O presente capítulo explora os quatro tipos principais de narcisismo identificados em contextos clínicos e de investigação: Grandioso (Overt), Vulnerável (Covert), Comunal e Maligno.
Sucintamente, cada um destes tipos é caracterizado por:
Narcisismo Grandioso (Overt): emerge como o arquétipo cultural de narcisista clássico. É geralmente associado a personalidades dominantes, competitivas e socialmente assertivas. Caracteriza-se por caracteristicas como sentimento exagerado de autoimportância, necessidade constante de admiração, exploração interpessoal e arrogância (entitlement). Estes indivíduos tendem a ser extrovertidas, dominantes e a procurar o controle social. São frequentemente bem-sucedidas em contextos competitivos, ocupando cargos de poder ou liderança. Embora pareçam confiantes, essa confiança tem como base o exterior (e.g. elogios, status, sucesso) desaparecendo quando tais fontes diminuem. Por outras palavras, a autoestima aparenta ser estável, mas é superficial sendo mantida por conquistas externas e validação alheia, e, por isso, é muito frágil à crítica. Os narcisistas grandiosos têm baixa tolerância à frustração, alta irritabilidade e comportamentos impulsivos quando sua grandiosidade é ameaçada. Eles exploram os outros para reforçar sua autoestima inflamada, muitas vezes ignorando sentimentos alheios. O narcisismo grandioso relaciona-se com elevada expressividade emocional, domínio verbal e comportamental e agressividade passiva‑agressiva quando desafiados.
Narcisismo Vulnerável (Covert): ao contrário do tipo grandioso, o narcisista vulnerável apresenta-se como modesto, introvertido ou tímido, mas possui fantasias grandiosas ocultas. Apesar destas aspirações de superioridade ("eu sou especial mas ninguém percebe"), evita ser o centro das atenções, procurando admiração de forma indireta e ritualizada. Não apenas necessita de validação constante, como se considera incompreendido sendo reativo emocionalmente. Este tipo de narcisismo é por isso caracterizado por sentimentos persistentes de inadequação e hipersensibilidade à crítica e rejeição. Aqui a arrogância (entitlement) é manifestada de forma oculta, pois o narcisista acredita que merece reconhecimento, guardando ressentimento por não o receber. Pratica manipulação subtil através de vitimização, chantagem emocional, e expectativa de cuidados que nunca expressa diretamente. A empatia (cognitiva) é também usada para manipular, não para estabelecer ligação. O narcisismo vulnerável encontra-se por isso frequentemente associado a um apego inseguro, ansiedade social, traços depressivos e instabilidade emocional.
Narcisismo Comunal: expressa grandiosidade no domínio do altruísmo: indivíduos que acreditam ser os mais caridosos, compreensivos ou virtuosos, e que usam essa imagem para obter admiração e poder social. Ao contrário dos narcisistas clássicos, eles procuram validação através da ajuda aos outros ou a causas, não dominando pelo status hierárquico. Por outras palavras, o narcisismo comunal é uma variante onde a autoestima inflamada se baseia na percepção de superioridade moral ao ajudar os outros. Estes indivíduos são carismáticos, participam de causas sociais e promovem-se como heróis altruístas, sendo contudo este altruísmo superficial. Quando não recebem reconhecimento que desejam, reagem agressivamente ou com ressentimento. Deste modo eles procuram admiração por meios morais, mas mantêm motivações egoístas: poder social, controle indireto e manipulação emocional. Tendem a ser dominadores mascarados por bondade, muitas vezes manipulando os sentimentos dos outros para reforçar sua autoimagem.
Narcissimo Maligno: introduzido por Erich Fromm e aprofundado por Otto Kernberg, este tipo de nercisismo constitui uma forma severa de narcisismo patológico. Combina traços de narcisismo, personalidade antissocial, paranoia e sadismo. Diferente do psicopata, o narcisista maligno mantém alguma capacidade de lealdade ao seu grupo de coorte, mas exerce a agressão de forma calculada e prazenteira. Esses indivíduos manipulam, humilham, magoam e devastam emocionalmente os outros. Tendem a exercer controle e crueldade deliberada, com objetivo de afirmar poder e inferiorizar os outros. Essa combinação letal de grandiosidade, ausência de remorso e sadismo resulta em comportamentos altamente tóxicos e duradouros. É usado em contextos clínicos e forenses para identificar narcisistas com tendências criminosas ou violentas.
Cada secção seguinte inclui, para cada tipo de narcisismo, uma descrição aprofundada das características, motivações subjacentes, funcionamento emocional e interpessoal e, para ilustrar, um caso de estudo. O objetivo é permitir reconhecer os diferentes perfis narcisistas em contextos reais e compreender como se manifestam nuances distintas do comportamento narcisista.
O narcisismo grandioso, também conhecido como "overt narcissism" em inglês, é a forma mais visível e facilmente identificável desta perturbação de personalidade. É o tipo que mais se aproxima do estereótipo cultural que o senso comum tem de um narcisista: uma figura confiante, carismática, dominante e, muitas vezes, irresistivelmente persuasiva. Este perfil surge frequentemente associado a indivíduos que aparentam saber exatamente quem são e para onde vão, ocupando espaços com naturalidade e impondo a sua presença sem pedir permissão.
O narcisista grandioso, na sua forma mais evidente, apresenta-se ao mundo como a personificação da confiança, da assertividade e do sucesso. A sua postura é ereta, o olhar direto e firme, o tom de voz seguro, e a energia parece transbordar quando se encontra em público. Nas interações sociais, é magnético, sabe escolher as palavras, controlar o ambiente e adaptar o discurso ao público, recorrendo a uma empatia que não nasce de genuíno cuidado, mas de uma leitura estratégica das necessidades e expectativas alheias. Esta chamada empatia cognitiva, embora eficaz, serve apenas para alinhar comportamentos e respostas que maximizem a sua própria vantagem e reforcem a sua imagem. O que para um observador casual pode parecer carisma e sensibilidade, para quem o conhece de perto é apenas uma performance meticulosamente calculada.
A vida deste narcisista constrói-se como um palco de várias cenas, cuidadosamente compartimentalizadas. Em cada cenário, desempenha um papel específico. No trabalho, é o líder visionário, capaz de conquistar admiração com ideias arrojadas e discurso inspirador. No círculo social, é o amigo espirituoso e atencioso, sempre pronto a contar histórias que reforçam a sua superioridade. Em privado, contudo, a máscara cai, revelando frieza emocional e um autocentrismo feroz. A mesma pessoa que em público elogia generosamente pode, em casa, reduzir o parceiro a um silêncio sufocante, utilizando o "silent treatment" como forma de punição e controlo.
A manipulação é o fio invisível que caracteriza todas as suas relações. Pratica o gaslighting com uma naturalidade perturbadora, distorcendo factos e realidades para fazer o outro duvidar da própria perceção. Se confrontado com a evidência de uma mentira que produziu, responde com indignação teatral ou um riso condescendente, insinuando que o problema está na sensibilidade ou instabilidade emocional da outra pessoa. Este jogo psicológico não só mina a confiança da vítima, como reforça a posição de poder do narcisista, que se coloca como árbitro da realidade.
O flirt público é outra das suas armas favoritas, não apenas como expressão de vaidade, mas como mecanismo de triangulação. Em eventos sociais, troca olhares prolongados, toques subtis e comentários insinuantes com terceiros, sempre dentro de um limiar que lhe permite negar intenções se confrontado. O objetivo é claro: provocar insegurança no parceiro, criar competição velada e reforçar a perceção de que a sua atenção é um prémio a ser conquistado, não um direito adquirido.
Em privado, as explosões de raiva surgem quando sente que a sua grandiosidade é posta em causa. Não se trata de discussões equilibradas, mas de ataques calculados, onde cada palavra é escolhida para ferir e inferiorizar. A frieza emocional que exibe nesses momentos não é ausência de emoção, mas sim uma expressão refinada de controlo, conseguindo desligar qualquer traço de afeto, olhando a vítima como se fosse irrelevante, até esta ceder ou pedir desculpa por algo que não fez.
As suas relações são essencialmente transacionais. Por detrás da retórica de afeto, cada gesto tem um cálculo implícito: quem oferece algo de valor, seja status, contactos ou benefícios materiais, é valorizado e incluído na sua esfera de atenção. Pelo contrário, quem deixa de ser útil é descartado ou empurrado para a periferia. Este padrão também se aplica ao assassinato de carácter. Quando alguém se afasta ou ameaça a sua reputação, o narcisista grandioso mobiliza a sua rede social e profissional para lançar insinuações, distorcer acontecimentos e criar uma narrativa onde ele surge como vítima injustiçada e o outro como instável, ingrato ou incompetente. A eficácia desta técnica reside na sua capacidade de contar histórias que, embora falsas, soam plausíveis graças ao seu domínio verbal e expressividade convincente.
O espelhamento (mirroring) é outra ferramenta fundamental. No início de uma relação, adapta comportamentos, gostos e opiniões para criar a ilusão de compatibilidade absoluta, fazendo o outro acreditar que encontrou alguém que o compreende como ninguém. No entanto, esta fase é apenas o investimento inicial para garantir lealdade e abertura emocional, elementos que mais tarde serão explorados. Assim que a vítima está suficientemente envolvida, o espelhamento é substituído por desvalorização: críticas mordazes, comparações desfavoráveis e uma redução progressiva do valor que lhe é reconhecido.
Tudo isto é sustentado por uma autoestima inflamada, mas paradoxalmente frágil. O narcisista grandioso depende da validação externa como combustível. Elogios, status e conquistas funcionam como reforços que alimentam a sua persona. Quando estas fontes diminuem, a confiança esvai-se e a irritabilidade cresce, levando a comportamentos impulsivos e, muitas vezes, autodestrutivos. A grandiosidade é, afinal, uma armadura polida que esconde insegurança profunda e medo de ser exposto como insuficiente.
No retrato geral, o narcisista grandioso vive em permanente gestão de imagem, controlando narrativas e relações para assegurar que a sua superioridade nunca é posta em causa. Os comportamentos de manipulação, sedução e punição alternam-se como instrumentos de uma mesma orquestra: a da manutenção do poder e da centralidade. Aos olhos do mundo, ele é fascinante, carismático e assertivo. Para quem conhece a versão privada, ele é frio, calculista e incapaz de verdadeiro afeto. Esta dualidade é a essência do narcisismo grandioso, e a razão pela qual tantos se deixam encantar, para mais tarde se verem presos numa teia de controlo e exploração que parece impossível desfazer.
Inês era, para quem a conhecia de forma superficial, a personificação da mulher moderna: inteligente, carismática, impecavelmente vestida e com um discurso seguro. No trabalho, brilhava em reuniões, usando o seu charme para conquistar clientes e colegas. Era rápida a ler as emoções dos outros, adaptando a sua postura e palavras de forma quase cirúrgica para criar empatia, ou, melhor dizendo, o que parecia empatia. Na realidade, tratava-se de uma empatia cognitiva: Inês não sentia genuinamente as emoções alheias, mas compreendia-as o suficiente para as usar a seu favor.
Num jantar de negócios, por exemplo, conseguia espelhar a linguagem corporal do interlocutor, repetir expressões que este usava e aparentar interesse genuíno nas histórias partilhadas. Saía de lá com novos contactos e portas abertas, deixando todos convencidos de que tinham conhecido alguém especial. Mas bastava virar costas para se referir a essas mesmas pessoas de forma desdenhosa, como peças num tabuleiro que ela sabia manipular.
No círculo mais próximo, a imagem era bem diferente. Filipe, o companheiro de vários anos, conhecia o outro lado de Inês, o lado que raramente se mostrava em público. Havia dias em que ela surgia calorosa, atenciosa, cheia de planos para passarem tempo juntos. Mas esses momentos de afeto vinham sempre condicionados: surgiam quando Filipe tinha feito algo que servia os interesses dela, como ajudá-la num projeto, elogiá-la publicamente ou ceder a um capricho. Se ele discordava, questionava ou não reagia como ela esperava, o calor transformava-se em gelo.
O silent treatment era uma das suas armas favoritas. Durante dias, recusava-se a falar ou a responder a mensagens, circulando pela casa como se Filipe fosse invisível. Quando finalmente quebrava o silêncio, nunca admitia ter usado a técnica como punição, insinuava que apenas precisava de tempo para pensar e que ele estava a exagerar.
Inês também sabia usar a desvalorização como ferramenta de controlo. Se Filipe comentava que tinha recebido um elogio no trabalho, ela respondia com um sorriso frio e uma observação cortante: "Claro… mas também não é nada de extraordinário, qualquer pessoa no teu lugar teria feito o mesmo." Pequenas frases como esta, repetidas ao longo do tempo, iam corroendo a autoestima dele, mantendo-o emocionalmente dependente da aprovação dela.
A mentira e a compartimentalização eram outro pilar do seu funcionamento. No trabalho, Inês apresentava-se como solteira e independente, alimentando uma imagem sedutora que lhe abria espaço para flirting com clientes e colegas influentes. Às vezes, insinuava que tinha encontros ou convites especiais, deixando Filipe num estado constante de incerteza. Negava veementemente qualquer envolvimento quando confrontada, virando o jogo e acusando-o de ciúmes doentios, insegurança e de ser controlador.
A triangulação surgia de forma subtil, mas calculada. Inês mencionava, em conversas casuais, como o ex-namorado ainda lhe enviava mensagens ou como um colega a tinha elogiado pela aparência. Dizia-o sempre com um ar despreocupado, mas observava atentamente a reação de Filipe, alimentando a insegurança dele enquanto reforçava a própria sensação de poder.
Em casa, a frieza emocional era uma constante. Nos momentos em que Filipe procurava apoio, como quando perdeu um familiar, Inês demonstrava uma atenção mecânica, oferecendo frases socialmente adequadas mas sem verdadeiro calor. "Compreendo o que sentes" soava mais a frase ensaiada do que a expressão de empatia genuína. No entanto, se essa mesma situação pudesse ser usada para projetar uma imagem pública de parceira dedicada, ela não hesitava: no trabalho transmitiria a todos o quanto estaria aparentemente a apoiar o Filipe, e nas redes sociais publicaria uma foto abraçada a ele com uma legenda comovente, colecionando comentários de admiração pela sua aparente sensibilidade.
Havia também o espelhamento ("mirroring"), que Inês utilizava com mestria no início das relações. Com Filipe, no início do namoro, parecia partilhar todos os seus interesses, música, viagens, hobbies. Ele sentia que tinha encontrado alguém que o compreendia como ninguém. Com o tempo, esses interesses desapareceram misteriosamente, substituídos pelos que eram mais convenientes para ela. O espelhamento tinha cumprido a sua função: criar uma ligação rápida e intensa, antes de revelar a sua verdadeira agenda.
No trabalho, continuava a ser a líder admirada e temida, mantendo compartimentos estanques entre a vida profissional e pessoal. Colegas não faziam ideia das tensões domésticas. Amigos casuais não conheciam os conflitos silenciosos. E familiares recebiam apenas a versão cuidadosamente editada das histórias, onde Inês era sempre a vítima incompreendida.
Filipe, preso nesta teia de charme e crueldade, oscilava entre momentos de esperança, quando ela era doce, atenciosa e como antes, e momentos de desespero, quando se tornava fria, manipuladora e implacável. O ciclo repetia-se: aproximação intensa, afastamento calculado, reconciliação condicionada. E cada volta nesse ciclo reforçava a dependência dele, enquanto fortalecia o controlo de Inês.
Lá fora, ninguém suspeitava. Nas redes sociais continuavam as fotos sorridentes, os hashtags inspiradores. Para o mundo, Inês era bem-sucedida, apaixonada e realizada. Dentro de casa, porém, reinava a incerteza, a manipulação, a dor e uma solidão silenciosa que Filipe já não sabia como explicar.
O narcisista vulnerável é, à primeira vista, um contraste surpreendente face ao narcisista grandioso. Onde este último se impõe com exuberância e presença dominante, o vulnerável surge com um ar contido, quase retraído, dando a impressão de ser humilde, introspectivo ou simplesmente tímido. No entanto, por detrás dessa superfície discreta, existe um mundo interior marcado por fantasias grandiosas cuidadosamente escondidas. Ele não se proclama o centro das atenções, mas acredita intimamente que possui qualidades únicas e especiais que o mundo insiste em não reconhecer. Esta perceção de injustiça alimenta um ressentimento silencioso, que raramente é expresso de forma direta, mas que molda cada interação.
A sua necessidade de validação não é menor do que a de um narcisista grandioso, apenas se manifestando de forma mais camuflada. Em vez de discursos autocelebratórios ou gestos ostensivos, procura reforço através de estratégias subtis. Muitas vezes, apresenta-se como alguém injustiçado, mal compreendido, ou alvo de circunstâncias adversas que impediram o reconhecimento que merecia. Esse papel de vítima não é acidental: é uma ferramenta central da sua manipulação, explorando a empatia alheia para obter apoio, atenção e cuidado sem nunca ter de pedir explicitamente.
A manipulação no narcisista vulnerável é, por isso, um jogo silencioso. Não recorre frequentemente ao gaslighting mais direto e confrontativo que se encontra no grandioso. Em vez disso, distorce pequenas memórias ou interpretações para gerar dúvida, especialmente quando confrontado com críticas. Pode insinuar que o outro se lembra mal ou que está a exagerar, lançando pequenas sementes de incerteza que, acumuladas, corroem a autoconfiança da vítima. Essas distorções são usadas com parcimónia, sempre embrulhadas num tom de fragilidade e confusão que as torna mais difíceis de detetar.
A mentira no narcisista vulnerável tende a ser defensiva e seletiva. Ele não constrói grandes narrativas para se promover, mas omite, deturpa ou minimiza aspetos da realidade que poderiam expor as suas falhas ou incoerências. Essas meias-verdades permitem-lhe preservar uma imagem coerente de alguém fundamentalmente bom, mas injustamente tratado, mantendo as críticas à distância.
Quanto à empatia, é comum que o vulnerável apresente empatia cognitiva, a capacidade de compreender racionalmente o que o outro sente. Contudo essa compreensão não é usada para criar laços genuínos, mas sim para ajustar o seu comportamento de forma estratégica. Por exemplo, se percebe que um comentário ou gesto específico gera culpa no outro, poderá utilizá-lo repetidamente como forma de obter atenção ou favores. É uma empatia instrumental, direcionada para manter o outro emocionalmente preso e disponível.
Os ataques de raiva, quando surgem, raramente ocorrem em público. O narcisista vulnerável guarda-os para contextos privados, onde pode libertar a frustração acumulada sem arriscar a sua imagem controlada. Ao contrário do grandioso, que explode com intensidade e teatralidade, a raiva do vulnerável é mais contida, por vezes passivo-agressiva, com sarcasmo, ironia e comentários velados que atingem diretamente a autoestima da vítima.
A frieza emocional é outro traço notório. Embora possa demonstrar afeto superficial quando isso lhe é útil, a sua ligação é condicional e controlada. Quando se sente ferido ou contrariado, afasta-se de forma abrupta, aplicando "silent treatment" como forma de punição silenciosa. Esse silêncio não é um mero afastamento emocional, mas um instrumento de controlo: obriga o outro a procurar reconciliação, mesmo que não tenha feito nada objetivamente errado.
A exploração nas mãos do narcisista vulnerável não se dá tanto por exigências explícitas, mas pela criação de um ambiente onde o outro se sente moralmente obrigado a cuidar dele, a compensar a sua fragilidade ou a evitar sobrecarregá-lo com necessidades próprias. Esse desequilíbrio é reforçado pela desvalorização subtil: comentários disfarçados de preocupação ou conselhos "para o bem do outro" que, na verdade, minam a autoconfiança e alimentam a ideia de que o narcisista é mais sensível, com mais moral ou mais esclarecido.
O espelhamento é uma das suas ferramentas mais eficazes, especialmente no início das relações. Observa e reproduz interesses, valores e vulnerabilidades do outro, criando uma ilusão de compatibilidade profunda. Mas, com o tempo, essa sintonia desvanece, revelando que era apenas uma técnica para estabelecer confiança e ligação.
A triangulação no narcisista vulnerável é frequentemente emocional e indireta. Pode falar de terceiros de forma a provocar insegurança ou ciúme, não necessariamente com histórias explícitas de conquista, mas com insinuações sobre como essas pessoas o compreendem melhor ou lhe oferecem apoio que a vítima não consegue dar.
O flirt público, quando ocorre, raramente é descarado, manifestando-se em elogios excessivos a terceiros, sorrisos prolongados ou gestos subtis que, embora ambíguos, são suficientes para provocar desconforto e manter o parceiro ou amigo em estado de alerta.
Os relacionamentos transacionais também estão presentes, mas num registo mais encoberto. O narcisista vulnerável estabelece ligações onde o outro lhe fornece apoio emocional, status ou recursos, mas disfarça essa troca como uma relação de afeto genuíno. Na prática, a manutenção do vínculo depende da utilidade que retira dele.
A compartimentalização é fundamental para manter estas dinâmicas. Ele apresenta diferentes versões de si próprio conforme o contexto, preservando cuidadosamente a sua imagem perante cada círculo social. Esta divisão permite-lhe, por exemplo, ser visto como generoso e compreensivo por uns, enquanto mantém o controlo e a frieza em relações mais íntimas.
O assassinato de carácter, quando necessário, é executado com sutileza quase cirúrgica. Em vez de ataques diretos, espalha insinuações, dúvidas ou histórias distorcidas que lentamente corroem a reputação do outro, sempre mantendo uma postura de aparente inocência.
Assim, o narcisista vulnerável vive num equilíbrio calculado entre a imagem de fragilidade e a manipulação constante, entre a busca de validação e o ressentimento silencioso por não ser reconhecido como julga merecer. É precisamente essa dissonância, entre aparência e motivação, que torna as suas relações tão complexas, desgastantes e, muitas vezes, destrutivas para quem se aproxima.
Quando Ana conheceu Tiago, parecia ser a antítese da arrogância. Tinha um tom de voz suave, gestos contidos e um sorriso tímido que transmitia fragilidade. Nos primeiros encontros, falava pouco sobre si, preferindo escutar com atenção, intercalando perguntas pertinentes e comentários que faziam Tiago sentir-se compreendido. Havia uma aura de mistério nela, como se guardasse um mundo interior rico e profundo, que apenas se revelava a poucos. Essa reserva, longe de afastá-lo, despertava nele a vontade de a proteger.
Ana descrevia-se como alguém que sempre foi mal compreendida e que não sabia muito bem como lidar com grupos grandes. Partilhava episódios da infância em que se sentira ignorada ou injustamente tratada, sugerindo uma história de vida cheia de pequenas injustiças. Tiago, sensível e empático, sentia-se naturalmente inclinado a oferecer-lhe o reconhecimento que ela parecia nunca ter recebido. Contudo, o que ele não percebia era que essa narrativa, cuidadosamente construída, servia como base para um padrão de manipulação que se desenrolaria nos meses seguintes.
No início, Ana raramente pedia algo de forma direta. Em vez disso, insinuava. Se queria que Tiago cancelasse um encontro com amigos, não o dizia frontalmente, comentava, com um suspiro, que "ia passar a noite sozinha, mas não faz mal, está habituada". Se desejava que ele a levasse a um evento, fazia referência a como "seria bom se alguém se lembrasse dela de vez em quando". Essas frases ficavam no ar, carregadas de subtexto, fazendo Tiago sentir-se culpado por não antecipar as necessidades dela.
Com o tempo, Tiago começou a notar um padrão curioso: sempre que ele tinha algo positivo para partilhar, como uma conquista no trabalho ou uma saída divertida com amigos, Ana reagia com um silêncio frio ou comentários ambíguos. "Que bom que estás tão ocupado, nem deves ter tempo para pensar em mim", dizia, com um meio-sorriso que não escondia a mágoa fingida. Se ele insistia em explicar ou tentar incluí-la mais, ela recuava emocionalmente, usando o silêncio prolongado como forma de punição. Esse "silent treatment" podia durar horas ou dias, até que ele cedesse, pedindo desculpas por algo que muitas vezes nem sabia exatamente o que tinha feito.
Ana também tinha um talento particular para a compartimentalização. Perante os amigos de Tiago, mostrava-se doce, envergonhada, até um pouco insegura. Passava a imagem de namorada dedicada e sensível, que precisava de cuidados. Mas em privado, com Tiago, podia tornar-se fria e calculista. Quando discutiam, recorria a empatia cognitiva não para compreender e confortar, mas para identificar os pontos vulneráveis dele e usá-los como arma. Se sabia que ele se sentia inseguro com a sua aparência, podia dizer num tom inocente: "Talvez se te cuidares mais, te sintas melhor contigo mesmo".
Outro elemento constante era a vitimização estratégica. Ana raramente admitia estar zangada preferindo apresentar-se como ferida. Por exemplo, se Tiago não respondesse rapidamente a uma mensagem, ela insinuava que isso lhe trazia à memória "a sensação de ser sempre deixada de lado", evocando uma dor emocional que o deixava desarmado. Com o tempo, ele começou a sentir-se responsável não apenas pelo bem-estar presente dela, mas também por um passado que não lhe pertencia.
A manipulação tornava-se mais evidente em situações sociais. Se estavam num grupo, Ana sabia como lançar pequenas frases que colocavam Tiago numa posição desconfortável, mas sem serem suficientemente óbvias para serem percebidas pelos outros como um ataque. Por exemplo, podia dizer: "O Tiago é tão extrovertido… às vezes até demais, não é?" seguido de uma risada leve. Para os outros, parecia uma brincadeira mas para Tiago, soava como uma crítica velada, lembrando-lhe que devia moderar o seu comportamento para não a magoar.
Ana também usava o flirting indireto como ferramenta de controlo. Não era aberto nem óbvio limitando-se a manter interações subtis com outros homens, deixando escapar comentários sobre como determinado colega de trabalho "era tão atencioso" ou "sabia realmente ouvir". Tiago percebia a intenção, mas sempre que tentava confrontá-la, ela revertia para a posição de vítima: "Eu só estava a comentar algo inocente. És tu que estás a ver coisas onde não existem".
A triangulação surgia em momentos estratégicos. Quando queria que Tiago se esforçasse mais, mencionava como um ex-namorado "era tão prestável" ou como um amigo "sempre encontrava tempo para ajudar". Essas comparações criavam nele uma sensação de insuficiência e a necessidade de provar o contrário.
Ao longo dos meses, Tiago começou a sentir um desgaste emocional profundo. A relação parecia uma constante prova de lealdade e atenção, mas as regras nunca estavam claras. Sempre que pensava que estava a agir de forma correta, algo mudava, e ele voltava ao início, tentando decifrar as novas exigências não-ditas.
O lado mais obscuro de Ana raramente era visível para quem estava de fora. Para a família de Tiago, ela continuava a ser a jovem delicada e sensível que precisava de apoio. Mas dentro da relação, a combinação de manipulação subtil, chantagem emocional e frieza calculada criava um ambiente sufocante. Tiago, que no início se sentira o salvador, percebia agora que estava preso num ciclo de culpa, confusão e exaustão.
A narrativa de fragilidade que Ana apresentava ao mundo funcionava como um escudo: protegia-a de críticas diretas e dificultava que alguém identificasse o abuso emocional. Por trás da fachada tímida e da sensibilidade aparente, escondia-se uma necessidade insaciável de controlo e validação, sustentada por estratégias refinadas de manipulação. No fundo, a sua suposta vulnerabilidade não era apenas uma característica da personalidade, mas uma ferramenta de poder cuidadosamente afiada.
O narcisista comunal move-se num palco muito particular, onde a virtude e a bondade são cuidadosamente encenadas como parte de uma estratégia de autoengrandecimento. À primeira vista, pode parecer um modelo de altruísmo: participa em iniciativas solidárias, envolve-se ativamente em causas sociais, realiza voluntariado, presta ajuda em momentos de crise. Apresenta-se como alguém genuinamente dedicado ao bem-estar dos outros, um pilar da comunidade, sempre pronto a oferecer apoio, orientação ou recursos a quem aparentemente precise. O discurso é impregnado de virtude, a imagem cuidadosamente construída para transmitir pureza de intenções, compaixão sem limites e uma superioridade moral quase incontestável. Mas por trás dessa fachada moral elevada, move-se uma engrenagem complexa de estratégias de manipulação e controlo, onde a bondade é mais um palco do que um valor intrínseco. O objetivo real não é a transformação do mundo ou o bem-estar genuíno dos outros mas sim a manutenção de uma imagem pública imaculada, de benfeitor ou guardião moral, que lhe garanta admiração, influência e controlo. É nesse espaço, aparentemente virtuoso, que se manifestam as mesmas dinâmicas manipuladoras presentes em outros subtipos de narcisismo, ainda que mascaradas por um verniz de generosidade.
Ao contrário do narcisista clássico, que ostenta o seu valor através do status social, poder hierárquico ou sucesso financeiro, o comunal prefere um caminho mais subtil, mas não menos eficaz: o da validação moral. Ele não precisa de tronos nem de títulos para se sentir acima dos outros. Basta-lhe ser reconhecido como o mais generoso, o mais compreensivo, o mais humano. Esta é a sua coroa invisível, que exibe através de gestos públicos de ajuda, do envolvimento em causas nobres e da exibição constante de atos que reforçam a sua narrativa de superioridade ética. Mas se a atenção se desvia, se o reconhecimento não vem na intensidade ou na forma que espera, a máscara começa a rachar.
É neste momento que a face mais sombria do narcisista comunal se revela. O altruísmo, até então encenado com maestria, transforma-se em moeda de troca. O apoio que parecia incondicional é cobrado com juros emocionais. A ajuda prestada é relembrada em momentos estratégicos, usada como argumento para gerar culpa, subordinação ou obediência. Surge o gaslighting disfarçado, onde a vítima é levada a duvidar da sua própria gratidão ou moralidade: "Depois de tudo o que fiz por ti, é assim que me tratas?". Estas frases, aparentemente simples, carregam um elevado peso psicológico, porque colocam a pessoa numa posição de constante dívida emocional.
A mentira, neste contexto, não surge como falsificação descarada de factos, mas como distorção seletiva da realidade, em que o narcisista enfatiza as suas contribuições e minimiza ou omite qualquer comportamento que não se enquadre na sua imagem altruísta. Manipula perceções com habilidade, recorrendo a meias verdades e exageros calculados, sempre com o objetivo de proteger a sua narrativa de bondade absoluta. A empatia cognitiva, que nele é bastante desenvolvida, é utilizada não para se conectar genuinamente com os outros, mas para identificar vulnerabilidades, antecipar reações e saber exatamente onde tocar para obter a resposta emocional desejada.
O controlo que exerce é quase sempre indireto, mas profundamente eficaz. Em público, mantém a compostura e o sorriso afável. Em privado, pode recorrer a ataques de raiva frios e calculados, que não se manifestam necessariamente através de gritos, mas por meio de uma frieza cortante e de um olhar que comunica desaprovação e desprezo. É capaz de retirar afeto de forma súbita, aplicando o "silent treatment" como forma de punição e condicionamento. Esta retirada de calor emocional deixa o outro num estado de incerteza e ansiedade, procurando desesperadamente recuperar a harmonia e evitar futuras desaprovações.
A exploração é um traço constante, embora muitas vezes camuflado como oportunidade de colaboração ou partilha. Pessoas, recursos e informações são utilizados para reforçar a sua rede de influência, e a desvalorização surge quando alguém ousa questionar as suas motivações ou recusa alinhar com o seu teatro moral. Pode recorrer ao espelhamento, imitando valores, interesses ou preocupações do outro, para criar uma falsa sensação de conexão, que depois serve como alicerce para manipulação futura.
A triangulação é uma das suas ferramentas preferidas. Em vez de confrontar diretamente, prefere envolver terceiros de forma sutil, reforçando a sua imagem de pessoa de bem enquanto insinua críticas veladas ou comparações desfavoráveis. Com isso, consegue isolar a vítima, minar relações e assegurar que as lealdades se inclinem sempre a seu favor. Em situações sociais, não é incomum usar o flirt público como forma de testar limites, despertar ciúmes ou reafirmar o seu poder de atração, sempre protegendo-se com a capa de inocência ou de brincadeira inofensiva.
As suas relações são, no fundo, transacionais. O vínculo é condicionado pelo benefício que retira, seja admiração, influência, prestígio ou acesso a recursos. Essa dinâmica é reforçada pela compartimentalização: o narcisista comunal adapta o seu comportamento e narrativa consoante o público, podendo ser visto como santo numa esfera social e como crítico impiedoso noutra. Essa habilidade de manter versões distintas de si mesmo dificulta que os outros percebam o padrão de manipulação.
O assassinato de caráter é reservado para os que se tornam ameaça real à sua imagem pública. Quando isso acontece, o ataque é meticuloso: insinuações, distorções de factos e comentários ambíguos espalham dúvidas sobre a integridade ou competência do alvo. Tudo é feito de forma a não o comprometer diretamente, mantendo intacta a aura de virtude enquanto a reputação da vítima é corroída lentamente.
No final, o narcisista comunal é um arquiteto de cenários onde a bondade se transforma em instrumento de poder. A sua maior habilidade não está apenas em convencer os outros da sua virtude, mas em convencê-los de que questioná-lo é, por si só, um ato de injustiça ou ingratidão. É essa inversão subtil, onde a vítima acaba por se sentir culpada mesmo quando é explorada, que torna a sua presença tão perigosa e o impacto das suas ações tão duradouro.
Mariana era uma figura incontornável na comunidade onde vivia. Para quem a conhecia superficialmente, parecia quase uma personagem saída de um conto edificante: estava sempre pronta a ajudar, organizava campanhas de angariação de fundos para famílias necessitadas, liderava grupos de voluntariado, promovia feiras solidárias e ainda arranjava tempo para dar palestras sobre empatia e solidariedade. O seu nome surgia com frequência nos jornais locais, quase sempre acompanhado de fotografias sorridentes em que abraçava crianças ou entregava cabazes de alimentos. Aos olhos da comunidade, Mariana não era apenas uma boa pessoa, era o exemplo vivo de virtude.
No entanto, para aqueles que conviviam com ela de forma mais próxima, a imagem começava a apresentar fissuras. O altruísmo de Mariana não era gratuito, e muito menos desinteressado. Cada gesto de ajuda era meticulosamente calculado para maximizar a visibilidade e o reconhecimento. Não havia entrega de donativo sem fotografia, não havia reunião de voluntários sem que Mariana assumisse a posição central, discursando com eloquência sobre o valor da compaixão. O olhar cintilante que dirigia aos presentes parecia registar não apenas a aprovação, mas também a hierarquia tácita que estabelecia: ela no topo, os outros como satélites a girar em torno da sua aura moral.
Mariana tinha um talento especial para escolher as causas que lhe trariam maior retorno social. Ajudar discretamente, sem que ninguém soubesse, simplesmente não estava no seu repertório. Se alguém lhe sugeria apoiar uma família que preferia anonimato, a sua expressão mudava tornando-se subitamente menos entusiasmada, sugerindo que não havia logística ou que não seria eficiente. A verdade era simples: se não pudesse ser vista, reconhecida e celebrada, o interesse evaporava.
Em casa, a narrativa era bem diferente. O companheiro, Luís, e a filha adolescente, Clara, conheciam uma Mariana fria, exigente e profundamente crítica. Pequenos gestos domésticos de Luís passavam despercebidos, mas qualquer falha era amplificada e comentada com sarcasmo. Clara, apesar de ter boas notas e comportar-se de forma exemplar, ouvia frequentemente comentários que insinuavam que podia fazer mais, que ainda não tinha atingido o seu potencial, sempre acompanhados de comparações com filhos de outras pessoas que Mariana ajudava, ironicamente, como se fossem modelos de comportamento.
Quando Mariana estava em eventos públicos, a transformação era quase teatral. O sorriso permanecia constante, a postura aberta, as palavras suaves e encorajadoras. Mas, longe dos olhares externos, a comunicação com os mais próximos era pontuada por períodos de silêncio calculado, o "silent treatment", usados como punição por qualquer atitude que ela interpretasse como falta de reconhecimento ou contrariedade às suas ideias. Era capaz de passar dias sem dirigir uma palavra a Luís, apenas para reforçar a sensação de controlo e para obrigá-lo a reganhar o seu favor.
A manipulação de Mariana não se limitava à família. Entre os voluntários, utilizava uma forma refinada de triangulação. Elogiava publicamente uma determinada pessoa enquanto insinuava, em conversas privadas, que outra era menos dedicada ou que tinha segundas intenções. Criava assim um ambiente de competição velada, em que todos se esforçavam por ganhar o seu apreço. Essa dinâmica mantinha-a no centro, com os restantes constantemente a procurar a sua aprovação e, por consequência, a aceitar as suas decisões sem questionar.
Um dos aspetos mais sofisticados do comportamento de Mariana era o uso da empatia cognitiva. Sabia identificar rapidamente as fragilidades emocionais das pessoas e explorá-las em benefício próprio. Compreendia o que cada um precisava ouvir para se sentir valorizado e dizia-o com precisão cirúrgica, mas não como um ato genuíno de ligação, antes como uma forma de criar dívida emocional. A mensagem implícita era sempre a mesma: "Eu compreendo-te, logo deves lealdade a mim."
No círculo mais restrito de amizades, Mariana cultivava uma imagem quase mística, insinuando que o seu sentido de missão era inato, que sempre tivera uma ligação especial com o sofrimento dos outros. Mas, em privado, não escondia o desprezo por aqueles que considerava fracos ou incapazes. Usava expressões depreciativas quando falava de alguns beneficiários da sua ajuda, descrevendo-os como casos perdidos ou "gente que não se quer ajudar a si mesma". Essas opiniões nunca eram reveladas fora de portas, pois minariam o papel de salvadora que sustentava a sua reputação.
Havia ainda o flirting discreto, mas constante, com alguns homens influentes da comunidade. Nada de ostensivo o suficiente para provocar escândalo, mas suficiente para manter uma rede de aliados prontos a apoiá-la e defendê-la, caso fosse necessário. Um toque no braço, um elogio insinuante, um olhar prolongado, gestos milimetricamente calculados para reforçar a sua influência social.
A compartimentalização era, talvez, a ferramenta mais impressionante no arsenal de Mariana. Para o grupo de voluntários, Luís era apresentado como o companheiro perfeito que a apoiava incondicionalmente, enquanto em casa ele era tratado como um peso, alguém que nunca estava à altura das suas ambições. Aos amigos mais íntimos, descrevia-se como vítima de um casamento difícil, insinuando que carregava sozinha o fardo da família, ao mesmo tempo que, noutras ocasiões, o elogiava efusivamente para outros círculos. Essas versões contraditórias raramente se encontravam, pois Mariana mantinha os diferentes grupos cuidadosamente separados, garantindo que a sua imagem permanecia intacta em cada um deles.
Com o tempo, alguns começaram a notar incoerências. Uma voluntária que se afastou discretamente confidenciou a um conhecido que alguma coisa não batia certo na forma como Mariana lidava com as pessoas. Mas confrontá-la diretamente era arriscado: Mariana reagia com indignação, interpretando qualquer crítica como uma prova de ingratidão e reforçando o seu papel de mártir incompreendida.
O caso de Mariana ilustra de forma clara o narcisismo comunal: a grandiosidade mascarada de virtude, a manipulação emocional camuflada de altruísmo, e a necessidade incessante de reconhecimento, não pelo que realmente se é, mas pela imagem cuidadosamente construída e protegida a todo o custo. Por trás do sorriso benevolente e das palavras inspiradoras, havia uma rede complexa de controlo, chantagem emocional e cálculo estratégico, que lhe permitia manter o estatuto de coração generoso da comunidade, enquanto explorava, depreciava e manipulava aqueles que mais perto dela estavam.
O narcisista maligno representa uma das expressões mais sombrias e destrutivas da personalidade humana, um arquétipo que, apesar de partilhar algumas características com outros tipos de narcisismo, se distingue pelo modo como a sua grandiosidade se entrelaça com traços antissociais, paranoia e um prazer ativo na crueldade. O termo foi inicialmente introduzido por Erich Fromm e, mais tarde, profundamente explorado por Otto Kernberg, que descreveu esta forma como um ponto extremo no espectro narcisista, onde a vaidade e o egocentrismo já não são apenas instrumentos de defesa do ego, mas armas deliberadas usadas para subjugar, explorar e destruir.
Diferente do psicopata clássico, o narcisista maligno não é totalmente desligado de vínculos. Ele é capaz de manter um tipo de lealdade seletiva ao seu círculo mais restrito, aquilo a que Kernberg chamava de coorte: um grupo de aliados, cúmplices ou seguidores, que ele preserva não por afeto genuíno, mas por utilidade estratégica. Contudo, essa lealdade é condicional, constantemente testada e sustentada pelo medo, pela manipulação e pelo interesse mútuo. Se alguém desse círculo ousar questionar ou ameaçar o seu domínio, a reação pode ser brutal e calculada, quase sempre com uma intenção dupla: punir o infrator e enviar uma mensagem inequívoca aos restantes.
O narcisista maligno é mestre na manipulação. Contudo, esta não é subtil ou revestida de falsa inocência como no narcisista vulnerável, nem mascarada de altruísmo como no narcisista comunal. No seu caso, é uma manipulação direta, implacável, que muitas vezes se mistura com intimidação aberta. Ele sabe identificar rapidamente os pontos fracos das pessoas e explorá-los sem hesitação, usando a informação obtida para corroer a autoestima das suas vítimas. O gaslighting é uma das suas ferramentas prediletas: não se limita a distorcer a perceção da realidade, mas fá-lo com uma intensidade e frequência que visam não apenas confundir, mas desestabilizar profundamente, deixando a vítima num estado de constante dúvida sobre a sua própria sanidade.
A mentira, para este tipo de narcisista, não é apenas um recurso pontual sendo uma prática habitual e estratégica. Ele não mente apenas para escapar de consequências ou proteger a sua imagem, mas também para criar narrativas que lhe permitam exercer maior controlo. Com frequência, essas narrativas envolvem a difamação de terceiros, sendo o assassinato de carácter quase uma segunda natureza, fabricando histórias que mancham reputações e isolam emocionalmente a vítima. A frieza emocional é absoluta. Ele não se sente incomodado com o sofrimento que provoca. Pelo contrário, muitas vezes retira prazer do impacto que causa, especialmente quando este sofrimento confirma o seu poder sobre o outro.
A empatia cognitiva, apesar de existir, não é usada para criar ligação ou compreensão, mas para afinar o ataque. Ele consegue imaginar o que a vítima sente e, com base nisso, escolher as palavras, os gestos e os momentos mais eficazes para infligir dano. O controlo é exercido em todas as dimensões: emocional, social, financeira e até física. Em privado, os ataques de raiva são intensos, quase sempre calibrados para amedrontar e subjugar, mas raramente descontrolados ao ponto de comprometer a imagem pública. No espaço social, o narcisista maligno pode apresentar-se como encantador, persuasivo e seguro, uma máscara que lhe garante acesso a novas fontes de influência e potenciais alvos.
O sadismo é um traço que se manifesta de forma explícita. Não se trata apenas de obter vantagens através do sofrimento alheio, mas de sentir satisfação em provocar esse sofrimento. O prazer na humilhação é visível, por vezes subtil, por vezes descarado, e pode surgir em pequenos comentários venenosos, em críticas públicas disfarçadas de humor, ou em demonstrações de poder que colocam os outros numa posição de impotência. Há, nestas ações, uma componente de paranoia: o narcisista maligno interpreta críticas ou desacordos como ameaças diretas e reage com medidas desproporcionadas, eliminando ou neutralizando quem perceciona como adversário.
O flirt público, quando presente, não é motivado por sedução genuína, mas como tática para criar ciúmes, insegurança ou tensão dentro de um grupo, reforçando assim o seu controlo. A triangulação é frequente: ele coloca pessoas umas contra as outras, espalhando versões diferentes da mesma história, alimentando desconfianças e rivalidades que garantem que todos mantenham a atenção nele como figura central. O "silent treatment", por sua vez, é usado como arma de punição psicológica, retirando atenção e comunicação de forma a provocar ansiedade e submissão na vítima.
O narcisista maligno vê os relacionamentos como transacionais. Cada interação é avaliada pelo que pode trazer de útil: acesso a recursos, influência, status ou prazer. Quando alguém deixa de ser útil ou perde valor estratégico, é rapidamente descartado ou rebaixado. A compartimentalização é evidente. Ele mantém diferentes facetas e grupos de relacionamento isolados uns dos outros, impedindo que se juntem informações que possam ameaçar a sua posição ou revelar a sua verdadeira natureza.
O impacto de um narcisista maligno é tremendo. As vítimas frequentemente emergem com traumas profundos, perda de confiança em si mesmas e nas relações humanas, e cicatrizes emocionais duradouras. No entanto, para o próprio narcisista maligno, estas consequências não têm qualquer relevância moral sendo na sua lógica, inevitáveis e até desejáveis, desde que confirmem a sua superioridade. Em contextos clínicos e forenses, este perfil é observado com preocupação especial, pois está frequentemente associado a comportamentos criminosos, abusivos e, em casos extremos, violentos. A sua capacidade de manipular, a ausência de remorso e o prazer na crueldade fazem dele não apenas um agressor psicológico, mas também uma ameaça real à segurança e ao bem-estar de quem o rodeia.
Deste modo, o narcisista maligno é mais do que um indivíduo com traços narcisistas acentuados. Ele é a personificação de uma fusão perigosa entre grandiosidade, frieza e agressividade deliberada, um predador social que se move com inteligência e cálculo, escolhendo com cuidado os momentos para atacar e as formas de manter o seu domínio. Compreender a sua dinâmica não é apenas um exercício académico, mas uma necessidade urgente para reconhecer, prevenir e, quando possível, neutralizar o alcance dos seus danos.
Tomás tinha um talento incomum para conquistar a confiança das pessoas. Alto, bem-apessoado, com um sorriso estudado e um olhar firme, transmitia a sensação de segurança e competência. Nos primeiros contactos, fosse num jantar social, numa reunião de negócios ou numa conversa informal, conseguia cativar todos com histórias bem contadas e comentários inteligentes. Mas por detrás desse verniz de charme e segurança escondia-se um lado obscuro, calculista, cruel e sempre pronto a usar os outros como peças num tabuleiro que só ele controlava.
Nascido numa família de posses, cresceu habituado a obter o que queria. O pai, rígido e exigente, ensinou-o que o respeito se conquista pelo medo e pela demonstração de poder. A mãe, emocionalmente distante, reforçou nele a ideia de que vulnerabilidade era fraqueza. Deste modo, Tomás aprendeu desde cedo que empatia genuína era um luxo inútil, e que as relações serviam acima de tudo para consolidar a própria posição.
No trabalho, Tomás assumia o papel do líder visionário. Sempre com uma solução para cada problema, sabia como inspirar a sua equipa, pelo menos até que alguém ousasse contrariá-lo. Quando isso acontecia, a máscara caía. Os seus olhos perdiam o brilho aparente e ganhavam um tom frio e ameaçador. Nesses momentos, a sua crueldade emergia com precisão cirúrgica. Nunca explodia de forma descontrolada. Pelo contrário, atacava com cálculo. Escolhia palavras cortantes, atingia inseguranças específicas, e espalhava dúvidas sobre a competência da pessoa visada, não de forma direta, mas através de insinuações cuidadosamente semeadas.
Tomás dominava a arte da triangulação. Fazia um colaborador acreditar que outro o estava a criticar pelas costas, enquanto dizia ao segundo que o primeiro queria minar o seu trabalho. Em pouco tempo, conseguia que ambos se desentendessem, enquanto ele, como figura central, permanecia como o único mediador aparente. Esse jogo de dividir para reinar dava-lhe uma sensação de poder quase intoxicante.
A sua crueldade não se limitava ao contexto profissional. Em casa, com Clara, a companheira de longa data, o padrão era igualmente sombrio. No início do relacionamento, foi o homem ideal: atento, sedutor, protetor. Fazia Clara sentir-se especial e única. Mas, gradualmente, começou a introduzir pequenas críticas disfarçadas de preocupação: comentários sobre a roupa que usava, o tom de voz que adotava em certas situações, ou a forma como se relacionava com os amigos. Essas observações, inicialmente esporádicas, tornaram-se rotina, desgastando lentamente a autoestima de Clara.
Quando queria puni-la, recorria ao "silent treatment". Podia passar dias sem lhe dirigir uma palavra, apenas respondendo com olhares de desdém ou silêncio absoluto, criando um clima sufocante dentro de casa. Outras vezes, exibia frieza emocional absoluta, ignorando deliberadamente os sentimentos dela, mas mantendo sempre a capacidade de, perante terceiros, mostrar-se como um companheiro dedicado. Essa duplicidade era uma das suas armas mais afiadas: mantinha a imagem pública impecável enquanto, em privado, corroía emocionalmente quem lhe estava próximo.
O prazer de Tomás em exercer controlo não era apenas sobre comportamentos, estendia-se à dor emocional que conseguia infligir. Era paciente nas suas manipulações, deixando que a vítima se afundasse em insegurança e confusão antes de oferecer uma breve trégua, como uma recompensa pela submissão. Esses momentos de aparente reconciliação nunca eram gratuitos: serviam apenas para reforçar a dependência emocional da outra pessoa.
A sua paranoia surgia em momentos estratégicos. Suspeitava constantemente de traições, críticas ou conspirações contra si, e usava essas suspeitas, reais ou inventadas, para justificar ataques preventivos. Se sentia que a sua autoridade estava em risco, não hesitava em espalhar mentiras calculadas para destruir reputações. Uma vez, convenceu um investidor importante de que um antigo sócio estava a desviar fundos, sem nunca apresentar provas concretas. O sócio viu-se isolado e descreditado, enquanto Tomás surgia como o salvador do negócio.
O sadismo de Tomás não se manifestava apenas nas grandes jogadas. Havia um deleite quase imperceptível em pequenos gestos de humilhação: interromper alguém propositadamente numa reunião para expor uma falha, ou fazer uma piada que, embora parecesse inofensiva aos outros, atingia uma ferida sensível na vítima.
Apesar de todas estas características, Tomás mantinha um círculo restrito de lealdade. Alguns colegas e amigos, especialmente aqueles que lhe eram úteis, recebiam proteção e benefícios, desde que nunca o desafiassem. Essa lealdade ao coorte não se baseava em afeto genuíno, mas em cálculo: pessoas protegidas eram peões valiosos para executar planos e manter a sua rede de poder.
Clara, eventualmente, começou a reconhecer o padrão. Sentia-se drenada, emocionalmente esvaziada e presa numa teia que, mesmo quando visível, parecia impossível de romper. Cada vez que tentava confrontá-lo, Tomás reagia com uma mistura de desprezo e falsa preocupação: "Estás a imaginar coisas, Clara. Tu é que andas muito sensível ultimamente." Este gaslighting constante minava a sua perceção da realidade, tornando-a cada vez mais dependente da narrativa que Tomás impunha.
No fundo, Tomás alimentava-se dessa dinâmica. O seu narcisismo maligno era sustentado pela capacidade de manipular, humilhar e subjugar, sempre sem perder o controlo da sua imagem pública. Para quem olhava de fora, ele era o exemplo de sucesso e liderança. Para quem vivia sob a sua influência direta, era uma presença sufocante, que alternava entre o encanto e a crueldade calculada, sempre com a intenção de manter-se no topo, custasse o que custasse.
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