrbios como a Perturbação de Personalidade Borderline, Histriónica e Antissocial. São então apresentados os critérios de diagnóstico da PPN de acordo com a DSM-5. De seguida são discutidas as principais ferramentas de rastreio, como o NPI, PNI, MCMI e PDQ-4+, abordando as suas aplicações, pontos fortes e limitações na prática clínica e de investigação. Finalmente, em adição aos instrumentos de rastreio mencionados, é também apresentado um questionário informal que, embora não substitua um diagnóstico clínico, permite compreender se um parceiro é narcisista.
Para compreender a PPN é fundamental começar pela distinção entre traço de personalidade, personalidade e perturbação de personalidade.
Traços de personalidade são padrões relativamente estáveis de pensamento, emoção e comportamento que caracterizam a forma como uma pessoa interage consigo própria, com os outros e com o mundo à sua volta. Podem ser vistos como tendências ou disposições que influenciam a maneira de perceber situações, tomar decisões e reagir emocionalmente. Estes traços variam de intensidade entre pessoas e também ao longo da vida de uma mesma pessoa, e não implicam necessariamente qualquer disfunção. Pelo contrário, quando são flexíveis e adaptáveis, contribuem para o funcionamento equilibrado e saudável da personalidade. Eles não definem tudo sobre uma pessoa (o contexto, as experiências de vida e o estado emocional momentâneo também contam), mas representam um núcleo relativamente consistente ao longo do tempo. Para classificar traços de personalidade existem vários modelos na psicologia, sendo os mais usados os seguintes:
Modelo Big Five (ou OCEAN): este é um dos mais aceites cientificamente identificando cinco grandes dimensões que representam tendências relativamente estáveis ao longo da vida, mas que existem num continuum:
Abertura à Experiência (Openness): Curiosidade intelectual, imaginação, criatividade e abertura a novas ideias e experiências. Alta: Interesse por arte, cultura, ciência, viagens, inovação, apreciação pela beleza e pela complexidade; Baixa: Preferência pela rotina, por métodos tradicionais, menor interesse em ideias abstratas ou experiências novas.
Conscienciosidade (Conscientiousness): Grau de organização, autodisciplina, responsabilidade e orientação para objetivos. Alta: Planeamento rigoroso, pontualidade, persistência, cumprimento de compromissos; Baixa: Maior propensão à impulsividade, desorganização e procrastinação.
Extroversão (Extraversion): Tendência a procurar estimulação externa e a sentir-se revitalizado através da interação social. Alta: Sociabilidade, assertividade, entusiasmo, gosto por atividades em grupo; Baixa: Preferência por ambientes calmos, interação social mais restrita, recarregar energia sozinho.
Amabilidade (Agreeableness): Grau de empatia, cooperação e preocupação com os outros. Alta: Confiança, altruísmo, gentileza, disposição para ajudar; Baixa: Competitividade, ceticismo, frieza, tendência para priorizar interesses próprios.
Neuroticismo (Neuroticism): Tendência a emoções negativas como como ansiedade, raiva ou tristeza. Alta: Maior sensibilidade ao stress, preocupação excessiva, instabilidade emocional; Baixa: Calma, resiliência, capacidade de manter-se equilibrado em situações de pressão.
Traços segundo o DSM-5: no contexto clínico, especialmente para avaliar perturbações de personalidade, o DSM-5 propõe dimensões que descrevem variações extremas ou disfuncionais dos traços. Os principais são:
Afetividade negativa (ansiedade, depressividade, hostilidade)
Distanciamento (frieza emocional, isolamento social)
Antagonismo (manipulação, grandiosidade, insensibilidade)
Desinibição (impulsividade, irresponsabilidade)
Psicoticismo (pensamento excêntrico, perceções incomuns)
Outras classificações
MBTI (Myers-Briggs Type Indicator): combina preferências como Introversão vs. Extroversão, Pensamento vs. Sentimento, entre outras, para criar 16 tipos de personalidade.
Enneagrama: classifica em 9 tipos motivacionais principais.
Traços de Temperamento (Cloninger): distingue dimensões como procura de novidade, evitação de danos, dependência de recompensa e persistência.
Traços não são "caixas fechadas" mas escalas contínuas, e cada indivíduo pode ter níveis diferentes em cada dimensão. Um traço só se torna problemático quando é extremo, inflexível e prejudica o funcionamento diário ou as relações.
Por sua vez a Personalidade consiste no conjunto integrado e estável de padrões de perceção, emoção e comportamento que moldam a forma como a pessoa interpreta o mundo e responde a ele. É composta por múltiplos traços interligados, que, em conjunto, criam um estilo consistente de pensar, sentir e agir. Por exemplo, uma personalidade saudável combina autoconfiança com empatia, permitindo à pessoa reconhecer o seu valor sem precisar diminuir os outros. Os aspeto-chave do conceito de Personalidade são:
Duradoura: Mantém-se estável ao longo do tempo, especialmente na idade adulta
Consistente: Predizível em diferentes situações e contextos
Individualizante: Única para cada pessoa, permitindo distinguir indivíduos
Cognitivo-afetiva: Engloba pensamentos, emoções, motivações e valores
Comportamental: Expressa-se na forma como agimos e interagimos social e profissionalmente
Quando um ou mais traços de personalidade se tornam inflexíveis, excessivamente dominantes e resistentes à mudança, a ponto de interferirem de forma significativa e prolongada com a vida da pessoa, afetando relacionamentos, desempenho profissional, capacidade de autocuidado e bem-estar geral, entramos no território da perturbação de personalidade. Nestes casos, o indivíduo passa a interpretar o mundo e os outros a partir de um prisma fixo e distorcido, como descreve o DSM-5, apresentando padrões disfuncionais que se mantêm ao longo do tempo e não se limitam a fases ou circunstâncias específicas.
Em particular, a Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), não se resume a uma autoestima elevada ou a um gosto por reconhecimento. Trata-se de um padrão crónico e rígido em que o indivíduo se vê a si próprio como intrinsecamente superior e exige que os outros validem constantemente essa visão. O indivíduo com PPN tende a interpretar qualquer discordância como um ataque pessoal e reage com hostilidade, desprezo ou retraimento punitivo. A sua necessidade de validação externa é incessante, e mesmo quando parece seguro de si, essa segurança é superficial e frágil, dependendo do reflexo que recebe dos outros.
É importante salientar que enquanto a autoconfiança saudável permite que a pessoa reconheça os seus méritos, aceite críticas construtivas e mantenha relacionamentos baseados em reciprocidade, o narcisismo patológico enraíza-se numa necessidade constante de validação externa e numa visão distorcida do próprio valor, frequentemente acompanhada por comportamentos manipuladores e desvalorizadores em relação aos outros. Esta diferenciação é essencial, pois a palavra "narcisismo" é usada no discurso popular de forma vaga e muitas vezes imprecisa. Sem esta clarificação, corre-se o risco de confundir comportamentos comuns e inofensivos com padrões patológicos profundos e duradouros que, no caso da PPN, têm impacto significativo na vida da pessoa e naqueles que a rodeiam.
O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5) agrupa as perturbações de personalidade em três clusters:
Cluster A: inclui transtornos excêntricos associados à desconfiança e isolamento social: paranoide, esquizóide e esquizotípico.
Cluster B: onde se enquadra a PPN, agrupa transtornos emocionais, dramáticos e erráticos marcados por impulsividade, regulação emocional deficiente e padrões de relacionamento destrutivos: borderline, histriónico, antissocial e narcisista.
Cluster C: inclui transtornos ansiosos caracterizados por medo, insegurança ou submissão: dependente, evitante e obsessivo‑compulsivo.
As Perturbações de Personalidade do Cluster B são um grupo de condições caracterizadas por padrões de comportamento dramáticos, emocionais ou erráticos. Encontram-se no mesmo cluster dado que compartilham traços como impulsividade, instabilidade e dificuldades significativas nos relacionamentos interpessoais que tendem a ser intensos, conflituosos e instáveis.
Embora todos os transtornos do Cluster B apresentem características dramáticas e instáveis, as suas motivações subjacentes, os comportamentos dominantes e a forma como afetam os outros diferem consideravelmente.
Na Perturbação de Personalidade Borderline a instabilidade emocional e o medo de abandono dominam o funcionamento psíquico, conduzindo a comportamentos impulsivos e reações intensas. Já na Perturbação de Personalidade Antissocial a motivação central é o ganho pessoal e a ausência de consideração por normas sociais ou direitos alheios, o que frequentemente se traduz em comportamentos criminosos. A Perturbação de Personalidade Histriónica, por outro lado, gira em torno da necessidade de atenção constante, expressa de forma teatral e exuberante, com uma emocionalidade superficial mas intensa.
O indivíduo com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) distingue-se por manter, muitas vezes, uma fachada de estabilidade e autossuficiência, que mascara a dependência profunda da validação externa. Ao contrário do Borderline, raramente demonstra instabilidade emocional de forma explícita, preferindo preservar a imagem de controlo e superioridade. Em contraste com o Histriónico, a sua procura por atenção não é generalizada, mas seletiva: não quer qualquer tipo de atenção, mas sim aquela que reafirme a sua posição hierárquica imaginada. E, diferentemente do Antissocial puro, não procura somente benefício material ou vantagens objetivas, mas sobretudo alimentar o próprio ego.
Esta diferenciação é crucial para o diagnóstico clínico e para a compreensão das dinâmicas relacionais que envolvem a PPN. Embora partilhe com outras perturbações do Cluster B o traço de manipulação interpessoal, a forma como o faz e os objetivos que persegue são específicos e enraizados na sua visão inflacionada de si próprio.
A epidemiologia destas perturbações tem sido estudada sobretudo através de grandes inquéritos populacionais como o National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions (NESARC) e o National Comorbidity Survey Replication (NCS-R), ambos realizados nos Estados Unidos, bem como através de estudos europeus como o European Study of the Epidemiology of Mental Disorders (ESEMeD). A prevalência global estimada para qualquer perturbação de personalidade situa-se geralmente entre 9% e 15% da população adulta.
Entre as perturbações específicas, a Perturbação de Personalidade Obsessivo-Compulsiva (PPOC) surge consistentemente como a mais prevalente, com estimativas variando entre 2% e 7,9%, seguida de perto pela Perturbação de Personalidade Narcisista entre 0,5% e 6,2%. No contexto do Cluster B (que inclui as perturbações de personalidade Borderline, Antissocial, Histriónica e Narcisista), a PPN é a mais prevalente, particularmente quando se aplicam critérios diagnósticos mais abrangentes.
No caso específico da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), os dados epidemiológicos indicam uma prevalência populacional que, na maioria dos estudos, varia entre 0,5% e 6,2%, dependendo da metodologia de avaliação e da definição diagnóstica utilizada (DSM-5 vs. critérios mais restritivos). O NESARC, que é uma das maiores fontes de dados, aponta para valores em torno de 6% na população adulta dos EUA.
A PPN afeta até 6,2% da população (DSM-5) enquadrando-se como uma perturbação de personalidade do Cluster B (dramáticas/emocionais/instáveis), com impacto significativo nas relações interpessoais.
É uma perturbação da autoestima: envolve uma autoestima frágil e instável que conduz o indivíduo a desenvolver mecanismos de defesa rígidos para regular a mesma. Estas estratégias envolvem por exemplo um padrão persistente e disfuncional de idealização de si próprio como especial e superior, a necessidade de ser admirado e de constante validação externa (e.g. elogios, conquistas, submissão de terceiros) , a incapacidade de lidar com críticas, a desvalorização e exploração dos outros, a falta de empatia e uso das relações para a regulação emocional.
Formalmente, o diagnóstico de acordo com o DSM-5 consiste na verificação de cinco de nove critérios (American Psychiatric Association, 2013):
sentido exagerado de autoimportância (na fantasia ou no comportamento);
preocupação com fantasias de sucesso, poder, beleza ou amor ideal;
sentimento de ser especial e único, apenas podendo ser compreendido e/ou estar associado com outras pessoas especiais ou com determinado status;
necessidade excessiva de admiração;
expectativa de tratamento especial e favorável por outros;
exploração interpessoal (manipula terceiros, muitas vezes sem estes se aperceberem, para alcançar os seus objectivos);
ausência de empatia pelos sentimentos e necessidades dos outros (podendo existir empatia cognitiva);
inveja dos outros ou acreditar que os outros o invejam;
atitudes arrogantes ou dominadoras.
Contudo, as manifestações da PPN podem ser surpreendentemente diversas, por vezes até antagónicas na sua apresentação externa, embora a dinâmica interna subjacente (grandiosidade frágil, necessidade de admiração, falta de empatia) permaneça. Por outras palavras, as formas como os critérios anteriores se manifestam podem ser variadas, sendo frequentemente invisíveis ou dissimuladas para o exterior. Surgem assim várias apresentações da PPN:
Grandioso (Overt): Nesta forma, a grandiosidade e a necessidade de atenção são evidentes e dominantes no comportamento do indivíduo. As características são explícitas: exibicionismo, vaidade, autoconfiança excessiva, arrogância, manipulação e uma exigência contínua de admiração. Há pouca empatia e, quando desafiado ou criticado, o indivíduo pode reagir com agressividade ou raiva narcisista. É a imagem mais "clássica" do narcisista.
Vulnerável (Covert): Ao contrário do overt, o narcisista vulnerável apresenta comportamentos dissimulados e passivo-agressivos. A grandiosidade é mascarada por uma aparente vitimização, falsa humildade, ansiedade social ou um sentimento crónico de injustiça e privação. São hipersensíveis à crítica e podem retirar-se ou expressar ressentimento de forma indireta. Embora pareçam modestos e até tímidos, internamente mantêm um senso de grandiosidade e uma necessidade intensa de serem reconhecidos e admirados, muitas vezes sentindo-se incompreendidos.
Comunal: Esta forma de narcisismo foca-se na imagem de boa pessoa ou altruísta. O indivíduo procura validação e admiração através de atos de serviço, caridade ou dedicação a causas sociais. No entanto, por trás dessa fachada de benevolência, existe uma necessidade profunda de ser visto como especial, moralmente superior e insubstituível. A sua generosidade é frequentemente motivada pelo desejo de reconhecimento e louvor, e não por uma empatia genuína. Podem orgulhar-se excessivamente dos seus sacrifícios e esperam admiração pelas suas ações altruístas.
Maligno: Considerada a forma mais grave e patológica de narcisismo, o narcisista maligno combina traços de transtorno de personalidade narcisista com características antissociais, paranoia e agressão. Além da grandiosidade e falta de empatia, há uma propensão à exploração, crueldade, e prazer em causar sofrimento aos outros. Podem manifestar total ausência de remorso ou culpa.
De esclarecer aqui a dúvida que por vezes ocorre na diferenciação entre a autoconfiança saudável do narcisismo. A autoconfiança saudável resulta de um desenvolvimento emocional equilibrado, empatia e responsabilidade pessoal sendo caracterizada pela crença sólida nas próprias capacidades, mas também pela consciência das limitações individuais. Pessoas autoconfiantes crescem em ambientes de suporte emocional e validação realística, desenvolvem empatia, capacidade de cooperação e regulação emocional, incluindo autocontrole, reflexão e responsabilidade pelos próprios erros. Em contraste, o narcisismo patológico envolve uma autoimagem inflamada sustentada por gratificações externas. Indivíduos com PPN dependem de elogios contínuos, ignoram a perspectiva dos outros e recusam em reconhecer falhas. Outra diferença reside na empatia e na responsabilidade emocional: a autoconfiança permite uma ligação real, enquanto o narcisismo mantém relações superficiais e utilitárias, prejudicando os outros. Os narcisistas são extremamente sensíveis à crítica e mantêm uma autoestima frágil, ao contrário da autoconfiança robusta. Por exemplo, Inês é segura de si: assume erros, pede desculpa, e procura melhorar o próprio comportamento. Paulo, com narcisismo, exige elogios, recusa críticas e qualquer falha o enfurece. Tende a culpabilizar os outros e a distorcer a realidade.
O rastreio de padrões narcisistas, seja em contexto clínico, forense ou de investigação académica, exige instrumentos psicométricos validados que permitam uma avaliação consistente e comparável. Embora nenhum destes testes substitua uma entrevista clínica estruturada ou um diagnóstico formal, constituem recursos valiosos para identificar perfis de risco, mapear dimensões específicas do narcisismo e compreender como este se manifesta em diferentes populações. Entre os instrumentos mais relevantes destacam-se:
O Narcissistic Personality Inventory (NPI), desenvolvido por Robert Raskin e Calvin Hall em 1979, é provavelmente o questionário mais conhecido na investigação do narcisismo. Concebido inicialmente para avaliar o traço narcisista em indivíduos não clínicos, foi posteriormente adaptado para diferentes formatos, incluindo as versões NPI-40 (com 40 itens) e NPI-16 (mais concisa e adequada a contextos de tempo limitado). O NPI apresenta pares de afirmações opostas, obrigando o participante a escolher aquela que mais o representa. Por exemplo, uma das opções pode refletir confiança e ambição, enquanto a outra indica modéstia ou cooperação. Embora útil para quantificar níveis de grandiosidade e autoimportância, não é um instrumento de diagnóstico clínico e não mede diretamente as dimensões vulneráveis do narcisismo. Por isso, o seu uso é mais frequente em estudos de personalidade, investigações sociopsicológicas e análises de perfis de liderança.
O Pathological Narcissism Inventory (PNI), desenvolvido por Aaron Pincus e colegas em 2009, surge como resposta à necessidade de um instrumento que capture não apenas as expressões grandiosas do narcisismo, mas também as suas facetas vulneráveis. Composto por 52 itens avaliados numa escala do tipo Likert (e.g. de "discordo totalmente" a "concordo totalmente"), o PNI abrange dimensões como a exploração interpessoal, a necessidade de admiração, a falta de empatia e a sensibilidade a críticas. É particularmente útil na investigação do narcisismo patológico, fornecendo um retrato mais equilibrado entre a imagem expansiva que o indivíduo tenta projetar e a fragilidade emocional que muitas vezes esconde. Além da investigação, pode também apoiar o processo de avaliação clínica, ajudando a clarificar padrões relacionais e defensivos.
O Millon Clinical Multiaxial Inventory (MCMI), atualmente na sua quarta edição (MCMI-IV, publicada em 2015), é um dos instrumentos mais amplamente utilizados para avaliação clínica de perturbações de personalidade e síndromes clínicas. Baseado na teoria de Theodore Millon, o MCMI é um questionário de autorresposta com cerca de 195 afirmações no formato verdadeiro/falso. O tempo médio de aplicação situa-se entre 25 e 30 minutos, sendo administrado geralmente em contexto clínico, psicológico ou forense. O teste inclui escalas específicas para o narcisismo e para outros padrões de personalidade, permitindo uma avaliação multidimensional que integra traços, sintomas e possíveis comorbilidades. A sua utilidade é reconhecida na elaboração de relatórios periciais, no planeamento terapêutico e na avaliação de risco.
O Personality Diagnostic Questionnaire-4+ (PDQ-4+), desenvolvido por Steven E. Hyler e publicado em 1994, segue um formato de 99 itens no formato verdadeiro/falso, cada um representando diretamente um critério diagnóstico do DSM-IV para as perturbações de personalidade. No caso do narcisismo, o PDQ-4+ aborda comportamentos, crenças e atitudes típicas desta perturbação de forma literal e direta. Uma das suas principais características é a elevada sensibilidade, o que significa que é eficaz a identificar potenciais casos para avaliação mais aprofundada. No entanto, a especificidade moderada implica que possa gerar falsos positivos, sobretudo em indivíduos que apresentam traços acentuados mas não preenchem critérios para diagnóstico. Por essa razão, é mais adequado como ferramenta de triagem inicial do que como instrumento definitivo de diagnóstico.
Apesar de cada uma destas ferramentas ter objetivos e públicos-alvo distintos, todas contribuem para um mapeamento mais rigoroso do narcisismo, permitindo distinguir entre a expressão de traços em contextos não patológicos e a presença de padrões clinicamente significativos. O seu uso criterioso, associado a entrevistas clínicas estruturadas e a observação longitudinal, constitui a abordagem mais robusta para compreender a complexidade e a diversidade das manifestações narcisistas.
Adicionalmente aos instrumentos de rastreio mencionados, existem outros questionários e inventários que permitem uma avaliação informal de traços narcisistas.
Um exemplo é o questionário proposto pela Dra. Ramani Durvasula, especialista em narcisismo. Embora não substitua um diagnóstico clínico, este recurso pode ser uma ferramenta valiosa para quem procura compreender se o parceiro é narcisista. Este questionário é formado por 30 questões de escolha dicotómica (Sim/Não). A resposta com "Sim" a 15 ou mais destas perguntas indica que é provável que tenha um parceiro patologicamente narcisista. Se 20 ou mais das respostas forem respondidas com "Sim" então é quase uma garantia que tem um parceiro patologicamente narcisista.
Este questionário, concebido para ajudar a identificar comportamentos e padrões associados ao narcisismo em contextos relacionais, está disponível numa versão digital em português através de um formulário Google Forms, na seguinte localização:
Questionário: É o seu parceiro narcisista?
(da autoria original da Dra.Ramani Durvasula PhD podendo ser encontrado na obra "Should I Stay or Should I Go?")
Gaspar sempre acreditou que a generosidade era uma elevada expressão de humanidade. Quando conheceu Bianca, essa crença pareceu ganhar corpo diante dele, como se tivesse encontrado uma encarnação viva de tudo o que admirava no altruísmo. Bianca era voluntária numa associação de apoio a famílias carenciadas, organizava campanhas solidárias na comunidade e parecia mover-se sempre com um sorriso acolhedor, irradiando uma aura de cuidado e empatia. Foi nesse contexto que Gaspar se aproximou dela, primeiro como colega de voluntariado, mais tarde como companheiro, até se ver envolvido numa relação que lhe parecia, no início, uma bênção.
A primeira fase do relacionamento foi marcada por uma atmosfera de constante admiração. Gaspar sentia-se orgulhoso por estar ao lado de uma mulher que todos viam como generosa, solidária e profundamente preocupada com os outros. A cada gesto de Bianca nos eventos comunitários, as pessoas não poupavam elogios à sua dedicação, e Gaspar, encantado, via nela uma espécie de guia moral, alguém que lhe mostrava como ser melhor. Bianca reforçava essa perceção com frases humanistas, como se possuísse uma sensibilidade especial para o sofrimento humano. Com frequência dizia-lhe que o verdadeiro amor se media pela capacidade de se sacrificar pelos outros. Gaspar acreditava.
Contudo, com o tempo pequenas fissuras começaram a surgir na imagem cristalina. Bianca, embora sempre envolta num discurso de bondade, mostrava em privado uma necessidade constante de reconhecimento e gratidão. Se Gaspar não elogiava os seus gestos ou não reconhecia de imediato o esforço que dizia fazer pela comunidade, ela reagia com frieza ou desaprovação. "Dedico-me a tantos e nem tu consegues perceber o quanto dou de mim", dizia-lhe num tom carregado de mágoa. Gaspar sentia-se culpado, como se o seu papel fosse o de testemunha permanente da virtude dela.
A dinâmica foi-se aprofundando. Bianca fazia questão de partilhar com todos os amigos e vizinhos os seus feitos altruístas, mas em casa cobrava uma espécie de tributo emocional. Gaspar passou a sentir que o amor dela estava condicionado à sua capacidade de reconhecer, aplaudir e engrandecer cada iniciativa. Se não o fizesse, surgiam acusações de ingratidão, acompanhadas de longos períodos de silêncio ou distanciamento emocional. Nesses momentos, Gaspar vivia uma intensa dissonância cognitiva. Por um lado, lembrava-se da imagem luminosa e carismática que Bianca projetava em público. Por outro, enfrentava a frieza, as críticas e a manipulação silenciosa no espaço íntimo.
Um dos mecanismos mais subtis utilizados por Bianca era o reforço intermitente. Após episódios de distanciamento e desvalorização, surgiam momentos em que ela parecia regressar à figura inicial, calorosa e dedicada. Organizava jantares inesperados, preparava surpresas e dizia a Gaspar que ele era o seu grande pilar, a única pessoa que realmente a compreendia. Esses gestos funcionavam como migalhas emocionais, um breadcrumbing sofisticado, suficientes para reacender nele a esperança de que a relação poderia voltar a ser como no início. A cada retorno da "boa" Bianca, Gaspar acreditava que a crise estava superada, apenas para descobrir mais tarde que se tratava de uma repetição cíclica, destinada a mantê-lo preso a uma esperança ilusória.
O impacto desta oscilação foi devastador. Gaspar começou a duvidar da sua própria perceção. Se a comunidade inteira via Bianca como um exemplo de altruísmo e generosidade, como poderia ele justificar a sensação de esgotamento e de abuso que experimentava? Essa contradição foi o núcleo do trauma que se consolidava: Gaspar sentia vergonha em admitir que estava a sofrer, pois parecia quase uma blasfémia acusar de manipulação alguém tão admirada e respeitada.
A relação prolongou-se durante anos, sustentada por este ciclo de idealização pública e desvalorização privada. Bianca nunca levantou a voz nem recorreu a agressões visíveis. O seu poder residia precisamente na subtileza, na capacidade de transformar a linguagem da bondade em arma de controlo. Ao acusar Gaspar de egoísmo ou falta de gratidão, ela invertia a lógica da relação, colocando-o na posição de devedor perpétuo. Assim, Gaspar viveu num estado constante de dívida emocional, acreditando que nunca fazia o suficiente para estar à altura da generosidade ostensiva de Bianca.
O trauma bonding instalou-se de forma insidiosa. Cada ato de afeto que Bianca oferecia após períodos de frieza funcionava como um alívio intenso, comparável a uma recompensa rara e preciosa. Essa intermitência tornou-se viciante. Gaspar começou a medir o seu próprio valor através da validação de Bianca, convencendo-se de que apenas ao seu lado poderia ser digno de amor e respeito. A sua autoestima erodiu lentamente, substituída por uma dependência emocional tão forte que o afastamento parecia inconcebível.
Foi apenas após um episódio particularmente revelador que Gaspar começou a questionar a natureza da relação. Durante um evento solidário, Bianca foi elogiada publicamente pela sua dedicação, e ele, sentado na plateia, percebeu que a mulher aplaudida com entusiasmo era radicalmente diferente da figura que o esperava em casa. Nesse instante, a cisão entre máscara pública e realidade íntima tornou-se impossível de ignorar. Gaspar deu os primeiros passos para procurar ajuda terapêutica, onde lhe explicaram que o que vivia era consistente com o padrão de narcisismo comunal: uma forma de manipulação que se veste de altruísmo, mas que, em essência, alimenta a mesma necessidade de controlo e de validação que outros tipos de narcisismo.
A história de Gaspar e Bianca ilustra de forma clara o modo como o narcisismo comunal se distingue pela sua subtileza. Ao contrário do narcisista grandioso, que exibe poder e superioridade de forma explícita, o comunal constrói a sua identidade através da virtude, da solidariedade e da aparente dedicação ao próximo. No entanto, essa fachada não elimina a dinâmica abusiva, apenas a mascara, tornando-a ainda mais difícil de reconhecer e denunciar. Para a vítima, o aprisionamento psicológico é reforçado pela contradição entre o olhar público e a experiência privada, o que alimenta a dissonância cognitiva, o reforço intermitente e, finalmente, o trauma bonding.
Ao integrar este caso no quadro mais amplo da conceptualização clínica da Perturbação de Personalidade Narcisista, percebe-se que as manifestações do narcisismo não são uniformes, mas adaptadas a contextos e estratégias individuais. O tipo comunal, encarnado por Bianca, demonstra que a bondade pode ser instrumentalizada, convertida em palco de reconhecimento e poder, à custa da erosão emocional daqueles que, como Gaspar, se tornam prisioneiros de uma narrativa construída para servir o narcisista.
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