Esta secção apresenta situações hipotéticas de dinâmicas relacionais que poderão ser observadas em contextos envolvendo indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). O objetivo é oferecer exemplos ilustrativos em contextos diversificados que permitam praticar o reconhecimento de padrões de manipulação, controlo e instabilidade emocional, proporcionando uma compreensão mais clara dos mecanismos subjacentes.
Cada caso descrito procura demonstrar, de forma prática, como manifestações aparentemente pontuais, desde episódios de desvalorização subtil até comportamentos de abuso aberto, se inserem em estratégias consistentes de manutenção de poder e de fragilização da pessoa alvo.
Ao analisar estas narrativas, pretende-se não apenas identificar os sinais comportamentais característicos, mas também compreender o seu impacto na vítima, nomeadamente ao nível da autoestima, da perceção da realidade e da segurança emocional.
Trata-se, assim, de um recurso pedagógico destinado a apoiar o reconhecimento precoce destas dinâmicas e a promover uma leitura crítica dos processos relacionais, contribuindo para a prevenção e intervenção em contextos de abuso psicológico associado à Perturbação de Personalidade Narcisista.
Este recurso pedagógico será periodicamente atualizado com novos casos ilustrativos.
Quando a pessoa alvo tira fotografias para guardar recordações de momentos especiais, como férias ou eventos importantes, o/a narcisista ridiculariza o gesto, afirmando em tom depreciativo:
"Isso é estúpido!"
Esta frase é usada de forma recorrente para desvalorizar e gozar com comportamentos comuns ou práticos da pessoa alvo. Por exemplo, quando esta congela pão para ter disponível em dias em que não é possível comprar fresco, o/a narcisista volta a reagir com desdém, apesar de usufruir da situação:
"Isso é estúpido! Ninguém faz isso!"
Interpretação:
Este tipo de comportamento evidencia uma forma subtil mas persistente de desvalorização emocional e manipulação psicológica.
Ao ridicularizar ações perfeitamente legítimas e comuns, como tirar fotografias para guardar memórias ou conservar pão, o/a narcisista procura minar a autoestima e a autonomia da pessoa alvo. Esta técnica de ataque verbal repetitivo, aparentemente inofensiva e até informal, é muitas vezes normalizada dentro da relação, mas tem um efeito profundo: reforça a ideia de que os gostos, hábitos ou decisões da pessoa alvo são ridículos, inválidos ou inferiores.
A repetição da expressão "Isso é estúpido!" funciona como um gatilho de humilhação constante, tornando o ambiente emocional tóxico e altamente crítico. A inclusão de generalizações como "Ninguém faz isso!" é uma estratégia clássica de manipulação argumentativa, conhecida por apelando a uma norma inexistente, que pretende isolar a pessoa alvo e induzi-la a duvidar do seu próprio juízo.
Trata-se, portanto, de um mecanismo de controlo relacional encoberto, que pretende desencorajar a autonomia e espontaneidade da pessoa alvo, reduzir a sua confiança nas próprias decisões e hábitos, e impor os gostos e visão de mundo do/a narcisista como única via válida.
A médio e longo prazo, estas microagressões constantes erosionam o bem-estar psicológico da pessoa alvo, que pode começar a antecipar crítica ou ridicularização em situações triviais, tornando-se cada vez mais insegura ou passiva. Trata-se de uma forma de abuso emocional insidiosa e frequentemente invisível para o exterior.
Frequentemente, o/a narcisista insiste em caminhar à frente da pessoa alvo quando estão juntos na rua ou em espaços públicos. Sempre que a pessoa alvo tenta acompanhar o ritmo, apressando o passo para caminhar lado a lado, o/a narcisista acelera ainda mais para manter a distância à frente. Quando a pessoa alvo comenta o desconforto ou lhe pede para irem lado a lado, como sinal de proximidade e companheirismo, o/a narcisista responde com um sorriso malicioso (smirk) e diz:
"Tu é que não me estás a acompanhar!"
Interpretação:
Esta situação ilustra um exemplo subtil mas significativo de afirmação de poder, controlo relacional e desvalorização encoberta, características comuns em dinâmicas narcisistas.
O ato repetido de caminhar deliberadamente à frente, e de acelerar ainda mais quando a pessoa alvo tenta aproximar-se, não é apenas um comportamento prático ou casual, revelando uma afirmação simbólica de superioridade e domínio. O/a narcisista estabelece um ritmo unilateral e recusa ajustar-se, mostrando falta de empatia e desconsideração pelas necessidades ou conforto do outro.
A resposta, "Tu é que não me estás a acompanhar!", acompanhada de um sorriso malicioso, reforça este desequilíbrio. Em vez de reconhecer a intenção de proximidade da pessoa alvo, o/a narcisista devolve a responsabilidade e a culpa, sugerindo que a falha está no outro. Este desvio acusatório é uma forma subtil de gaslighting, que invalida a experiência da pessoa alvo e a faz sentir-se inadequada ou insuficiente.
Além disso, o sorriso malicioso (smirk) é um sinal não-verbal poderoso de desprezo encoberto e satisfação com a humilhação do outro. É uma forma de comunicação que reforça a hierarquia relacional, deixando a pessoa alvo emocionalmente desconfortável, frustrada ou ansiosa.
Em conjunto, este padrão de comportamento não é um simples mau hábito, mas um microcomportamento de controlo que, repetido no tempo, contribui para a construção de uma relação desigual, onde o/a narcisista estabelece as regras de proximidade e distanciamento de forma unilateral, criando insegurança e diminuindo a autonomia emocional da pessoa alvo.
A pessoa alvo, num tom calmo e normal, pede ao/à narcisista para não deixar roupa interior suja espalhada pelo chão das várias divisões da casa. É habitual encontrar cuecas sujas no chão da sala, casa de banho ou quarto, onde podem permanecer vários dias até a pessoa alvo as recolher.
Perante este pedido de higiene e organização, o/a narcisista reage com raiva e acusações:
"És um(a) machista/femista*. Queres controlar-me!"
Num gesto impulsivo, termina de imediato a relação e dirige-se para sua casa. Passados alguns dias, o/a narcisista envia mensagens através de chat como se nada tivesse ocorrido, chegando mesmo a sugerir planos para se encontrarem nesse dia. Quando confrontado(a) com o que aconteceu, interrompe abruptamente a comunicação durante vários dias. Mais tarde, reaparece de forma inesperada num dos locais habitualmente frequentados pela pessoa alvo, voltando a agir como se nada se tivesse passado. Esta situação repete-se ciclicamente.
* Femista - descreve uma pessoa que acredita na superioridade da mulher sobre o homem e defende um sistema matriarcal em vez de um patriarcal, o que é conhecido como femismo. É uma ideologia que prega a opressão e desvalorização do homem, sendo o oposto do feminismo, que procura a igualdade de direitos e oportunidades entre os géneros
Interpretação:
Esta situação é um exemplo claro de evasão de responsabilidade, inversão acusatória e manipulação relacional cíclica, características recorrentes em dinâmicas envolvendo indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN).
O pedido da pessoa alvo é legítimo, construtivo e focado em padrões mínimos de respeito e organização no espaço partilhado. No entanto, o/a narcisista reage com uma acusação moral extrema (machismo/femismo), deslocando a conversa de um tema prático para uma suposta ofensa ideológica. Esta tática serve para anular a validade do pedido e proteger o comportamento desrespeitoso, ao mesmo tempo que culpabiliza o outro e invalida a sua experiência.
O término abrupto da relação constitui uma forma de punição emocional e chantagem relacional, introduzindo instabilidade e sofrimento. Ao sair para a sua própria casa, o/a narcisista exerce simbolicamente o controlo da situação, abandona, mas deixa a porta entreaberta para regressar quando lhe for conveniente.
As mensagens que surgem dias depois, ignorando completamente o episódio anterior, representam uma tática clássica de hoovering, uma tentativa de retomar o contacto sem assumir qualquer responsabilidade. Quando confrontado/a, o silêncio prolongado e o reaparecimento casual, como se nada tivesse ocorrido, reforçam um padrão de desregulação emocional deliberada.
Este ciclo repetido de tensão » ruptura » silêncio » reaproximação mantém a pessoa alvo num estado constante de incerteza e instabilidade, impedindo a definição de limites e a construção de uma relação segura. Trata-se de uma forma de abuso psicológico intermitente, com impacto profundo na autoestima, clareza emocional e capacidade de autodeterminação da pessoa alvo.
O/A narcisista demonstra durante a relação um padrão constante de descuido com os bens materiais da pessoa alvo. Utiliza o carro, livros e equipamentos eletrónicos de forma negligente ou brusca, chegando a danificá-los. Quando a pessoa alvo lhe pede maior cuidado, o/a narcisista reage com agressividade, dizendo frases como:
"Eu não sou sensível como tu. Se quiseres nem utilizo!"
Em contraste, na casa que adquiriu durante a relação, apesar de viver maioritariamente na casa arrendada e paga integralmente pela pessoa alvo há longos anos, demonstra grande zelo com os próprios bens. Por exemplo, usa a sua máquina de lavar louça com muito cuidado e chega a advertir a pessoa alvo para manuseá-la com cautela. Já na casa da pessoa alvo, atira talheres e louça para dentro da máquina com força excessiva, chegando mesmo a danificar a máquina e a partir duas cestas de talheres devido à violência com que os colocava.
Interpretação:
Esta situação exemplifica o duplo padrão de cuidado e desvalorização instrumental, estratégias comuns em dinâmicas narcisistas. O descuido sistemático com os bens da pessoa alvo revela uma falta de empatia e um desrespeito intencional pelos limites e pelo valor emocional ou financeiro que esses objetos possam ter para o outro.
Quando confrontado com pedidos legítimos de cuidado, o/a narcisista responde com agressividade defensiva e ameaças de retirada (“se quiseres nem utilizo”), tentando inverter a culpa e colocando a pessoa alvo na posição de controlador ou excessivamente sensível. Isto serve para silenciar pedidos razoáveis e manter a liberdade de agir sem consideração.
O contraste com o cuidado demonstrado na sua própria casa evidencia consciência plena da diferença de tratamento. Mostra que o/a narcisista é capaz de manusear objetos com zelo quando lhe convém, o que desmonta qualquer desculpa de falta de jeito ou personalidade descuidada. Trata-se de uma escolha deliberada que comunica desvalorização e desprezo pelo espaço e pelos limites do parceiro/alvo.
Este padrão reforça o desequilíbrio de poder na relação, onde a pessoa alvo se vê forçada a tolerar danos, custos adicionais ou stress emocional, enquanto o/a narcisista protege os seus próprios bens e interesses. Em conjunto, constitui uma forma de abuso psicológico subtil através de negligência seletiva e imposição de regras assimétricas.
O/A narcisista oferece à pessoa alvo grãos de kefir para a produção de iogurte caseiro que obteve através de uma amiga. Quando a pessoa alvo agradece e, de forma prática, propõe dividir a tarefa de coar e cuidar dos grãos (uma manutenção regular e necessária), o/a narcisista reage de forma agressiva, afirmando:
"A prenda é tua! Por isso é tua responsabilidade cuidar dela!"
Recusa qualquer colaboração, apesar de ser o/a principal interessado/a no consumo do iogurte. Em seguida, termina a relação de forma abrupta e vai-se embora. Após alguns dias, volta a aparecer em casa da pessoa alvo, agindo como se nada tivesse acontecido. Esta situação repete-se ciclicamente.
Interpretação:
Este episódio ilustra uma forma subtil de exploração instrumental e desresponsabilização intencional, características típicas em relações marcadas por traços narcisistas. Embora a oferta do kefir se apresente como uma prenda para a pessoa alvo, o objetivo prático é garantir um benefício para o/a narcisista através do acesso pessoal dele(a) ao produto final (iogurte caseiro).
Ao mesmo tempo, ao recusar qualquer colaboração na manutenção necessária dos grãos, o/a narcisista impõe uma divisão de tarefas injusta e unilateral: apropria-se do benefício enquanto transfere a totalidade do trabalho para o outro.
A reação agressiva quando a pessoa alvo sugere uma divisão justa é uma forma de manipulação emocional: redefine a narrativa para que qualquer pedido de cooperação pareça uma violação das regras do presente. Esta inversão de responsabilidade é típica de dinâmicas narcisistas, onde a pessoa alvo acaba sobrecarregada com obrigações práticas e emocionais enquanto o/a narcisista preserva conforto, conveniência e controlo.
Em suma, trata-se de um padrão de abuso psicológico subtil que combina presentes condicionados, expectativas assimétricas e recusa de reciprocidade, criando uma relação de dependência e desequilíbrio constante.
Na piscina municipal, o/a narcisista fixa repetidamente a/o nadador-salvador com o olhar, comportamento que já ocorrera noutras ocasiões. Quando a pessoa alvo lhe pergunta calmamente o motivo de tanta atenção, ela reage de forma ríspida:
"Isso é tudo na tua cabeça. És muito ciumento(a)!"
Em seguida, levanta-se e abandona a piscina, deixando a pessoa alvo sozinho(a). Após terminar o treino, a pessoa alvo sai da pista e é interpelado(a) pelo(a) nadador-salvador, que, de forma educada, lhe pergunta se existe alguma relação entre a pessoa alvo e o/a narcisista, referindo que este(a) último(a) parecia ter demonstrado interesse e ele(a) não queria interpretar mal a situação.
Interpretação:
Este episódio exemplifica negação, gaslighting e punição relacional, estratégias frequentemente usadas em interações com características narcisistas. A primeira reação do(a) narcisista, "Isso é tudo na tua cabeça. És muito ciumento(a)!", é um claro exemplo de gaslighting: ele(a) invalida a perceção da pessoa alvo, transformando uma observação legítima sobre o seu comportamento repetido num suposto defeito ou problema psicológico do outro.
Esta tática desorienta a pessoa alvo e cria dúvida sobre a própria leitura da realidade, minando a confiança pessoal. A saída abrupta da piscina é um ato de punição relacional, que o isola, envergonha e o/a força a lidar sozinho/a com as consequências emocionais.
A confirmação indireta da situação vem do(a) nadador-salvador, que, percebendo o interesse demonstrado, sente necessidade de esclarecer os limites. Isto valida objetivamente a perceção inicial da pessoa alvo e evidencia que o problema não era imaginação ou ciúme infundado, mas sim um comportamento real do(a) narcisista.
Em termos mais amplos, este padrão demonstra como o/a narcisista pode negar factos óbvios, culpar a pessoa alvo pela reação emocional e abandonar fisicamente ou emocionalmente a interação, para evitar responsabilidade e manter controlo psicológico. Ao longo do tempo, tais dinâmicas podem causar grande insegurança e desgaste emocional na pessoa alvo.
A pessoa alvo chega a casa depois de várias horas sem comer e encontra o/a narcisista a aquecer comida pré-cozinhada numa frigideira. Sentindo fome imediata, ele(a) pega numa maçã e começa a comê-la. O/A narcisista reage com um ataque de raiva:
"Achas a minha comida má, não é?!"
Num gesto dramático, atira a frigideira com a comida para o lava-louça e sai de casa, a pé, deixando a porta escancarada. Os vários gatos de ambos fogem para a rua, obrigando a pessoa alvo a ir procurá-los. Depois, passa parte da noite chuvosa a procurar pelo(a) narcisista pelas ruas.
Interpretação:
Este episódio ilustra uma combinação de interpretação hostil, dramatização emocional e punição relacional, todas estratégias comuns em dinâmicas narcisistas. A reacção inicial, de acusar a pessoa alvo de desprezar a sua comida só por comer uma maçã, demonstra leitura distorcida e personalizada de um ato neutro, convertendo um comportamento prático e factual numa suposta afronta ou desvalorização pessoal.
O ataque de raiva, o ato teatral de atirar a frigideira e sair de casa sem fechar a porta cumprem uma função de intimidação emocional e controlo: forçam a pessoa alvo a interromper tudo para gerir o caos, desde resgatar os animais até procurar pelo(a) narcisista na cidade. Isto cria uma situação de culpa e obrigação, deslocando o foco da sua necessidade legítima (comer rapidamente) para a suposta mágoa do(a) narcisista.
Em conjunto, este padrão evidencia uma manipulação emocional sistemática, em que o/a narcisista cria crises artificiais para obter controlo, alimentar a dependência emocional e reforçar o desequilíbrio de poder na relação.
Sempre que a pessoa alvo tenta, de forma calma e factual, descrever determinados comportamentos abusivos ou injustos, na esperança de os discutir e melhorar a relação, o/a narcisista reage com indignação e emoção intensa, afirmando frases como:
"Não posso estar com alguém que me diz coisas tão horríveis!"
Imediatamente após essas acusações, termina a relação de forma abrupta, e vai-se embora. Após alguns dias, surge inesperadamente num dos locais frequentados pela pessoa alvo, comportando-se como se nada se tivesse passado. Esta situação repete-se ciclicamente.
Interpretação:
Esta resposta ilustra uma forma de desvio emocional (emotional deflection) e inversão de vítima e agressor (DARVO) muito comum em dinâmicas narcisistas. Em vez de escutar e refletir sobre o comportamento apontado, o/a narcisista transforma imediatamente o conteúdo factual em ataque pessoal, acusando a pessoa alvo de crueldade ou violência verbal.
Consequentemente, o foco da conversa desloca-se do problema real para a suposta ofensa da pessoa alvo, que acaba na defensiva ou sentindo culpa. Este mecanismo serve para evitar assumir responsabilidade, silenciar críticas legítimas e manter controlo da narrativa.
Trata-se de uma estratégia típica de gaslighting emocional, pois distorce o significado de um diálogo honesto em algo ofensivo, levando a pessoa alvo a questionar se foi realmente horrível ao simplesmente relatar factos ou pedir mudanças. Ao longo do tempo, este padrão mina a capacidade da pessoa alvo de estabelecer limites saudáveis ou de comunicar problemas sem medo de retaliação emocional.
No início da relação, o/a narcisista assume um tom confidente e diz à pessoa alvo:
"Quero ser sincero(a) contigo: sou muito ciumento(a). Não suporto mentiras nem segredos. Mas aviso já que não admito que tenhas ciúmes de mim."
A pessoa alvo, apanhada de surpresa, sente-se pressionada a aceitar estas condições como parte do acordo implícito na relação.
Interpretação:
Esta interação exemplifica uma estratégia de normalização antecipada de controlo e de estabelecimento de um duplo padrão. O/a narcisista revela o próprio ciúme como se fosse uma honestidade desarmante, mas define desde o início uma regra desigual: ele/ela terá permissão para ser ciumento e vigilante, enquanto a pessoa alvo não poderá questionar ou demonstrar os mesmos sentimentos.
Isto cria uma assimetria de poder característica de relacionamentos abusivos com narcisistas, onde estes se reservam a direitos especiais e negam reciprocidade. Além disso, funciona como um teste de limites: quem aceita esta imposição inicial demonstra maior suscetibilidade a manipulações futuras. Este tipo de dinâmica antecipa padrões de controlo, vigilância e restrição emocional que são frequentes no abuso psicológico narcisista.
Durante longos anos de relação, o/a narcisista vive a maior parte do tempo na casa arrendada e paga integralmente pela pessoa alvo. A casa tem vários gatos, adotados por vontade do(a) narcisista, mas quando a pessoa alvo lhe pede para colaborar na limpeza da areia, o/a narcisista recusa de forma categórica, justificando:
"A casa é tua, por isso essa responsabilidade é tua."
Importa referir que, ao longo da relação, o/a narcisista comprou uma casa própria, para onde vai sempre que decide terminar a relação ou precisa, segundo ele(a), de se afastar por uns dias.
Interpretação:
Esta situação revela uma forma de exploração instrumental e de duplo padrão de responsabilidade comum em dinâmicas narcisistas. Apesar de usufruir durante anos de uma casa paga exclusivamente pela pessoa alvo, o/a narcisista nega qualquer obrigação de colaborar em tarefas domésticas, justificando-se com uma lógica conveniente e unilateral (a casa é dele(a), logo as tarefas são só dele(a)).
Este argumento evidencia evitação de responsabilidade e distorção cognitiva: o/a narcisista beneficia do espaço sem assumir deveres proporcionais, mantendo o parceiro sobrecarregado e submisso.
Adicionalmente, o facto de manter uma casa própria para onde se refugia durante os ciclos de término demonstra planeamento e controlo estratégico do vínculo. Esta base de fuga permite-lhe exercer chantagem emocional (ameaça de abandono) e manter a dinâmica de poder desigual, típica do ciclo de idealização, desvalorização e descarte em relacionamentos com características narcisistas.
No conjunto, trata-se de uma forma subtil de abuso psicológico que combina exploração financeira, desresponsabilização doméstica e instrumentalização da relação para garantir vantagens pessoais.
Sempre que a pessoa alvo critica com fundamento o comportamento ou discurso de figuras políticas como Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Marine Le Pen, o/a narcisista reage com agressividade, afirmando:
"Tu é que não compreendes nada! Não sabes do que estás a falar. O que ele diz e faz é tão inteligente que só depois é que as pessoas como tu conseguem perceber porquê!"
Estas intervenções surgem quando a pessoa alvo apresenta argumentos factuais e moderados. Frequentemente, as discussões sobre política com a pessoa alvo terminam invariavelmente com o/a narcisista a pôr fim à relação de forma abrupta. Passado algum tempo, volta a surgir inesperadamente num dos locais habitualmente frequentados pela pessoa alvo, agindo como se nada se tivesse passado. Esta situação repete-se ciclicamente.
Posteriormente, após trair a pessoa alvo com alguém do mesmo sexo, assumidamente adepto(a) da esquerda radical, e mais tarde iniciar uma relação com este(a), o/a narcisista muda repentinamente a sua postura ideológica e começa a utilizar merchandising ligado a causas sociais e políticas, como apoio à Palestina, antirracismo, ou movimentos antipatriarcais. Isto apesar de, anteriormente, defender privadamente posições de extrema-direita e demonstrar atitudes racistas.
Interpretação:
Esta situação ilustra uma combinação de inflexibilidade narcisista, manipulação ideológica oportunista e padrões cíclicos de punição e reaproximação, característicos de relações com traços de Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN).
A reação agressiva face a críticas a líderes autoritários, acompanhada de frases como "só depois é que as pessoas como tu conseguem perceber", mostra uma postura dogmática e impermeável à argumentação racional, típica de narcisistas que se identificam com figuras de poder, carismáticas ou disruptivas, porque estas reforçam a sua própria visão grandiosa de si mesmos.
Ao mesmo tempo, a mudança radical de posicionamento político e simbólico após uma traição, para se alinhar com os ideais da nova pessoa com quem se envolve, evidencia um comportamento camaleónico, comum em narcisistas com tendência para assimilação estratégica de identidade. Este fenómeno é conhecido como mirroring utilitário, onde o/a narcisista adapta ideologias, gostos e comportamentos para agradar ou absorver a nova fonte de validação, abandonando princípios previamente defendidos sem qualquer conflito interno.
A repetição do padrão, discussão, acusação, término da relação, fuga simbólica para a outra casa, reaparecimento casual e sem explicações, representa um ciclo típico de punição emocional, abandono calculado e hoovering. A oscilação ideológica não é sinal de crescimento ou reflexão, mas de instrumentalização do discurso político e emocional para controlo relacional e autoproteção.
No conjunto, este comportamento revela a falência empática (incapacidade de aceitar o ponto de vista do outro), instrumentalização ideológica (usar ideologias apenas quando convém, sem coerência), desrespeito pelo diálogo e pelo espaço relacional partilhado, e o uso do abandono como forma de controlo emocional, mantendo o outro num estado de incerteza e espera.
Estas são dinâmicas emocionalmente corrosivas, que podem provocar dissonância cognitiva intensa na pessoa alvo, levando-a a duvidar do que é real, justo ou lógico, um dos efeitos mais nefastos e silenciosos da convivência com um perfil narcisista manipulador.
O/A narcisista não gosta de conduzir, embora tenha carta e carro próprio. Por essa razão, durante anos, a pessoa alvo tem de o/a transportar para todo o lado, incluindo para o trabalho. Isto porque passando o/a narcisista a maior parte do tempo na casa arrendada, totalmente paga pela pessoa alvo, se recusa sistematicamente a conduzir ou a usar transportes públicos, exigindo que a pessoa alvo se adapte à sua rotina, mesmo que isso implique sair mais cedo, fazer desvios ou atrasar os seus próprios compromissos.
Após vários anos de relação, o/a narcisista ganha alguma confiança para começar a conduzir até ao trabalho. No entanto, continua a exigir que todas as restantes deslocações, como ir às compras, compromissos sociais ou passeios, sejam realizadas com o transporte, o tempo e o esforço da pessoa alvo. Esta situação prolonga-se no tempo, consumindo recursos financeiros e emocionais da pessoa alvo, que se sente constantemente responsabilizada pelo conforto e mobilidade do/a narcisista.
Interpretação:
Esta situação reflete um padrão clássico de comodismo abusivo associado a traços de grandiosidade passiva: o/a narcisista não exige com gritos ou imposições diretas, mas cria um contexto em que os pedidos parecem razoáveis, mesmo sendo sistematicamente desequilibrados e egoístas.
Vários elementos são reveladores deste tipo de abuso. Existe a desresponsabilização sistemática do(a) narcisista que evita qualquer iniciativa que envolva esforço, desconforto ou organização prática, mesmo quando tem os meios (carta de condução, viatura própria) para se autonomizar. Ocorre a instrumentalização do parceiro na qual a pessoa alvo se torna um meio para um fim, uma espécie de motorista pessoal. Ao longo do tempo, esta exigência passa a ser vista como natural ou até dever da pessoa alvo, sem reconhecimento ou reciprocidade. Verifica-se a inversão de papéis sendo a pessoa alvo colocada na posição de cuidador(a), motorista, facilitador(a), o que desequilibra o vínculo e mina a igualdade relacional. Dado que a exploração é prolongada, o desgaste é cumulativo com gastos com combustível, desgaste do automóvel, tempo despendido, stress logístico, tudo recaindo sobre a pessoa alvo, sem qualquer reconhecimento, tentativa de compensação ou divisão de tarefas. Por fim, observa-se o uso seletivo da autonomia dado que quando finalmente começa a conduzir para o trabalho, o/a narcisista demonstra que tem capacidade, o que torna claro que a dependência anterior não era estrutural, mas conveniente e manipulativa.
Este tipo de comportamento, muitas vezes mascarado por um ar de vulnerabilidade ou falta de confiança, é uma forma de controlo subtil: o/a narcisista mantém a pessoa alvo ocupada, disponível e centrada nas suas necessidades, dificultando que esta viva a sua própria vida com autonomia.
O/A narcisista trai a pessoa alvo com um(a) colega de trabalho do sexo oposto, portador(a) de uma condição física incapacitante. Mais tarde, procura reatar a relação com a pessoa alvo, afirmando que a traição foi um erro e que deseja sarar a relação.
Posteriormente, durante uma deslocação a um congresso, o/a narcisista envia fotos dos locais onde se encontra, acompanhadas de mensagens afetuosas dirigidas à pessoa alvo, dando a impressão de investimento no relacionamento. Contudo, a pessoa alvo, ao detetar inconsistências nas comunicações e comportamento do/a narcisista, acaba por verificar o telemóvel deste(a). Nele encontra chats com a pessoa com quem tinha sido anteriormente traída, que evidenciam que as mesmas fotos enviadas à pessoa alvo estavam a ser partilhadas, no mesmo momento, com essa terceira pessoa, incluindo convites explícitos para que esta se juntasse ao/à narcisista nos locais do congresso.
Perante a confrontação com provas objetivas de duplicidade e engano, o/a narcisista reage com raiva e indignação, acusando a pessoa alvo de violação de privacidade. Afirma ainda querer apresentar queixa na polícia e termina com a frase:
"Não posso estar com alguém que não confia em mim!"
Interpretação:
Esta situação reúne diversos comportamentos centrais em relações abusivas marcadas por traços narcisistas. Um dos mais evidentes é a traição associada à duplicidade emocional. O/A narcisista constrói duas narrativas paralelas: perante a pessoa alvo cria a ilusão de uma reconciliação sincera, enquanto em simultâneo mantém contacto íntimo e sedutor com a pessoa com quem traiu. Esta dinâmica corresponde a uma triangulação ativa, um jogo psicológico que alimenta o sentimento de poder e controlo do(a) narcisista, ao colocar ambas as pessoas num cenário de competição inconsciente pela sua atenção.
Outro elemento característico é a falsa reconciliação, frequentemente designada por hoovering. O envio de fotos e mensagens românticas funciona como uma tentativa calculada de reaproximação emocional, cujo verdadeiro objetivo não é reparar a relação, mas sim recuperar a posição de controlo. O facto de esta aproximação coexistir com a manutenção da ligação extraconjugal evidencia o carácter superficial e instrumental do arrependimento demonstrado.
Quando confrontado com provas objetivas da sua duplicidade, o/a narcisista recorre de imediato à inversão da culpa e ao gaslighting. O foco da discussão é desviado da substância (a traição) para a forma (o acesso ao telemóvel). A vítima é acusada de agir de forma imoral ou até ilegal, com ameaças de apresentação de queixa na polícia. Mais ainda, a moralidade é invertida quando o/a narcisista proclama: "Não posso estar com alguém que não confia em mim." A ironia cruel desta afirmação reside no facto de ser proferida precisamente por quem traiu e enganou, transformando a indignação legítima da vítima em motivo de dúvida sobre a validade dos próprios sentimentos e valores.
A desresponsabilização total percorre toda a cena. Não há espaço para empatia, introspeção ou reconhecimento da dor provocada. As prioridades do(a) narcisista centram-se na sua liberdade, privacidade e suposta necessidade de confiança, mesmo enquanto traem de forma ativa. O sofrimento da vítima não entra em consideração. Apenas a defesa do próprio ego e a fuga de qualquer responsabilização.
Um detalhe adicional acrescenta complexidade ao caso: a traição ter ocorrido com alguém que vive com uma deficiência. Este facto pode ser instrumentalizado pelo(a) narcisista como parte de uma estratégia de autopromoção moral, projetando a imagem de uma pessoa extraordinariamente humana, empática ou compreensiva. Essa narrativa serve como escudo social e emocional contra críticas externas, mas também como ferramenta de manipulação interna, reforçando a autoimagem grandiosa e justificando, aos olhos do próprio, comportamentos que seriam inaceitáveis em qualquer outra circunstância.
O/A narcisista recusa-se a comer qualquer refeição que contenha ervilhas, apesar de este alimento não lhe causar qualquer efeito adverso. A recusa não se limita a este alimento: existem dezenas de outros alimentos que o/a narcisista também rejeita de forma absoluta ou que apenas consente em comer se forem preparados de uma forma muito específica.
A pessoa alvo, por sua vez, vê-se impedida de incluir esses alimentos na alimentação doméstica, mesmo gostando deles e não havendo qualquer razão objetiva para a sua exclusão. Ao longo do tempo, a alimentação da pessoa alvo vai-se adaptando totalmente às preferências do/a narcisista, limitando escolhas e afetando o prazer e a autonomia alimentar.
Interpretação:
Este comportamento constitui uma forma subtil de controlo do quotidiano, típica de relações com pessoas com traços narcisistas. Quando o/a narcisista impõe as suas preferências alimentares com inflexibilidade, mesmo sem necessidade médica, está a estabelecer domínio sobre o espaço doméstico, os hábitos da outra pessoa e a dinâmica da relação.
A alimentação, sendo uma necessidade básica e uma forma central de prazer e autocuidado, torna-se aqui um instrumento de dominação relacional. A pessoa alvo é empurrada para uma posição de subjugação onde os seus gostos, necessidades e até o direito à autodeterminação alimentar são anulados em função do bem-estar exclusivo do/a narcisista. A mensagem implícita é: "Só os meus gostos contam. Os teus não têm valor."
Ao mesmo tempo, este tipo de controlo quotidiano, aparentemente banal, integra o fenómeno descrito como "matar aos poucos" ("death by a thousand cuts"): pequenas imposições contínuas que, somadas, criam um ambiente de pressão constante, de supressão da identidade da vítima e de desgaste psicológico. A pessoa alvo acaba por evitar conflitos e ceder preventivamente, entrando num ciclo de autonegação sistemática, típico das relações abusivas com narcisistas.
Este comportamento reforça a posição central e dominante do/a narcisista na relação e a invisibilização da pessoa alvo, cujas vontades se tornam irrelevantes. É uma das manifestações menos óbvias, mas mais persistentes, da dinâmica de poder e controlo narcisista.
O/A narcisista adota frequentemente comportamentos de flirt em diversos contextos. Em particular, faz uso sistemático de roupa provocadora. Estes comportamentos ocorrem em contextos variados, incluindo ambientes académicos e encontros sociais. Quando a pessoa alvo expressa, num tom calmo, o seu desconforto com o flirt recorrente e com a exposição do seu corpo, o/a narcisista reage com raiva, desvalorizando os sentimentos da pessoa alvo e invertendo a acusação:
"És muito insegura(o) e ciumenta(o)! Apenas tu vês problema com isso. Não posso viver com alguém que é insegura(o) e me quer controlar."
Importa referir que mesmo amigos(as) próximos(as) e os próprios familiares do(a) narcisista comentam o quão inadequado é o seu comportamento, e exposição.
Interpretação:
Este tipo de reação constitui um exemplo clássico de inversão da culpa, um mecanismo de gaslighting emocional frequentemente associado a traços narcisistas. Quando alguém com este perfil é confrontado com limites razoáveis, em vez de responder com empatia ou autorreflexão, tende a recorrer à acusação e à hostilidade. No caso em análise, a pessoa alvo exprime um desconforto legítimo perante comportamentos que geram ambiguidade afetiva e falta de respeito pela relação, sobretudo porque ocorrem de forma repetida e deliberada. Contudo, em vez de escutar ou reconhecer a validade desse sentimento, o/a narcisista reformula a situação, apresentando-se como vítima de controlo e opressão, enquanto desqualifica a pessoa alvo ao rotulá-la de insegura e ciumenta.
A manipulação emocional que se observa aqui cumpre várias funções simultâneas. Serve, em primeiro lugar, para desviar o foco da sua própria conduta, evitando qualquer análise ou responsabilização. Simultaneamente, procura envergonhar ou silenciar a pessoa alvo, criando um terreno de dúvida interna que a leva a questionar se os seus sentimentos são de facto legítimos. Finalmente, bloqueia a possibilidade de uma conversa honesta e construtiva sobre respeito e limites, uma vez que a discussão é imediatamente transformada numa acusação contra quem ousa colocar fronteiras.
A objetividade desta situação é ainda reforçada pela validação externa, já que tanto amigos(as) como familiares do/a próprio(a) narcisista reconhecem e comentam a inadequação do seu comportamento. Isto demonstra que o problema não reside apenas numa perceção subjetiva da pessoa alvo, mas corresponde a uma realidade partilhada e observada por terceiros. O padrão revela, assim, como o/a narcisista utiliza deliberadamente o corpo, o charme e a sensualidade como instrumentos de poder e de controlo dentro da relação. Simultaneamente, invalida qualquer reação que possa emergir da(o) parceira(o), apresentando-a como um ataque à sua liberdade pessoal. Na verdade, o que está em causa não é uma tentativa de limitar a sua autonomia, mas um pedido legítimo de respeito e reciprocidade, indispensável em qualquer relação íntima saudável.
Quando o/a narcisista e a pessoa alvo vão comer fora, o/a narcisista exige atenção absoluta da pessoa alvo durante toda a refeição. Se, por meros instantes, a pessoa alvo desviar o olhar para algo que lhe chama a atenção, como a entrada de alguém conhecido, uma criança a fazer birra ou qualquer outro acontecimento visível no espaço, o/a narcisista reage com raiva, interpelando agressivamente com perguntas do tipo:
"Por que estás a olhar para ali?"
Independentemente da resposta, acusa a pessoa alvo de não prestar atenção ao que está a ser dito e ameaça abandonar o restaurante caso isso volte a acontecer:
"Se voltares a tirar os olhos de mim, vou-me embora!"
Interpretação:
Esta situação exemplifica um padrão típico de controlo coercivo e vigilância emocional, frequentemente presente em dinâmicas abusivas com indivíduos que manifestam traços narcisistas. A exigência de atenção exclusiva, mesmo em espaços públicos onde a distração é natural e inevitável, traduz uma necessidade extrema de centralidade e domínio psicológico. Qualquer gesto ou olhar que escape ao controlo do(a) narcisista é interpretado como um ataque pessoal ou um sinal de desrespeito, o que reforça a sua posição de que deve estar constantemente no centro da atenção do outro, independentemente do contexto ou da naturalidade das interações sociais.
Este tipo de comportamento tem uma função manipuladora clara: desgasta emocionalmente a pessoa alvo, que passa a vigiar o seu próprio comportamento de forma obsessiva para evitar desencadear reações negativas. Cria-se, assim, uma atmosfera de tensão permanente, na qual até momentos teoricamente leves e descontraídos, como um simples jantar, se transformam em experiências marcadas pelo medo de represálias. Com o tempo, esta pressão constante isola emocionalmente, já que cada ocasião partilhada deixa de ser espontânea e prazerosa para se tornar num terreno imprevisível, onde a vítima nunca pode estar à vontade.
A ameaça de abandono imediato reforça ainda mais este mecanismo de controlo, funcionando como uma arma de coerção psicológica que obriga a pessoa alvo a adaptar-se e a moldar-se continuamente para evitar o conflito. Este processo instala uma dinâmica profundamente desigual e asfixiante, onde apenas os desejos e exigências do(a) narcisista encontram espaço de expressão. Progressivamente, o microcontrolo exercido nestes episódios pode conduzir ao desenvolvimento de ansiedade social, à perda de naturalidade no convívio e a um medo constante de cometer erros, mesmo quando tais erros não têm qualquer fundamento racional.
O/A narcisista apresenta-se como alguém extremamente preocupado com os animais. Por exemplo, sempre que vê ou ouve um animal abandonado reage com visível preocupação, procura ativamente o animal e, por vezes, alimenta-o ou adota-o. Esta postura contrasta com a falta de empatia que demonstra privadamente para com seres humanos, apesar de em público procurar parecer compassivo(a) e solidário(a).
Contudo, os animais adotados não recebem afeto genuíno ou tempo de qualidade. O/A narcisista compra frequentemente rações caras ou diferenciadas e espera que os animais retribuam com demonstrações de afeto (por exemplo, indo para o colo), mas não brinca com eles, raramente os acaricia e negligencia cuidados básicos, como a limpeza da liteira, que pode ficar por limpar durante mais de uma semana.
Na prática, a responsabilidade pelos animais adoptados acaba quase sempre por recair sobre familiares do(a) narcisista que acabam por ficar com os animais recolhidos, ou sobre a pessoa alvo, que se vê obrigada a tratar dos mesmos.
Interpretação:
Esta situação ilustra uma forma subtil de manipulação da imagem social e uma expressão distorcida de empatia seletiva, muito comum em indivíduos com traços narcisistas. A preocupação exibida com os animais abandonados surge como uma oportunidade de autoengrandecimento moral, permitindo que o/a narcisista construa uma imagem pública de sensibilidade e compaixão que contrasta fortemente com a sua verdadeira frieza emocional. Ao adotar esta postura, procura obter validação social como alguém com um bom coração e, ao mesmo tempo, desviar o foco de críticas legítimas, apresentando-se como altruísta e preocupado com os mais frágeis.
No entanto, o modo como efetivamente trata os animais revela uma realidade bastante diferente e muito mais coerente com a lógica narcisista. As adoções não decorrem de um compromisso genuíno ou de uma ligação afetiva estável, mas de impulsos momentâneos carregados de simbolismo e de intenção autopromocional. Os cuidados consistentes que a posse responsável de animais exige acabam por ser negligenciados, uma vez que não produzem a recompensa emocional imediata que o/a narcisista procura. Quando os animais não correspondem com a atenção ou o afeto esperado, a frustração é rapidamente projetada sobre os outros, que acabam responsabilizados por suprir as necessidades práticas.
Este padrão deixa claro que, para o/a narcisista, tanto os animais como as pessoas próximas são instrumentalizados em função das suas próprias necessidades de validação. Os animais tornam-se acessórios de uma narrativa de bondade pública, enquanto familiares ou amigos são usados como mão de obra emocional e logística para manter a fachada de altruísmo. A ausência de um vínculo real com os animais não é, portanto, um detalhe irrelevante, mas sim mais uma manifestação do traço central da personalidade narcisista: a incapacidade de empatia verdadeira, substituída por uma teatralização emocional cuidadosamente voltada para o olhar dos outros.
O/A narcisista revela um forte desconforto em conduzir, especialmente em situações que envolvem manobras como o estacionamento. Quando a pessoa alvo tenta apoiar de forma prática, por exemplo, sugerindo ir juntos praticar técnicas de estacionamento, o/a narcisista reage com raiva, recusando qualquer tentativa de ajuda e recusando-se a procurar treinar as suas habilidades ao volante.
Durante uma situação concreta em que o/a narcisista tentava retirar o carro de um lugar de estacionamento, após várias tentativas mal sucedidas, a pessoa alvo sugeriu calmamente um ajuste na rotação do volante. O/A narcisista, enraivecido(a), gritou:
"Eu não preciso da tua ajuda! Estás a pressionar-me!"
Saiu do veículo, abandonando-o em plena rua, e afastou-se a pé sem dar indicação de onde ia. A pessoa alvo, surpreendida, assumiu o lugar do condutor e passou muito tempo à procura do/a narcisista, num local com várias bifurcações e ruas. Quando finalmente o/a encontrou, foi necessário grande esforço para o/a convencer a entrar novamente no carro. O resto do dia foi marcado pelo silêncio, o/a narcisista recusou-se a comunicar com a pessoa alvo, mostrando-se indisponível e hostil.
Interpretação:
Esta situação evidencia de forma clara vários mecanismos característicos da dinâmica relacional com um(a) narcisista. A dificuldade em conduzir e, sobretudo em manobrar o carro, é vivida como uma ameaça direta à sua autoimagem grandiosa. Qualquer sugestão de apoio, ainda que formulada com cuidado e de modo construtivo, é automaticamente interpretada como crítica, desencadeando uma reação defensiva marcada pela agressividade. O que poderia ser um simples momento de aprendizagem ou colaboração transforma-se num episódio de tensão e confronto.
A resposta do(a) narcisista assume contornos emocionais desproporcionados: abandonar o carro no meio da situação, fugir a pé e recusar ajuda são atitudes extremas perante algo que, objetivamente, não justificaria tamanha dramatização. Mais do que mera impulsividade, trata-se de uma forma de manipulação emocional, cujo efeito é desestabilizar a pessoa alvo, empurrando-a para a assunção das responsabilidades e para o sentimento de culpa.
Segue-se, muitas vezes, a punição silenciosa. O silêncio prolongado após o episódio funciona como um instrumento de controlo e castigo emocional, um exemplo clássico do chamado "silent treatment". Com esta técnica, o/a narcisista pretende transmitir que foi invadido, pressionado ou desrespeitado, ainda que a intenção da outra pessoa tenha sido somente ajudar. O objetivo é inverter a perceção da situação, colocando a vítima numa posição defensiva e culpada.
Adicionalmente, observa-se uma recusa ativa em lidar com a possibilidade de mudança ou de crescimento pessoal. Apesar das dificuldades evidentes, o/a narcisista não admite qualquer tentativa de superação ou melhoria, pois reconhecer limitações ou vulnerabilidades seria, para ele, equivalente a uma humilhação intolerável. Deste modo, a responsabilidade de adaptação e resolução recai invariavelmente sobre a pessoa alvo, que acaba por suportar o peso da situação.
No seu conjunto, este episódio mostra como o orgulho ferido, aliado a uma baixa tolerância à frustração e a estratégias de punição emocional, pode transformar um gesto simples de cuidado num verdadeiro campo de batalha psicológico. A pessoa alvo, em vez de se sentir valorizada pelo apoio que tenta oferecer, fica esgotada, confusa e injustamente culpabilizada, enquanto o/a narcisista preserva intacta a sua fachada de infalibilidade.
No âmbito de um congresso num país estrangeiro, a pessoa alvo e o/a narcisista realizam uma visita a uma cidade local. Com o intuito de otimizar a experiência e visitar os pontos mais relevantes, a pessoa alvo sugere que se sentem por alguns minutos num posto de turismo, para analisarem panfletos e um mapa fornecidos no local. Passado pouco tempo, o/a narcisista manifesta impaciência e afirma, num tom crítico:
"Já terminaste!? Estou aqui à espera."
A pessoa alvo tenta explicar a importância de planearem a visita para evitarem andar sem rumo e solicita apenas mais alguns minutos. No entanto, o/a narcisista volta a manifestar raiva e impaciência, interrompendo com a frase:
"O que é que estás a fazer? Se não vens vou eu sozinho(a)!"
Sai abruptamente do posto de turismo. No exterior, ao ser abordado(a) pela pessoa alvo, aponta em direções contrárias afirmando:
"Eu vou por aqui, e tu, vais por ali!"
De imediato, afasta-se rapidamente, deixando a pessoa alvo sozinha e surpreendida. Segue-se um período de angústia e preocupação, durante o qual a pessoa alvo percorre as ruas à procura do/a narcisista e tenta contactar por telefone. Após mais de uma hora de tentativas, o/a narcisista finalmente atende e indica onde se encontra. Apesar de se reunirem, o restante tempo da visita decorre em clima de frieza, silêncio e tensão, com o/a narcisista a manter uma postura de indiferença e distanciamento.
Interpretação:
Esta situação exemplifica de forma clara um comportamento narcisista marcado pela desvalorização das necessidades da outra pessoa e pela utilização da punição emocional através do abandono e do silêncio. A recusa em colaborar na organização da visita e a reação desproporcionada a um simples pedido de alguns minutos revelam uma falta de empatia profunda e uma intolerância extrema à frustração, como se esperar fosse uma afronta pessoal. A resposta não se limita à impaciência: transforma-se numa estratégia de manipulação que recorre ao abandono emocional e físico, obrigando a pessoa alvo a mergulhar num estado de ansiedade e insegurança.
Ao sentir que não tem controlo total da situação, o/a narcisista demonstra uma clara desregulação emocional, explodindo ou retirando-se abruptamente, deixando atrás de si um vazio de incerteza. Posteriormente, mesmo após o reencontro, opta por manter frieza e distância, prolongando o castigo através do silêncio e mantendo a outra pessoa num estado de permanente instabilidade emocional.
Episódios como este não são isolados, mas integram um padrão que contribui para um clima de insegurança relacional típico das ligações com indivíduos com traços narcisistas. A pessoa alvo vê-se sistematicamente desestabilizada, obrigada a medir cada palavra e cada gesto, como se andasse "em bicos de pés" ("walk on eggshells"), vivendo numa posição de inferioridade emocional até mesmo em momentos que deveriam ser de lazer ou de cooperação.
O/A narcisista recusa-se sistematicamente a comer qualquer tipo de restos, mesmo quando os alimentos se encontram em perfeitas condições. Sempre que uma refeição sobra, recusa-se a consumi-la posteriormente, obrigando a pessoa alvo a comer os restos sozinha, para evitar o desperdício alimentar.
Paralelamente, o/a narcisista tem outros hábitos similares como o de abrir iogurtes, provar algumas colheres e deixar o restante no frigorífico. Esta prática é frequente, levando à acumulação de vários iogurtes meio consumidos, que acabam por se estragar. Para evitar que a comida vá para o lixo, a pessoa alvo acaba por comer os iogurtes deixados nessas condições.
Interpretação:
O comportamento do(a) narcisista traduz um profundo desrespeito pelas dinâmicas partilhadas e pela responsabilidade coletiva no espaço doméstico, projetando-se em diferentes dimensões da vida em comum. O egocentrismo alimentar surge quando impõe regras rígidas de consumo baseadas unicamente nas suas preferências e manias, sem considerar as consequências práticas ou o impacto que essas escolhas têm sobre quem partilha os mesmos recursos. A este traço soma-se um desperdício negligente, visível na abertura repetida de alimentos como os iogurtes, que acabam por ser deixados de lado sem consumo. Tal padrão revela uma relação impulsiva, caprichosa e inconsequente com os bens comuns, cujos efeitos se fazem sentir tanto a nível económico como ambiental.
A dinâmica avança para uma inversão do cuidado, em que a pessoa alvo assume o papel de guardiã dos recursos, sendo manipulada emocionalmente para prevenir o desperdício criado pelo(a) narcisista. Deste modo, a responsabilidade de assegurar uma gestão equilibrada e racional da alimentação no lar recai apenas sobre um dos elementos, dando origem a um ciclo contínuo de desgaste psicológico e físico. Ao mesmo tempo, a indiferença empática torna-se evidente: o/a narcisista mostra-se incapaz de sentir culpa ou de assumir responsabilidade pelas consequências das suas escolhas, projetando esse peso de forma implícita sobre a outra pessoa.
O resultado global é um ambiente de desequilíbrio emocional, onde a sobrecarga injusta mina qualquer possibilidade de cooperação genuína. O espaço que deveria ser de partilha e cuidado mútuo transforma-se num cenário em que a pessoa alvo é obrigada a compensar constantemente o descuido e a falta de empatia do(a) narcisista, vivendo num estado de permanente desgaste e injustiça relacional.
Após ter traído a pessoa alvo com um(a) colega de trabalho, o/a narcisista afirma ter cometido um erro e demonstra, aparentemente, arrependimento. Com o intuito de ultrapassar o sucedido e reconstruir a relação, o casal planeia uma viagem a uma cidade romântica.
No hotel, durante a estadia, o/a narcisista passa períodos prolongados na casa de banho, com a porta fechada. Numa dessas ocasiões, a pessoa alvo entra no espaço e apercebe-se de que o/a narcisista está a trocar mensagens com a mesma pessoa com quem havia cometido a infidelidade, sendo essa a razão dos frequentes isolamentos.
Confrontado(a), o/a narcisista reage com raiva, acusando a pessoa alvo de ser ciumenta e controladora, ignorando completamente a gravidade da situação e a quebra de confiança envolvida. De forma dramática, sai do quarto afirmando que irá apanhar o próximo avião de regresso, sem levar bagagem nem carteira. A pessoa alvo sai à sua procura, preocupada com o estado emocional do/a narcisista e com a possibilidade de um comportamento impulsivo.
Acaba por encontrá-lo(a) nas imediações do hotel, e após alguma insistência, o/a narcisista concorda em regressar ao quarto. O resto da viagem decorre num ambiente de tensão, frieza e ausência de comunicação por parte do/a narcisista.
Interpretação:
Esta situação é particularmente reveladora de padrões disfuncionais característicos de uma relação com alguém que apresenta traços narcisistas. O planeamento da viagem surge, à primeira vista, como uma tentativa de reconciliação e um gesto simbólico destinado a reparar a infidelidade anterior. No entanto, revela-se rapidamente uma encenação destituída de verdadeiro compromisso, pois o contacto com a pessoa da traição é mantido precisamente durante a viagem, sabotando qualquer possibilidade de reparação autêntica e evidenciando que o arrependimento não passa de fachada.
Quando confrontado com o seu comportamento desrespeitoso, o/a narcisista recorre a uma tática clássica de manipulação: o gaslighting. Ao inverter a situação e acusar a outra pessoa de ser ciumenta e controladora, procura desorientá-la emocionalmente, invalidando os seus sentimentos e levando-a a questionar a própria perceção da realidade. Este movimento desvia o foco da sua infração para a suposta incapacidade da vítima em lidar com a situação, criando um cenário em que a culpa é transferida.
Para intensificar o controlo, o/a narcisista recorre ainda a atitudes dramáticas e à chantagem emocional. A ameaça de sair de imediato e apanhar um avião, sem levar nada consigo, funciona como uma crise artificialmente induzida, destinada a deslocar a atenção da transgressão cometida para o desespero encenado. Esta teatralidade cria instabilidade emocional e obriga a pessoa alvo a reagir sob pressão, desviando-se da análise crítica do que realmente está em causa.
O ciclo de dependência reforça-se quando a vítima, sob o risco de algo acontecer, se vê forçada a procurá-lo(a) e a assumir um papel de cuidadora ou salvadora. A responsabilidade excessiva recai sobre si, enquanto a gravidade do comportamento do(a) narcisista se dilui no meio da urgência emocional criada. Assim, o desgaste psicológico da vítima aprofunda-se, tornando cada vez mais difícil tomar decisões racionais sobre a continuidade da relação. O episódio não só reforça o padrão de abuso e instabilidade, como mina a clareza emocional necessária para quebrar o ciclo.
A realização de atividades conjuntas entre o/a narcisista e a pessoa alvo está frequentemente sujeita a uma condição arbitrária imposta pelo(a) narcisista: a avaliação subjetiva que este(a) faz do estado emocional da pessoa alvo, incluindo a sua disposição ou entusiasmo. Esta exigência mantém-se mesmo quando o/a narcisista tem previamente um comportamento abusivo.
Por exemplo, após ambos combinarem um jantar fora, o/a narcisista tem um ataque de raiva quando confrontado(a) com uma mentira e acusa a pessoa alvo de ser instável e insegura. Mesmo assim, iniciam a deslocação até ao restaurante. Durante a viagem, numa conversa aparentemente normal, o/a narcisista afirma de forma fria:
"Não me parece que estejas com a disposição correta para ir ao jantar!"
A pessoa alvo, surpreendida, expressa a sua vontade de jantar e questiona o motivo da afirmação. O/a narcisista insiste:
"Para irmos jantar tens de ter a disposição correta e estares entusiasmado. Por isso já não quero ir jantar."
De forma unilateral, o/a narcisista recusa-se a continuar e obriga a pessoa alvo a voltar para casa.
Este tipo de comportamento repetia-se noutros contextos, incluindo passeios, viagens ou até simples momentos de convívio. A viabilidade de cada atividade passava a depender exclusivamente da leitura subjetiva do/a narcisista sobre o estado emocional ideal da pessoa alvo, frequentemente após ele(a) próprio(a) ter causado mal-estar.
Interpretação:
Esta situação revela um padrão de controlo emocional subtil mas profundamente disfuncional, característico de relações com pessoas que apresentam traços narcisistas. O que à primeira vista poderia parecer apenas uma divergência pontual, esconde na verdade uma condicionalidade abusiva, na qual o/a narcisista estabelece critérios vagos e sempre mutáveis para a realização de momentos partilhados. A disposição certa, o entusiasmo suficiente ou a atitude adequada tornam-se exigências arbitrárias que nunca estão verdadeiramente ao alcance da pessoa alvo, que acaba por viver num estado de permanente insegurança e autovigilância, tentando antecipar as expectativas impossíveis do outro.
Quando ocorre um comportamento abusivo, como um ataque de raiva, a dinâmica repete-se de forma previsível: o/a narcisista recusa-se a assumir responsabilidade e rapidamente inverte o foco, acusando a vítima de não ter tido a postura correta. Assim, o impacto do abuso é neutralizado e a culpa é projetada sobre quem já se encontra fragilizado. A manipulação não se limita às palavras. Muitas vezes, o afeto ou a convivência são retirados como forma de punição, transformando situações previamente combinadas, como um jantar, em instrumentos de poder. O simples cancelamento de um momento em comum adquire o peso de uma sanção, desenhada para gerar frustração, culpa ou submissão.
Estas dinâmicas têm um efeito devastador sobre a autoestima da pessoa alvo. A dúvida instala-se, corroendo lentamente a confiança na própria perceção: será que realmente errou, ou será apenas vítima de um jogo de distorção? A previsibilidade da relação desaparece, substituída por um ambiente saturado de tensão, instabilidade e dependência emocional, onde a vítima se vê constantemente a oscilar entre a esperança de reconhecimento e o medo de mais uma punição silenciosa.
Quando se levanta primeiro, a pessoa alvo procura agir com o máximo de cuidado para não fazer barulho e evitar acordar o/a narcisista que ainda dorme. Move-se silenciosamente, fecha portas com delicadeza e reduz ao mínimo qualquer ruído. No entanto, quando ocorre o inverso, o/a narcisista não demonstra o mesmo respeito ou contenção. Pelo contrário, parece agir de forma deliberada para perturbar o descanso da pessoa alvo: acende luzes intensas, bate portas e gavetas com força, liga a televisão em volume alto e movimenta-se de modo ostensivo, mesmo sabendo que o outro ainda dorme e não precisa de acordar tão cedo.
Quando a pessoa alvo tenta abordar a situação e apelar ao bom senso, o/a narcisista reage com desdém e vitimização, recorrendo a frases como:
"És mesmo muito sensível. Como é que me vou vestir e preparar? Se é para isto, posso ir para minha casa, onde não incomodo ninguém."
Interpretação:
Este comportamento expõe de forma clara o padrão narcísico de inversão de culpa e negação da responsabilidade emocional. O problema inicial de desrespeito e a provocação matinal é desviado e reinterpretado como uma crítica injusta da pessoa alvo. O/a narcisista posiciona-se como vítima, apresentando o seu comportamento como normal e razoável, enquanto acusa o outro de ser excessivamente sensível ou controlador. Esta inversão é uma forma clássica de gaslighting, destinada a desestabilizar a perceção da vítima e levá-la a duvidar da legitimidade das suas emoções.
A manipulação torna-se dupla. Por um lado, o/a narcisista afirma a sua autoridade sobre o espaço e o conforto do outro. Por outro, distorce a realidade para se colocar na posição moral superior. A frase "posso ir para minha casa" serve como ameaça velada de abandono, um mecanismo de chantagem emocional que força a pessoa alvo a recuar, sentindo-se culpada por algo que não fez.
Com o tempo, esta dinâmica contribui para o esgotamento psicológico da vítima. O ato de tentar dialogar sobre algo simples, como o ruído matinal, transforma-se numa armadilha emocional, deixando a pessoa alvo num estado de hipervigilância e resignação. Deste modo, o quotidiano torna-se um campo minado, onde até as necessidades básicas de descanso ou tranquilidade se tornam potenciais gatilhos de conflito.
O padrão subjacente é de domínio encoberto e desvalorização constante: o/a narcisista impõe-se não só através de palavras ou grandes explosões, mas também através de pequenas invasões de espaço e de silêncio, que corroem a harmonia e afirmam o seu poder de forma quase invisível.