A Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) manifesta-se através de um conjunto complexo de comportamentos que afetam profundamente as vítimas. Este capítulo analisa detalhadamente os padrões mais comuns: dupla face, ciclos abusivos de idealização e descarte, gaslighting, manipulação, frieza emocional, inveja, infidelidade, triangulação, assassinato de caráter entre outras dinâmicas que destroem gradualmente a autoestima da vítima.
Estes comportamentos não ocorrem isoladamente, mas de forma interligada e repetitiva, criando um ambiente de confusão emocional e dependência psicológica. Cada secção descreve uma dinâmica central, ilustrada com um caso de estudo que ilustra como estas interações se desenrolam no quotidiano.
Ao compreender estas dinâmicas, será possível identificar sinais precoces, proteger-se emocionalmente e reconhecer a ligação entre tais padrões e os mecanismos psicológicos subjacentes à PPN.
A compreensão da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) exige um olhar atento sobre a forma como o indivíduo articula duas realidades aparentemente contraditórias: a imagem pública de encanto, admiração e confiança, e a expressão privada marcada por abuso, manipulação e exploração. Esta duplicidade não é apenas uma característica ocasional, mas constitui um dos pilares estruturantes da dinâmica narcisista. A metáfora da máscara ajuda a ilustrar este fenómeno: em público, o narcisista veste uma persona cuidadosamente desenhada para conquistar respeito e afeto. Em privado, quando a cortina social se fecha, revela-se um outro rosto, desprovido da contenção social, onde emergem hostilidade, desvalorização e comportamentos de controlo. Esta duplicidade não resulta de simples hipocrisia ou falsidade consciente, mas de um mecanismo funcional mais profundo que articula defesa, adaptação e exercício de poder relacional.
Num primeiro contacto, é frequente que o indivíduo com PPN se apresente como alguém admirável, competente, humanitário, capaz de encantar pela eloquência, confiança ou até por uma aparente generosidade. O narcisista investe intensamente na criação de uma imagem social atraente. Ele domina a arte de encantar e convencer, projetando uma imagem cuidadosamente erguida. Esta imagem não é apenas um recurso espontâneo, mas sim uma verdadeira construção estratégica que lhe permite assegurar o que mais deseja: admiração, validação e reconhecimento. A máscara social funciona como um instrumento de mediação entre a sua vulnerabilidade interna e as exigências do meio. É alimentada pela necessidade de ser visto como especial, e a sociedade oferece os palcos ideais para essa exibição. A vida profissional, os contextos académicos, as redes sociais ou mesmo os círculos comunitários tornam-se arenas privilegiadas para a afirmação da persona pública. É nesta dimensão que o narcisista constrói reputação, acumula capital simbólico e garante uma fonte contínua de reforço narcisista.
Essa máscara é construída através da leitura atenta das expectativas do outro: o narcisista capta sinais, identifica o que é valorizado e molda-se para corresponder a essa imagem. Na esfera pública esta performance é por isso altamente funcional podendo introduzir-se como alguém elegante, charmoso, confiante, carismático, generoso, espirituoso ou até altruísta. É o vizinho prestável que ajuda em pequenas tarefas, o colega admirado no trabalho que aparenta ser confiável, o amigo que se mostra sempre encantador e disponível, ou o parceiro que, em público, exibe gestos de carinho e dedicação. O narcisista é um mestre em impressionar. Deste modo, colegas de trabalho, vizinhos e conhecidos frequentemente descrevem estas pessoas como brilhantes, simpáticas ou até humanitárias.
Contudo, esta máscara não é estática. Ela ajusta-se de acordo com a audiência. Perante pessoas influentes, pode prevalecer a imagem de competência e liderança. Diante de amigos próximos, pode emergir uma persona afetuosa e compreensiva. Esta plasticidade não é um sinal de autenticidade, mas antes uma capacidade camaleónica que serve ao mesmo propósito: maximizar admiração e minimizar qualquer risco de exposição da sua fragilidade interna. A máscara social é, portanto, simultaneamente sedutora e protetora, encobrindo a verdadeira natureza das dinâmicas relacionais que se revelam no espaço íntimo.
Esta fachada não é apenas superficial, sendo cuidadosa e habilmente construída para inspirar confiança e atrair admiração, mantendo os outros numa teia subtil de influência e controlo. Esta "máscara social" permite-lhe manipular percepções, conquistar posições de prestígio e manter relações que reforçam a sua imagem idealizada.
Se a vida pública é governada pela máscara, a intimidade revela uma outra face. É no espaço privado, longe das exigências de contenção e da vigilância social, que se manifesta a verdadeira expressão do narcisismo. Aqui, o parceiro íntimo, os filhos ou familiares próximos tornam-se alvo de dinâmicas de manipulação, depreciação e abuso emocional.
O narcisista já não necessita de sustentar a máscara encantadora, pois no domínio da intimidade a admiração externa já foi conquistada e o vínculo está, de algum modo, assegurado. É nesse momento que se instala a alternância entre momentos de aparente proximidade e gestos de crueldade. A vítima, frequentemente surpreendida pela discrepância entre a imagem pública do narcisista e o comportamento privado, acaba por duvidar das suas próprias perceções. Esta discrepância gera confusão, insegurança e dependência emocional.
Na intimidade, a necessidade de controlo torna-se mais evidente. O narcisista sente o espaço privado como um território de domínio exclusivo, onde pode exercer poder sem a ameaça da avaliação externa. A crítica, a humilhação velada, o desprezo e até o silêncio como forma de punição são estratégias comuns. A lógica subjacente é a de reforçar a posição de superioridade e assegurar que o outro permanece subordinado às suas necessidades.
É também no espaço íntimo que se revela a vulnerabilidade mais encoberta do narcisista. Apesar da aparência de força, o narcisista vive constantemente ameaçado pela possibilidade de rejeição, pela crítica ou pela exposição das suas fragilidades. O abuso no espaço privado, paradoxalmente, é também um mecanismo para afastar esse risco. Ao reduzir a autoestima do outro, o narcisista protege-se da possibilidade de abandono e assegura a manutenção do vínculo, ainda que pela via da submissão.
A coexistência de uma face pública idealizada e de uma face privada destrutiva não se explica apenas pela má-fé ou pela duplicidade consciente. Trata-se, sobretudo, de um mecanismo funcional que combina adaptação social e controlo interpessoal.
Na dimensão adaptativa, a máscara social permite ao narcisista circular em contextos sociais de forma aparentemente bem-sucedida. Sem essa construção, estaria mais exposto a críticas, rejeições ou fracassos, experiências que são intoleravelmente dolorosas para o seu frágil sentido interno de valor. A máscara é, portanto, um recurso de sobrevivência psicológica, um escudo contra o olhar externo.
Na dimensão do controlo, o narcisista mobiliza a cisão entre o público e o privado como uma forma de gerir relações. O contraste entre a admiração externa e o abuso interno funciona como um instrumento de poder. A vítima, ao perceber que a imagem pública do narcisista é positiva e até exemplar, sente-se isolada e descrente de que o abuso que sofre possa ser reconhecido pelos outros. Este isolamento reforça a dependência e mina a capacidade de procurar apoio.
Estes mecanismos não são aleatórios: fazem parte de uma lógica interna profundamente enraizada. O narcisista não lida bem com a ambivalência, pelo que tende a compartimentar a experiência. As emoções, os papéis e os comportamentos são rigidamente divididos entre o que é aceitável e visível e o que é inaceitável e escondido. Esta cisão funcional, embora adaptativa em termos de sobrevivência psicológica, traduz-se em dinâmicas destrutivas no plano relacional.
A analogia ao Dr. Jekyll e ao seu alter ego Mr. Hyde, personagens da obra literária "The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde" (1886) de Robert Louis Stevenson, é frequentemente utilizada para ilustrar a dupla face do indivíduo com perturbação de personalidade narcisista. A comparação não é somente literária, captando, com impressionante precisão, a discrepância entre a imagem pública cuidadosamente construída e a realidade oculta que apenas algumas pessoas, normalmente as mais próximas, têm a infelicidade de testemunhar. Na história original, o Dr. Jekyll é um médico respeitado, educado e admirado na sociedade vitoriana. No entanto, através de uma fórmula química, ele liberta o seu lado reprimido e destrutivo: Mr. Hyde. Este último, um homem cruel, violento e destituído de consciência moral. Esta transformação literal, na narrativa de Stevenson, serve como metáfora poderosa para a cisão interna que também se verifica no narcisista: uma identidade pública charmosa e uma realidade privada sombria.
No contexto do narcisismo, o Dr. Jekyll representa a fachada social:
Amável, charmoso e aparentemente confiante.
Altamente competente em criar uma impressão positiva em novos contactos.
Exímio em gerir a própria imagem, usando carisma e sedução social para obter validação e respeito.
Pode demonstrar generosidade e atenção, mas sempre de forma calculada, com um objetivo subjacente de autopromoção ou controlo.
Esta fachada é uma construção estratégica. O narcisista sabe que a aceitação social depende de demonstrar certas qualidades, e, por isso, investe energia em desempenhar esse papel. No entanto, tal como Dr. Jekyll não podia manter eternamente a sua forma respeitável sem que Mr. Hyde emergisse, o narcisista também não consegue sustentar indefinidamente a máscara.
Nos bastidores, longe dos olhares do público, surge o Mr. Hyde, a verdadeira personalidade que poucos conhecem, mas que causa danos profundos:
Comportamentos manipuladores e calculistas, usados para explorar emocional ou materialmente os outros.
Falta de empatia genuína, substituída por uma frieza emocional ou empatia cognitiva, que vê as pessoas como peças num tabuleiro.
Tendência para a agressividade verbal (ou mesmo física), ataques de raiva desproporcionados (tantrums) e humilhação deliberada.
Necessidade de controlo, alimentada por inseguranças internas que são mascaradas por arrogância.
A força desta analogia está na sua invisibilidade aparente. Tal como na narrativa de Stevenson, onde ninguém suspeita que o distinto Dr. Jekyll e o vil Mr. Hyde sejam a mesma pessoa, as vítimas de um narcisista frequentemente enfrentam descrédito quando tentam expor o comportamento abusivo. Amigos, colegas ou familiares que só conheceram a versão pública não conseguem conciliar essa imagem com as descrições de abuso (dissonância cognitiva). Isso agrava o isolamento das vítimas, pois estas são não apenas abusadas psicologicamente, financeiramente e fisicamente, como também incompreendidas e desacreditadas.
Outro ponto relevante é que, na obra, Mr. Hyde não é apenas um outro lado: ele cresce e ganha força à medida que é alimentado. No narcisismo, a dinâmica é semelhante. Quanto mais o narcisista sente que a sua fachada está segura e intacta, mais se permite libertar o seu lado abusivo em contextos privados. O abuso é muitas vezes meticulosamente escondido atrás de portas fechadas, onde não há risco de testemunhas que possam comprometer a imagem pública.
A analogia também ajuda a compreender o ciclo de abuso característico das relações românticas envolvendo um narcisista:
Fase de idealização: O Dr. Jekyll domina, mostrando encanto, atenção e aparente empatia.
Fase de desvalorização: O Mr. Hyde começa a emergir, com críticas, sarcasmo, desdém e manipulação.
Fase de descarte: A frieza total substitui qualquer afeto anterior, podendo ser acompanhada de humilhações ou abandono.
Fase de reconciliação (hoovering): O Dr. Jekyll reaparece com demonstrações de afeto, atenção e charme, resgatando o encanto da fase inicial para reconquistar a vítima, sem, contudo, assumir responsabilidades ou efetuar mudanças reais.
A alternância imprevisível entre demonstrações de afeto e atos de distanciamento, em que os momentos de proximidade dependem da vítima se encontrar a servir os interesses do narcisista, configura o que na psicologia se designa por reforço intermitente, uma das estratégias mais poderosas na criação de dependência, presente em comportamentos aditivos como os jogos de azar. A alternância entre gestos de afeto e comportamentos abusivos gera dissonância cognitiva na vítima, fruto da incongruência entre as ações e a imagem que tem do agressor. Este mecanismo intensifica a confusão emocional, reforça a dependência e aprofunda a ligação traumática, trauma bonding, tornando a rutura ainda mais difícil.
Por fim, a escolha desta metáfora sublinha que o narcisista não é apenas um indivíduo com dias bons e dias maus, é alguém que vive numa cisão psicológica funcional, apresentando deliberadamente uma versão pública diametralmente oposta à privada. Tal como na história de Stevenson, o perigo não reside apenas no lado monstruoso, mas na sua capacidade de se esconder à vista de todos, protegido por uma máscara impecavelmente polida.
Deste modo, compreender a analogia Dr. Jekyll/Mr. Hyde no narcisismo não é apenas um exercício literário, sendo uma ferramenta para reconhecer a manipulação invisível, validar as experiências das vítimas e quebrar o mito de que o comportamento abusivo é fora do caráter. Pelo contrário, ele é parte integrante de uma dualidade cuidadosamente gerida.
As consequências desta duplicidade são tremendas. A vítima vive permanentemente num estado de confusão cognitiva e emocional, tentando conciliar a imagem pública encantadora do narcisista com a experiência privada de abuso. Esta dissonância mina a confiança nas próprias perceções e contribui para o desenvolvimento de estados de ansiedade, depressão e sentimentos profundos de inadequação.
O isolamento social é uma consequência frequente. Como a imagem pública do narcisista é geralmente positiva, a vítima hesita em procurar apoio ou partilhar a sua realidade, temendo não ser acreditada. A sensação de solidão aprofunda-se, e a dependência emocional em relação ao narcisista aumenta.
A longo prazo, estas experiências deixam marcas profundas. Muitas vítimas relatam sintomas compatíveis com perturbação de stress pós-traumático complexo, caracterizada por hipervigilância, dificuldade em confiar e sentimentos persistentes de vergonha. O impacto não se limita à esfera emocional: pode comprometer a vida profissional, as relações familiares e a capacidade de estabelecer novos vínculos de confiança.
Em suma, a máscara narcisista não é apenas um artifício social inofensivo. É uma construção estratégica que garante admiração em público e possibilita abuso em privado. A compreensão desta dinâmica é essencial para que se possa reconhecer, prevenir e intervir de forma eficaz nas relações marcadas pela perturbação de personalidade narcisista.
Quando Manuel conheceu Olga, nada parecia destoar de um início de relação saudável. Ele tinha trinta e oito anos, um homem reservado, trabalhador, com uma vida simples, mas sólida, construída à base de disciplina e dedicação. Olga era radiante. Tinha um charme magnético que atraía olhares em qualquer lugar onde entrasse. Falava com desenvoltura, sabia escolher as palavras certas e transmitia uma confiança quase arrebatadora. Quando conheceu Manuel, soube instintivamente quais os pontos fracos dele e tocou-os como quem toca piano com dedos experientes. Admirou a sua dedicação ao trabalho, elogiou a sua honestidade. Manuel, que nunca se vira como alguém particularmente especial, começou a sentir-se visto, reconhecido e apreciado. A presença de Olga iluminava-lhe os dias.
Nos primeiros meses, a relação parecia uma história de amor perfeita. Olga mostrava-se afetuosa em público, sempre atenta, quase protetora. Dizia com orgulho a amigos e familiares que tinha encontrado um homem de valores, diferente dos outros. Manuel sentia-se honrado por ser apresentado como um exemplo de companheiro. Nos jantares de grupo, Olga entrelaçava os dedos nos dele, ria-se das suas piadas mais simples e falava dele com admiração. Todos viam uma relação harmoniosa, marcada por cumplicidade e carinho.
Mas à medida que os meses avançavam e a intimidade crescia, Manuel começou a notar pequenas fissuras naquilo que até então parecia uma superfície perfeita. O que em público era um gesto afetuoso, em privado transformava-se numa crítica subtil. Se ele chegava cinco minutos atrasado, Olga acusava-o de ser desorganizado e desrespeitoso. Se expressava uma opinião divergente, era imediatamente silenciado com sarcasmo: "Claro, o senhor sabe tudo". Manuel, no início, interpretava essas reações como fruto de inseguranças naturais numa relação, esforçando-se por ser mais cuidadoso.
O que ele não percebia era que já estava preso na teia de Olga. O padrão instalava-se com uma precisão quase científica: em público, ela era a parceira perfeita, doce e atenciosa, mas em privado surgia uma frieza calculada. Pequenos erros de Manuel eram transformados em grandes falhas de caráter. E quando ele se defendia, era acusado de ser demasiado sensível, incapaz de lidar com uma mulher forte.
A máscara pública de Olga era imaculada. No trabalho, era vista como competente e generosa. Entre amigos, era aquela que organizava encontros, lembrava aniversários e surpreendia com gestos aparentemente altruístas. A família de Manuel ficou rapidamente encantada com ela, elogiando a sua postura elegante e a forma como parecia tratar Manuel com tanto carinho. Essa reputação funcionava como muralha contra qualquer dúvida: quem ousaria imaginar que por detrás do sorriso caloroso se escondia uma faceta malévola?
Manuel, no entanto, conhecia o reverso. No silêncio da casa partilhada, Olga revelava-se impiedosa. Havia dias em que o ignorava por completo, passando horas sem dirigir-lhe a palavra, apenas porque ele não lhe satisfizera uma expectativa não verbalizada. Noutras vezes, desferia ataques de raiva desproporcionados, acusando-o de egoísmo quando, na realidade, ele apenas tentava descansar após um dia de trabalho. O que mais confundia Manuel eram os momentos em que, depois de um período de frieza e hostilidade, Olga voltava subitamente a mostrar carinho, abraçando-o e dizendo que o amava. Esses instantes de afeto funcionavam como bálsamo, convencendo-o de que talvez ela estivesse apenas stressada e que o amor verdadeiro ainda lá estava.
Este ciclo de carinho e crueldade instalou-se como um padrão invisível mas destruidor. Manuel começou a duvidar de si próprio. Será que era demasiado exigente? Será que estava a falhar como companheiro? Olga alimentava essas dúvidas com maestria, manipulando as fragilidades dele e convertendo cada tentativa de confronto numa acusação contra ele próprio. Quando Manuel tentava explicar-lhe como se sentia diminuído pelas críticas constantes, ela respondia com ironia: "Impressionante, consegues sempre transformar tudo em algo sobre ti. Devias era agradecer por eu me preocupar contigo."
Aos olhos do mundo, Manuel tinha uma relação invejável. Os amigos comentavam a sorte que ele tinha tido em encontrar uma mulher tão dedicada. Até o filho dele, que só via a Olga nas ocasiões públicas em que ela exibia a sua melhor versão, acreditava que ela era uma presença positiva. Manuel sentia-se cada vez mais isolado na sua própria dor. Se tentava confidenciar a alguém sobre as atitudes dela, a resposta era sempre de incredulidade: "Mas a Olga? Estás a exagerar, ela é fantástica."
Este descrédito social agravava o tormento. Manuel passou a silenciar-se, engolindo as humilhações em privado. O impacto começou a refletir-se na sua saúde: noites mal dormidas, ansiedade permanente, falta de concentração no trabalho. Sentia-se numa prisão sem grades, com a certeza de que ninguém acreditaria na sua versão da história.
Olga, por seu lado, parecia alimentar-se desse poder invisível. Sabia que tinha conquistado a imagem pública perfeita, e isso dava-lhe liberdade para exercer o lado oculto sem medo de exposição. Quanto mais sólida era a sua reputação, mais ousada se tornava a sua crueldade em privado. Manuel tornou-se, aos olhos dela, não um companheiro, mas um espelho onde projetava a sua raiva e o vazio que não conseguia suportar.
A relação prolongou-se durante anos, marcada por essa dualidade destrutiva. Manuel permaneceu preso, não porque não visse o abuso, mas porque estava emocionalmente condicionado. Os momentos esporádicos de afeto de Olga funcionavam como recompensas imprevisíveis, que o faziam acreditar que talvez tudo pudesse mudar. Este reforço intermitente, semelhante ao mecanismo que prende jogadores compulsivos ao vício, mantinha-o emocionalmente atado, apesar da dor.
O desfecho não chegou de repente, mas por desgaste. Manuel começou a perder vitalidade, a afastar-se de amigos, a duvidar da sua própria perceção da realidade. Foi apenas quando recorreu a ajuda de um psicólogo que reconheceu que estava a ser destruído lentamente. Mesmo assim, ao tentar afastar-se, enfrentou a ira de Olga, que em público o acusava de a abandonar sem motivo, reforçando a imagem de vítima injustiçada.
O caso de Manuel e Olga mostra de forma clara como a dualidade narcisista se manifesta na prática. A máscara pública de Olga, o Dr. Jekyll encantador e irrepreensível, convencia todos. O Mr. Hyde escondido, revelado apenas no espaço privado, minava Manuel até ao limite. Para ele, a experiência foi desoladora: uma espiral de isolamento, descrédito e trauma emocional. Para Olga, tratou-se apenas da execução meticulosa da sua necessidade de validação e domínio.
Este exemplo ilustra não só a crueldade silenciosa do narcisismo patológico, mas também o dilema das vítimas: viverem numa realidade paralela em que a verdade íntima é sistematicamente negada pelo olhar externo. Tal como no romance de Stevenson, o que mais aterroriza não é apenas a existência de Mr. Hyde, mas o facto de ele permanecer invisível aos olhos da sociedade, protegido pela sombra impecável de Dr. Jekyll.
O ciclo de Idealização » Desvalorização » Descarte » Hoovering é um dos padrões mais emblemáticos da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), explicando a dinâmica emocionalmente aniquiladora vivida por vítimas de narcisistas. Este ciclo não é apenas um comportamento relacional comum, sendo um mecanismo profundamente enraizado na estrutura psicológica do narcisista, refletindo a fragilidade do seu self e a sua dependência de validação externa para regular a autoestima.
O ciclo inicia-se com a fase de idealização, também conhecida como love bombing. O narcisista apresenta-se como o parceiro perfeito: atencioso, carinhoso, empático e absolutamente encantador. Envia mensagens constantes, elogia de forma exuberante e, por vezes, oferece presentes dispendiosos. Esta fase cria uma ilusão de intimidade e ligação profunda em tempo recorde, ativando mecanismos neuroquímicos na vítima, como a libertação de dopamina e oxitocina, que promovem apego e prazer emocional.
Durante esta fase, a vítima sente que encontrou a pessoa certa. A intensidade do afeto e da validação recebida é incomum e intoxicante, levando a vítima a confiar rapidamente no narcisista e a partilhar vulnerabilidades pessoais. Estes detalhes íntimos posteriormente serão usados contra ela. Este padrão é intencionalmente calculado: o narcisista usa empatia cognitiva para identificar necessidades emocionais e preenchê-las temporariamente, criando uma dependência psicológica.
Com o tempo, a imagem idealizada começa a desmoronar. O narcisista começa a realizar pequenos comentários depreciativos: "Isso é estúpido!" ou "Não te arranjaste como antes". Inicialmente subtis, essas críticas tornam-se cada vez mais frequentes e mais incisivas, corroendo gradualmente a autoestima da vítima. O narcisista alterna entre afeto e frieza, confundindo a vítima, que se esforça cada vez mais para reconquistar o carinho inicial.
Durante esta fase, é comum observar comparações com terceiros (e.g. "A minha ex era muito mais organizada"), sarcasmo e humor depreciativo disfarçado de brincadeira, e a retirada de afeto físico e emocional (passando de atenção intensa para frieza súbita).
Esta dinâmica gera dissonância cognitiva, uma vez que a vítima luta para conciliar a imagem inicial idealizada com o comportamento atual. Este mecanismo psicológico é demolidor conduzindo a vítima a acreditar que o problema reside nela e não no narcisista.
A fase de descarte ocorre quando a vítima deixa de fornecer a validação emocional necessária ao narcisista ou quando surge uma nova fonte de suprimento narcisista. O descarte pode ser súbito e brutal: um término inesperado, silêncio absoluto (ghosting) ou humilhações públicas.
Nesta fase, o narcisista pode já estar envolvido com uma nova vítima, repetindo o ciclo. A brutalidade desta fase é intencional: ela reforça no narcisista a sensação de poder e superioridade. Para a vítima, é esmagadora, pois ocorre num estado de vulnerabilidade emocional máxima, reforçado pelo desgaste das fases anteriores.
O termo hoovering (do aspirador Hoover) descreve a tentativa do narcisista de "sugar" novamente a vítima para a relação, mesmo após o descarte. Isto pode ocorrer dias, semanas ou até meses depois. As estratégias incluem enviar mensagens de saudade ("Não consigo parar de pensar em ti"), realizar promessas de mudança ("Vou fazer terapia, prometo que será diferente"), e apelos emocionais ("Ninguém me entende como tu").
Este comportamento reinicia o ciclo, alimentando a esperança da vítima de recuperar a fase inicial de idealização. O reforço intermitente, resultante da alternância entre carinho intenso e rejeição cruel, mantém a vítima emocionalmente presa, num padrão semelhante ao observado em dependências químicas.
Este ciclo é particularmente destruidor por três razões principais:
Reforço intermitente: alternância entre recompensa e punição que gera dependência emocional.
Dissonância cognitiva: conflito entre a imagem inicial idealizada e o abuso subsequente, levando a racionalizações ("Ele está stressado, vai melhorar").
Erosão da identidade: vítimas moldam-se às críticas e exigências, abandonando interesses, amizades e autonomia para tentar agradar ao narcisista.
Este padrão também explica porque muitas vítimas permanecem em relações abusivas durante anos, encontrando-se emocionalmente condicionadas a acreditar que, esforçando-se o suficiente, poderão recuperar a fase de idealização.
A dissonância cognitiva é um conceito central para compreender o poder destrutivo do ciclo narcisista. Em termos psicológicos, refere-se ao desconforto mental que ocorre quando uma pessoa mantém duas crenças contraditórias ao mesmo tempo. No contexto da relação com um narcisista, a vítima vê-se dividida entre duas imagens incompatíveis: o parceiro idealizado da fase inicial e o abusador frio e desdenhoso das fases seguintes.
Para reduzir esta tensão interna, a mente da vítima tende a racionalizar e justificar o comportamento do narcisista. Deste modo, em vez de reconhecer a natureza abusiva da relação, a vítima encontra explicações alternativas: "Ele está stressado", "Ela só se comporta assim porque teve uma infância difícil", "Se eu me esforçar mais, vai voltar a ser como antes". Estas justificações funcionam como mecanismos de autopreservação, pois permitem manter viva a esperança de regressar à fase de idealização.
O problema é que esta esperança é continuamente alimentada pelo próprio narcisista, que manipula a vítima através de pequenos momentos de afeto, seguidos por frieza ou abuso. Cada vez que um gesto de carinho é intercalado com rejeição, o cérebro da vítima experimenta uma descarga de dopamina semelhante à que ocorre em contextos de dependência. Isto cria uma forma de condicionamento que prende a vítima ao ciclo, mesmo quando reconhece racionalmente que está a ser maltratada.
Adicionalmente, a dissonância cognitiva mina profundamente a identidade da vítima. Para manter a crença de que a relação é válida e que o narcisista pode mudar, a vítima começa a questionar-se a si própria: "Talvez o problema seja meu", "Eu não sou suficiente", "Se eu fosse melhor, ele(a) tratava-me bem". Esta inversão de responsabilidade é esmagadora, pois leva a vítima a internalizar a culpa e a perder progressivamente a confiança em si mesma.
Na prática clínica, a dissonância cognitiva é uma das maiores barreiras à rutura com um narcisista. Não é apenas uma questão de sair fisicamente da relação, mas de conseguir reconstruir internamente uma narrativa coerente que reconheça a manipulação, a falsidade da idealização inicial e a natureza cíclica do abuso.
Por esta razão, a dissonância cognitiva pode ser considerada o cimento psicológico que mantém o ciclo em funcionamento, transformando o abuso intermitente numa prisão invisível, mas extremamente eficaz.
Helena sempre acreditou que tinha um faro apurado para identificar relações saudáveis. Aos 34 anos, com uma carreira consolidada no design gráfico e uma rede de amigos leal, não se considerava alguém facilmente manipulável. Foi exatamente essa confiança que Daniel, um homem carismático e extremamente persuasivo, soube explorar desde o primeiro encontro.
Conheceram-se numa conferência de marketing, quando ele se aproximou com um sorriso caloroso e uma atenção quase magnética. No final da primeira conversa, Helena sentia-se vista e ouvida de uma forma intensa e rara. Nas semanas seguintes, Daniel mergulhou de cabeça numa cortejo avassalador: mensagens de "bom dia" e "boa noite", convites surpresa para jantares, presentes cuidadosamente escolhidos e declarações apaixonadas que soavam quase cinematográficas. Ele falava de um futuro juntos com uma convicção que derretia as defesas dela.
Helena não percebia, mas estava a entrar na fase de idealização, também conhecida como love bombing. Daniel parecia conhecer cada lacuna emocional dela e preenchê-la com precisão. Quando ela mencionou, casualmente, que sempre quis visitar Florença, ele apareceu dias depois com um itinerário completo e passagens marcadas para dali a dois meses. Essa atenção aos detalhes criava uma ligação intensa, e artificialmente acelerada.
Com o tempo, Helena começou a partilhar segredos, inseguranças e experiências passadas. Daniel ouvia com aparente empatia, mas, na verdade, estava a recolher munições para usar mais tarde. A química, as promessas e a intensidade criaram um apego emocional profundo. Mas, gradualmente, o brilho começou a esmorecer. Sem aviso, Daniel entrou na fase de desvalorização. Os elogios deram lugar a pequenas críticas veladas: "Aquela apresentação que fizeste… podia ter sido melhor.", “Colocar protetor solar com factor 50... isso é estúpido!".
Frases assim, repetidas, começaram a corroer a autoestima de Helena. As demonstrações de afeto diminuíram. As mensagens constantes tornaram-se esporádicas. Momentos de frieza alternavam com gestos carinhosos, deixando-a confusa e ansiosa para reconquistar o Daniel que conhecera no início. Ele começou a fazer comparações: "A minha ex sempre tinha tudo organizado em casa… tu podias aprender com ela." Ou, em jantares com amigos, soltava piadas à custa dela, disfarçadas de humor. Helena ria nervosamente, mas sentia uma dor crescente. Tentava confrontá-lo, mas recebia respostas desdenhosas: "Estás a exagerar.", "Estás muito sensível..." O que Helena não percebia era que essa alternância entre carinho e crítica não era aleatória. Era um reforço intermitente calculado para mantê-la emocionalmente instável e dependente.
Depois de meses de tensão emocional crescente, a fase de descarte chegou de forma abrupta. Daniel ligou numa tarde de sexta-feira, com um tom frio e distante: "Helena, acho que já não estamos a funcionar. Preciso de espaço." Sem mais explicações, bloqueou-a das redes sociais e deixou de responder a mensagens. Para Helena, o choque foi colossal. Sentia-se não apenas rejeitada, mas também privada de qualquer oportunidade de compreender o que tinha acontecido. Sofria insónias, perda de apetite e crises de ansiedade.
Poucas semanas depois, ela viu fotos de Daniel a viajar com outra mulher, aparentemente a nova fonte de suprimento dele. A ferida emocional aprofundou-se. Helena começou a questionar se todo o relacionamento tinha sido real ou apenas uma manipulação encenada.
No entanto, o ciclo não terminara. Três meses mais tarde, Daniel reentrou em contacto, inaugurando a fase de hoovering. Mandou uma mensagem inesperada: "Estava a ouvir aquela música que dançámos em Florença… lembrei-me de ti. Sinto saudades." Nos dias seguintes, surgiram promessas: "Tenho pensado muito em nós. Percebo agora os meus erros. Estou a fazer terapia. Posso provar que mudei."
Helena, ainda emocionalmente fragilizada e com saudades da fase inicial, sentiu a tentação de acreditar. Lembrava-se do Daniel atencioso, das viagens, das conversas madrugada adentro. E foi esse conflito interno, a dissonância cognitiva, que a manteve vulnerável. Ela cedeu e aceitaram encontrar-se. Daniel foi novamente encantador, mas a nova versão dele durou pouco. Em poucas semanas, as críticas, o sarcasmo e a frieza voltaram. Helena percebeu, pela primeira vez, que estava presa num ciclo previsível, mas poderoso: idealização, desvalorização, descarte e hoovering.
A rutura definitiva só veio quando, com ajuda de uma terapeuta, Helena começou a mapear cada fase, identificando padrões e reconhecendo que a fase inicial não era prova de amor, mas uma técnica de manipulação emocional. Foi um processo lento e doloroso, mas, ao cortar contacto total, ela iniciou finalmente a reconstrução da sua identidade e autoestima.
Hoje, Helena descreve o relacionamento com Daniel como um vício. Não por acaso, compara a fase de idealização a uma droga que oferece um prazer intenso e imediato, seguida por períodos de abstinência e pequenas doses esporádicas que mantêm a dependência. A diferença é que, neste caso, a droga tinha um rosto e um sorriso encantador. O ciclo que a aprisionou durante quase dois anos é, infelizmente, comum em relações com indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista. A lição que Helena carrega é clara: compreender o padrão é o primeiro passo para não voltar a cair nele.
O gaslighting é uma das ferramentas psicológicas mais insidiosas utilizadas por indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Ao contrário de formas explícitas de abuso, que podem ser facilmente identificadas por quem está de fora, o gaslighting opera na sombra, de forma subtil e progressiva, corroendo lentamente a perceção que a vítima tem de si própria e do mundo. Trata-se de um padrão de manipulação cuja essência é a distorção da realidade, levando a vítima a duvidar da sua memória, julgamento, perceções e até da sua sanidade mental.
O termo tem origem na peça e no filme "Gaslight" (1944), em que o agressor altera pequenos elementos do ambiente de uma casa, como a intensidade da iluminação a gás, e nega sistematicamente tais mudanças, até a esposa (vítima) acreditar que está a perder a sanidade. Em contexto da PPN, a lógica é semelhante: a realidade é adulterada de forma tão consistente e convincente que a vítima passa a viver numa espécie de labirinto psicológico, onde cada saída parece levar de novo ao manipulador.
No caso da PPN, o gaslighting combina várias estratégias entrelaçadas: mentiras descaradas, negação sistemática de factos evidentes, distorção de narrativas, minimização das emoções alheias e projeção de culpa. O objetivo central não é apenas vencer discussões ou sair ileso de conflitos. Trata-se de um mecanismo de poder e controlo que desestabiliza psicologicamente a vítima, tornando-a dependente do narcisista para validar a sua própria perceção da realidade.
Um dos aspetos mais cruéis do gaslighting é que não opera de forma linear nem ocasional. É repetitivo, insidioso e altamente calculado. O narcisista sabe que, quanto mais vezes conseguir introduzir pequenas fissuras na confiança da vítima em si mesma, mais fácil será controlar os seus pensamentos, emoções e decisões. A vítima passa de uma pessoa autónoma e segura para alguém que hesita antes de cada palavra, que pede desculpa por reações legítimas e que precisa constantemente da aprovação do agressor para acreditar no que sente ou pensa.
Entre os mecanismos mais comuns encontramos a negação de factos objetivos. O narcisista, confrontado com algo óbvio, recorre a frases como "Isso nunca aconteceu", "Estás a inventar coisas" ou "Deves estar cansada, não te lembras bem". Estas frases não servem apenas para negar o evento, mas sobretudo para instalar a dúvida. Mesmo perante provas concretas, como mensagens de texto ou testemunhas, o manipulador insiste na versão oposta, obrigando a vítima a questionar não apenas o facto em si, mas a sua própria memória.
Outro recurso recorrente é a reescrita da história. Neste processo, o narcisista altera retroativamente a narrativa de eventos passados, invertendo papéis e redefinindo responsabilidades. Uma discussão em que a vítima se defendeu de insultos torna-se, na versão do abusador, uma cena em que ela é a agressora desequilibrada, e ele o injustiçado que apenas reagiu. Esta inversão é particularmente eficaz porque coloca a vítima na posição de ter de justificar a sua própria reação legítima, enquanto o narcisista se refugia no papel de mártir.
A minimização das emoções da vítima é outra estratégia central. Quando confrontado com o impacto do seu comportamento, o narcisista recorre a frases como "Estás a exagerar", "És muito sensível" ou "Isso não tem importância nenhuma". Estas respostas têm um duplo efeito: desvalorizam o sofrimento genuíno da vítima e ensinam-na que as suas emoções não são confiáveis nem válidas, empurrando-a para a dependência da validação externa.
O gaslighting pode ainda assumir a forma de mentiras plausíveis, onde falsidades óbvias se misturam com verdades parciais. Este emaranhado confuso cria uma realidade instável em que a vítima não consegue distinguir com clareza o que é real do que é fabricado. Com o tempo, a mente esgota-se na tentativa de separar factos de manipulação, e a solução mais fácil parece ser ceder ao que o narcisista afirma.
Resumidamente, entre os mecanismos centrais do gaslighting incluem-se:
Negação de eventos factuais: o narcisista nega acontecimentos evidentes, mesmo perante provas concretas. Frases como "Isso nunca aconteceu" ou "Estás a inventar coisas" induzem insegurança e confusão.
Reescrita da história: o abusador altera a narrativa de eventos passados, reconfigurando os papéis ("Foste tu que gritaste comigo, eu apenas me defendi"), transformando a vítima no agressor e ele próprio na vítima injustiçada.
Minimização dos sentimentos da vítima: quando confrontado, o narcisista desvaloriza reações emocionais legítimas: "Estás a exagerar", "És muito sensível". Isso ensina a vítima a duvidar das próprias emoções.
Uso de mentiras plausíveis: o narcisista mistura falsidades óbvias com verdades parciais, criando uma rede confusa onde a vítima não sabe distinguir o real do fabricado.
Com a repetição destes mecanismos, instala-se um isolamento progressivo. A vítima deixa de confiar na sua própria perceção e procura constantemente confirmação junto do narcisista, que se apresenta como única fonte de verdade. Por receio de ser julgada ou incompreendida, evita expor a situação a terceiros, convencida de que ninguém acreditará nela. Este isolamento psicológico fortalece o poder do agressor e enfraquece a resistência emocional da vítima.
O efeito cumulativo do gaslighting é tremendo. Não se trata de um episódio isolado, mas de uma teia prolongada de manipulações que fragiliza gradualmente a identidade, a autoestima e a confiança interna da vítima. O resultado é um estado de vulnerabilidade extrema, em que qualquer outro tipo de manipulação, seja chantagem emocional, isolamento social ou abuso económico, se torna mais fácil de aplicar.
O gaslighting serve múltiplas funções dentro da lógica do narcisista. Por um lado, é um instrumento de controlo: ao confundir a vítima, o manipulador garante que esta se apoia apenas na sua narrativa. Por outro lado, funciona como defesa do falso self, já que ao negar erros e culpar terceiros protege narcisista evita enfrentar a própria fragilidade ou responsabilidade. Finalmente, reforça a necessidade constante de validação externa: ao obrigar a vítima a procurar aprovação e orientação em cada detalhe, o narcisista alimenta o seu sentido de grandiosidade e superioridade.
Este padrão raramente atua sozinho. O gaslighting está frequentemente entrelaçado com outros comportamentos manipulativos, como o DARVO (Deny, Attack, Reverse Victim and Offender), a projeção de culpas ou o uso estratégico de mentiras e omissões. O resultado é um ciclo autoalimentado, no qual cada mentira reforça a anterior e cada dúvida instalada abre espaço para uma manipulação ainda maior.
Num contexto de relação íntima, exemplos típicos incluem a infidelidade negada, mesmo perante provas claras, seguida de acusações de "ciúmes doentios". Outro exemplo recorrente é a distorção de conversas: uma frase ofensiva claramente proferida é negada com veemência ("Nunca disse isso, estás a inventar!"), mesmo que existam testemunhas ou registos. Também é frequente a inversão de papéis, em que uma vítima que confronta abuso verbal é acusada de ser agressiva e tóxica. Finalmente, há ainda o ocultar sistemático de informações, como bloqueio de telemóveis, eliminação de mensagens ou manipulação financeira, para manter vantagem informativa e reforçar o desequilíbrio de poder.
As vítimas sujeitas a gaslighting crónico apresentam frequentemente ansiedade generalizada, fruto da constante incerteza sobre o que é real. Desenvolvem insónias e dificuldade de concentração, resultado da mente em permanente estado de alerta. A depressão é comum, alimentada pela sensação de impotência e perda progressiva de identidade. Em muitos casos, surgem sintomas de despersonalização, uma vivência de desligamento da própria realidade, como se a vida estivesse a ser observada através de um vidro ou como se a vítima vivesse num transe.
Com o tempo, instala-se uma dependência emocional extrema: paradoxalmente, a única âncora percebida pela vítima é o próprio agressor, ainda que seja ele a fonte principal do sofrimento. Esta dependência é uma das razões pelas quais muitas vítimas permanecem durante anos em relações abusivas, incapazes de confiar no seu próprio julgamento ou de imaginar uma vida autónoma.
Em situações mais graves e prolongadas, o gaslighting pode evoluir para um quadro de trauma complexo (C-PTSD). Nestes casos, surgem sintomas como hipervigilância, flashbacks emocionais, dificuldade em confiar nos outros e num mesmo, e uma sensação persistente de perda de controlo sobre a própria vida. O impacto vai muito além da relação específica: compromete carreiras, amizades e até a capacidade de estabelecer novos vínculos afetivos saudáveis.
O gaslighting é, em última análise, um ataque à essência do ser humano: a sua capacidade de confiar nas próprias perceções e de se orientar no mundo. É uma violência silenciosa, que raramente deixa marcas visíveis, mas que se entranha profundamente na mente e no corpo das vítimas. Compreender a sua dinâmica é o primeiro passo para quebrar o ciclo. Reconhecer que a dúvida sistemática e a confusão não nascem da própria falha, mas de uma manipulação intencional, é fundamental para que a vítima recupere o sentido de realidade e, com ele, a possibilidade de reconstruir a própria vida.
Laura tinha 34 anos quando conheceu Miguel. Trabalhava como designer gráfica numa agência criativa e vivia sozinha num apartamento modesto, mas luminoso, numa zona tranquila da cidade. Era conhecida pelos amigos pela sua sensibilidade e sentido de humor, e orgulhava-se de ter construído, após um relacionamento difícil na juventude, uma vida independente e equilibrada.
O primeiro encontro com Miguel foi quase cinematográfico. A amiga Carolina, que trabalhava com ele, apresentou-os num jantar de aniversário. Miguel tinha um charme tranquilo e um olhar que parecia ler mais fundo do que o permitido. Era atencioso nas palavras, ouvia com genuíno interesse, e tinha um talento especial para fazer Laura sentir-se vista e especial. Nas primeiras semanas, Miguel era tudo o que Laura achava que precisava: enviava mensagens doces de bom-dia, surpreendia-a com pequenos gestos, e incentivava-a nos seus projetos profissionais. Aos poucos, ela começou a abrir-lhe as portas da sua vida.
O primeiro sinal de gaslighting veio de forma tão subtil que Laura não o reconheceu. Numa noite, durante um jantar em casa dela, Laura comentou, rindo, que Miguel se tinha esquecido de responder a uma mensagem no dia anterior. Ele franziu o sobrolho e disse: "Não te enviei mensagem? Claro que enviei. Tu é que não viste." Laura ficou confusa. Tinha a certeza de que não tinha recebido nada, mas Miguel disse com tanta convicção que ela acabou a questionar-se. Mais tarde, verificou novamente o telemóvel mas nada. Decidiu deixar passar, convencida de que talvez fosse apenas um mal-entendido.
Com o tempo, episódios semelhantes começaram a repetir-se. Miguel negava coisas que Laura tinha visto ou ouvido. Quando ela comentava algo que ele tinha dito dias antes, ele respondia: "Eu? Dizer isso? Nunca. Deves estar a confundir com outra conversa." Ou, ainda mais desestabilizador: "Engraçado… tens andado a inventar coisas ultimamente. Será que estás a ficar demasiado cansada com o trabalho?" O tom não era abertamente agressivo pois vinha carregado de preocupação aparente, o que deixava Laura ainda mais desconfortável.
A reescrita da história tornou-se uma ferramenta frequente. Num domingo à tarde, tiveram uma discussão acalorada porque Miguel não apareceu para um compromisso que ele próprio tinha sugerido. Laura confrontou-o, magoada, e ele respondeu: "Espera aí, estás a falar sério? Tu é que disseste que estavas exausta e que preferias ficar em casa. Eu só respeitei o teu pedido." Laura ficou sem palavras. A sua memória gritava que não tinha dito nada disso, mas a confiança que sentia nele enfraquecia a sua própria certeza. Acabou por pedir desculpa.
O gaslighting começou a infiltrar-se em áreas mais íntimas. Miguel começou a minimizar os sentimentos dela. Se ela partilhava que se sentia magoada, ele reagia com: "Estás a exagerar." Ou "Estás demasiado sensível." Ao longo de meses, Laura começou a duvidar não só das suas memórias, mas também das próprias emoções. Passou a perguntar-se se estava a reagir de forma irracional.
Miguel também recorria a mentiras plausíveis. Misturava meias-verdades com pequenas falsidades, criando uma teia onde era difícil distinguir o que era real. Um dia, Laura encontrou uma mensagem suspeita no telemóvel dele, enviada por uma mulher que não conhecia. Ao questioná-lo, ele riu-se: "É uma cliente antiga. Está a pedir referências para um projeto. Achas mesmo que eu teria algo com ela?" A explicação parecia razoável, mas havia algo no tom, aquele misto de ligeiro desprezo e paternalismo, que a deixava desconfortável.
Progressivamente, Laura começou a isolar-se. Já não falava com os amigos sobre a relação, porque tinha medo de que eles não entendessem ou julgassem Miguel injustamente. Começou a recusar convites, preferindo ficar em casa, à espera que ele estivesse disponível. Sem perceber, a sua rede de apoio começou a encolher. O impacto cumulativo foi avassalador. Laura desenvolveu ansiedade e tinha dificuldade em tomar decisões simples sem consultar Miguel. Começou a sentir-se desligada de si própria, como se vivesse num nevoeiro. Quando olhava para trás, via uma versão de si mesma vibrante e confiante, agora substituída por alguém hesitante e inseguro.
O ponto de rutura chegou numa noite em que Miguel apareceu em casa visivelmente irritado. Disse que Laura tinha sido fria e distante nos últimos dias. Quando ela tentou explicar que estava preocupada com prazos no trabalho, ele respondeu: "Não tentes inverter as coisas. És tu que tens andado estranha comigo, e ainda me fazes sentir culpado. Eu é que devia estar ofendido." Foi como se uma peça se encaixasse na mente de Laura. Ele estava a acusá-la exatamente do que ela sentia que ele fazia consigo, a inversão de papéis completa.
Nessa noite, deitada na cama, Laura lembrou-se de uma conversa antiga com Carolina, a amiga que os apresentou. Carolina tinha mencionado, de passagem, que Miguel tinha um histórico complicado em relações anteriores, mas que não queria entrar em detalhes. Agora, cada memória, cada dúvida, parecia ganhar novo significado. Laura começou, em segredo, a procurar informação sobre manipulação emocional. Encontrou artigos sobre gaslighting, e, ao ler a descrição, negação de factos, reescrita da história, minimização dos sentimentos, mentiras plausíveis, isolamento progressivo, sentiu como se alguém tivesse descrito a sua vida dos últimos dois anos.
Decidir sair não foi fácil. O processo foi gradual: reconectar-se com amigos, começar terapia, guardar provas das conversas e eventos. Cada passo vinha acompanhado de medo e insegurança, mas também de pequenas fagulhas de clareza. O dia em que finalmente terminou com Miguel foi silencioso, sem gritos nem dramatismos. Ele tentou as velhas táticas, negar, inverter papéis, acusá-la de ser injusta, mas, desta vez, Laura não cedeu.
Quando fechou a porta atrás dele, sentiu uma mistura de exaustão e liberdade. Sabia que teria um longo caminho de recuperação pela frente, mas também sabia, pela primeira vez em muito tempo, que a realidade que vivia era dela, e não uma versão distorcida moldada por outra pessoa.
A estratégia DARVO (Deny, Attack, Reverse Victim and Offender) é uma das ferramentas mais emblemáticas usadas por indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) para evitar responsabilidade pelos seus atos. A sigla descreve três passos centrais e sucessivos: negar, atacar e inverter os papéis de vítima e agressor. Trata-se de um padrão que se repete com tal frequência e consistência que se torna quase previsível, embora, para a vítima, o impacto seja sempre devastador. Essa dinâmica encontra-se automática e profundamente enraizada na estrutura psicológica do narcisista. Ao negar qualquer comportamento errado e projetar culpa na vítima, ele preserva a sua frágil autoestima e evita confrontar o seu falso self, a auto-imagem grandiosa e imune a falhas que precisa manter para sobreviver psicologicamente.
O funcionamento do DARVO obedece a uma lógica que se divide em três etapas descritas individualmente em seguida.
Em primeiro lugar, surge a negação, que assume frequentemente a forma de uma rejeição categórica de qualquer comportamento problemático. O narcisista reage de imediato com frases incisivas: "Isso nunca aconteceu!", "Estás a inventar coisas!", "Não foi nada de mais, estás a exagerar!". desqualificando a perceção da vítima e invalidando a experiência emocional desta. Mesmo perante provas concretas (mensagens, testemunhas), a negação permanece firme. Esta postura não é apenas mentira deliberada, tratando-se muitas vezes de um mecanismo de defesa primitiva, como descrito por Otto Kernberg, que visa proteger o narcisista da vergonha intolerável e da ameaça à sua identidade grandiosa, que o assola sempre que a sua máscara de perfeição é ameaçada. Otto Kernberg descreveu estes processos como tentativas desesperadas de evitar a fragmentação do self e preservar a ilusão de omnipotência.
Quando a negação não é suficiente, o narcisista intensifica a reação, avançando para a fase do ataque direto. Esta etapa consiste em inverter a dinâmica de poder através da intimidação, da ridicularização e da acusação. A vítima, que inicialmente procurava apenas expressar a sua dor ou clarificar uma situação, passa de imediato a ser alvo de críticas ferozes e de insultos. O narcisista pode lançar acusações como "És completamente louc0", "Estás obcecado em controlar-me" ou "És tóxica e todos à tua volta o percebem". Esta ofensiva retira o foco da conduta abusiva do narcisista e centra-o na vítima, que se vê obrigada a justificar-se, a defender-se e, gradualmente, a duvidar de si própria. Muitas vezes, este ataque é acompanhado por explosões de raiva intensa (tantrums), conhecidas como "narcissistic rage", cujo objetivo principal é silenciar o outro através do medo e da desestabilização.
A etapa final de DARVO é a inversão de papéis, em que o narcisista adota a posição de vítima injustiçada, reescrevendo completamente a narrativa. Em vez de ser o autor do abuso, ele apresenta-se como alguém que sofre injustamente às mãos de um parceiro ingrato e cruel passa, retratando-se como alvo de perseguição, enquanto transforma a vítima em agressor. A narrativa é cuidadosamente manipulada para provocar culpa e confusão: a vítima começa a acreditar que talvez tenha exagerado ou interpretado mal a situação, enfraquecendo ainda mais a sua posição. Frases como "Depois de tudo o que eu faço por ti, ainda me tratas assim" ou "Estou exausto de tentar e tu nunca reconheces o que faço" transformam o verdadeiro agressor em mártir, enquanto a vítima passa a sentir-se culpada por ter ousado questionar. Este é um dos pontos mais corrosivos do processo, pois mina a confiança da vítima na sua própria perceção e instala um sentimento de dívida emocional para com o abusador.
Por exemplo numa situação em que o parceiro confronta o narcisista após descobrir mensagens suspeitas com outra pessoa. O narcisista, em vez de admitir o comportamento, inicia o ciclo: primeiro nega, afirmando que a conversa é de trabalho e acusando o parceiro de paranoia ("Isso é uma conversa de trabalho, não sejas paranoico"). Em seguida ataca, chamando-o de controlador ("És tão controlador que não admira que as pessoas se afastem de ti") e insinuando que a sua atitude é a verdadeira causa de todos os problemas. Por fim, inverte os papéis, declarando-se exausto e maltratado pela desconfiança que destrói a relação ("Estou cansado de viver assim, és tu que estás a destruir esta relação com a tua desconfiança"). O resultado é que a vítima, mesmo tendo provas objetivas, acaba por duvidar da sua legitimidade, chegando ao ponto de pedir desculpa por ter desconfiado. O ciclo repete-se, reforçando o poder do narcisista e aprisionando a vítima numa espiral de dúvida, culpa e impotência.
A exposição continuada a este padrão tem efeitos psicológicos graves. As vítimas, ao internalizar a narrativa do narcisista, desenvolvem frequentemente uma sensação de dúvida crónica sobre a sua própria perceção, uma culpa tóxica que as leva a acreditar serem as responsáveis pelo abuso que sofrem, e uma dissonância cognitiva permanente, já que precisam de conciliar as atitudes violentas com a memória de fases iniciais de idealização e aparente amor. Acrescente-se a exaustão emocional provocada por discussões intermináveis e circulares, que deixam a vítima drenada de energia e gradualmente incapaz de resistir. DARVO, portanto, não é apenas um mecanismo de defesa do narcisista, mas uma arma psicológica de alto impacto que fragiliza sistematicamente a resistência emocional do outro.
Associada a DARVO está a projeção, outro mecanismo fundamental na estrutura psíquica do narcisista. A projeção consiste em atribuir ao outro sentimentos, intenções ou comportamentos que pertencem, na realidade, ao próprio narcisista. Trata-se de uma inversão tão convincente e insistente que a vítima, pouco a pouco, pode passar a acreditar que o problema reside nela. Assim, um narcisista que mente recorrentemente acusa o parceiro de ser desonesto, um que procura constantemente validação através de flirts acusa o outro de ter ciúmes irracionais, um que negligencia responsabilidades acusa o parceiro de nunca se esforçar ou de ser egoísta. O reflexo é sempre distorcido: a vítima passa a carregar os erros do agressor e este liberta-se da responsabilidade.
Este processo não deve ser entendido como uma simples manipulação consciente. Embora em muitos momentos exista um cálculo estratégico, a projeção surge também como um mecanismo de defesa profundamente enraizado. Para o narcisista, admitir uma falha é equivalente a confrontar um vazio interior que remonta a experiências precoces de vergonha, rejeição ou abandono. Heinz Kohut, um dos principais teóricos do narcisismo, descreveu a fragilidade subjacente ao falso self narcisista, salientando que qualquer crítica externa é vivida como uma ameaça existencial. Deste modo, para não entrar em contacto com a dor da própria inadequação, o narcisista externaliza a culpa, despejando-a sobre a vítima.
Na prática, este processo gera dinâmicas relacionais profundamente tóxicas. A recusa sistemática em assumir falhas tem consequências severas dado que impossibilita resolução de conflitos com as discussões a tornarem-se ciclos intermináveis em que nunca se chega a uma resolução, porque o narcisista nunca assume a sua responsabilidade. Sempre que é confrontado, reage de imediato com contra-acusações. Se chega atrasado, acusa o parceiro de ser demasiado rígido. Se não cumpre uma promessa, a culpa é do parceiro por não ter lembrado. Se explode em raiva, acusa o outro de ter provocado a sua reação. A vítima, por mais racional que seja, acaba enredada nesta lógica invertida, questionando-se se não terá, de facto, contribuído para a situação.
Este ciclo tem consequências tremendas. Em primeiro lugar, gera uma erosão da confiança interna da vítima, que perde a capacidade de acreditar na sua própria perceção. Em segundo lugar, instala um padrão de submissão: para evitar o desgaste de discussões infindáveis, a vítima opta por ceder, pedir desculpa e tentar acalmar as águas. Paradoxalmente, esta estratégia apenas reforça o poder do narcisista, que interpreta a cedência como prova de culpa. O resultado é um círculo vicioso no qual o abusador se fortalece e a vítima se fragiliza progressivamente.
A externalização da culpa também impede qualquer possibilidade de crescimento pessoal por parte do narcisista. Sem a capacidade de introspeção e de reconhecimento das próprias falhas, este mantém-se preso a padrões abusivos repetidos, que contaminam relações sucessivas. A ausência de responsabilização cristaliza os mecanismos defensivos e perpetua a dependência da ilusão grandiosa. Do ponto de vista clínico, isto torna a intervenção terapêutica extremamente difícil, já que o primeiro passo para qualquer mudança, o reconhecimento do problema, é precisamente o que o narcisista não consegue dar.
No plano relacional, as vítimas acabam muitas vezes a viver num estado de ansiedade constante, antecipando novas acusações e projetando a sua energia em evitar conflitos que, inevitavelmente, voltarão a surgir. A sensação de estar sempre em falta, mesmo sem razão, mina a autoestima e conduz a estados de depressão, isolamento e, em casos prolongados, sintomas de trauma complexo.
Em síntese, a projeção e a externalização da culpa são não apenas mecanismos defensivos do narcisista, mas também instrumentos de poder relacional que consolidam a sua posição de controlo. Funcionam como uma cortina de fumo que encobre as falhas internas, ao mesmo tempo que transferem para a vítima o peso da responsabilidade. Esta, por sua vez, desgasta-se emocionalmente até ao ponto de perder a noção clara da realidade, tornando-se, na prática, cúmplice involuntária da manutenção do falso self do agressor
David e Joana estavam juntos há dois anos. À primeira vista, pareciam um casal sólido. Ele era afetuoso, prestável e com uma paciência que muitos invejavam. No início, David sentiu-se sortudo: ela sabia ouvi-lo, apoiava as suas ideias e até participava com entusiasmo nos seus hobbies.
Nos primeiros meses de namoro, Joana enviava mensagens carinhosas a meio do dia, preparava surpresas e falava sobre o futuro a dois como se nada fosse mais importante do que construir uma vida com ele. Mas, com o passar do tempo, essas atenções começaram a rarear. O cuidado deu lugar a um comportamento mais frio e imprevisível, que deixava David constantemente na defensiva, sem saber qual seria a reação dela em cada dia.
Nos últimos dois anos, a relação transformara-se num campo minado. Joana passava horas nas redes sociais, respondendo a mensagens mesmo durante as refeições. Quando David perguntava com quem falava, ela soltava um riso sarcástico: "Achas que a minha vida gira à tua volta? Estás a precisar de terapia, David." As palavras eram ditas com aparente leveza, mas deixavam nele um desconforto que não desaparecia. Algo parecia não encaixar.
Numa quinta-feira chuvosa, David estava a arrumar a cozinha depois do jantar. Joana tinha saído "8para uma reunião de última hora" e deixara o telemóvel sobre a bancada, algo raro. Uma notificação iluminou o ecrã: "Já sinto a tua falta ;-)". O coração dele acelerou. Pegou no aparelho e viu um histórico de mensagens com um homem identificado como "Ricardo - Trabalho". O conteúdo era inequívoco: elogios físicos, insinuações, promessas de encontros. David sentiu-se dividido entre a raiva e a descrença. Passou o resto da noite sentado no sofá, ensaiando mentalmente o que iria dizer.
Quando Joana entrou, perto da meia-noite, pareceu genuinamente surpresa por o encontrar acordado. "Ainda estás aí?" perguntou, pousando a mala. David, com o telemóvel na mão, levantou-se. "Preciso que me expliques isto" disse, mostrando o ecrã. Joana olhou para as mensagens, sem um traço de nervosismo. Depois levantou o olhar e respondeu com desdém: "Estás a interpretar tudo mal. Isto é conversa de trabalho." David ficou boquiaberto. "Conversa de trabalho? Com corações e “sinto a tua falta”?" O tom dela mudou de imediato, passando à ofensiva: "Tu és doente? Sempre a criar dramas! Estás obcecado em controlar-me, assim é impossível viver contigo!"
Cada frase atingia-o como um golpe invisível. Tentou argumentar, mas Joana elevou a voz e começou a enumerar as falhas dele: inseguro, ciumento, carente, controlador, incapaz de confiar. Em seguida, inverteu o papel, assumindo um ar magoado. Os olhos encheram-se de lágrimas. "Não percebes que és tu que me afastas? Eu faço tudo por esta relação, mas o teu controlo sufoca-me." David, que instantes antes estava pronto para exigir explicações, sentiu o peso da culpa a instalar-se. Começou a questionar-se: e se ela tivesse razão? Joana tocou-lhe na mão e completou: "Eu amo-te, mas não sei quanto tempo mais consigo viver assim." Nesse momento, foi ele quem pediu desculpa.
Nos dias seguintes, Joana tornou-se atenciosa e doce, como nos tempos iniciais. Mensagens carinhosas, pequenos gestos de afeto, convites para jantares românticos. David sentiu-se aliviado, acreditando que aquele confronto tinha sido apenas um momento mau. Mas a trégua durou pouco. Duas semanas depois, voltou a encontrar mensagens suspeitas. Ao confrontá-la, ouviu novamente que era tóxico e paranoico. E, como antes, acabou por pedir desculpa.
O ciclo repetia-se: negação firme (deny), ataque direto à sua credibilidade (attack) e inversão dos papéis, colocando-se como vítima (reverse victim and offender). Era o padrão DARVO, que garantia que nada fosse resolvido e que ela mantivesse o controlo da narrativa.
Com o tempo, David começou a duvidar da própria perceção. Por mais provas que tivesse, Joana conseguia distorcê-las com uma mistura de frieza, acusações e dramatizações emotivas que o faziam sentir-se o vilão da história. Só meses mais tarde, já em terapia, começou a compreender a lógica da manipulação. Percebeu como cada episódio o isolara de amigos e familiares, como a autoestima fora corroída e como a alternância entre abuso e afeto súbito aumentara a sua dependência emocional.
Sair da relação não foi imediato, mas a clareza que ganhou foi o primeiro passo para recuperar o controlo da própria vida.
A mentira e manipulação encontram-se no centro da dinâmica da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Estas estratégias constituem ferramentas deliberadas para controlar o ambiente, manter poder sobre as vítimas e proteger o falso self do narcisista. Não são utilizadas de forma ocasional ou apenas em momentos de conflito. Pelo contrário, estão integradas no modo de funcionamento psicológico e relacional do narcisista. São instrumentos cuidadosamente usados para proteger o falso self, manter a sua posição de superioridade e poder, e garantir que a vítima permanece numa posição de dependência emocional, cognitiva e até prática. A compreensão destas dinâmicas é essencial para identificar a natureza abusiva das relações com indivíduos narcisistas, que frequentemente mascaram os seus comportamentos sob uma capa de charme, sedução ou aparente normalidade.
A mentira é uma ferramenta estruturante na PPN. Não se trata apenas de pequenas distorções ocasionais da realidade, mas de uma prática sistemática que visa sustentar a construção do falso self. O narcisista precisa de manter uma imagem grandiosa e idealizada, intocável por falhas ou vulnerabilidades. Para tal, recorre a mentiras que lhe permitem ocultar erros, encobrir fragilidades e negar qualquer comportamento que possa colocar em risco a aura de perfeição que deseja projetar.
Uma das funções principais da mentira é a manutenção da imagem idealizada dado que oculta comportamentos, falhas e fragilidades para preservar a aparência de perfeição. Sempre que confrontado com uma falha, um lapso ou até um comportamento abusivo, o narcisista tende a negar veementemente a realidade, mesmo perante provas objetivas. Esta negação não visa apenas convencer os outros, mas também reforçar a sua própria narrativa interna, na qual continua a ser irrepreensível. O mecanismo de evasão de responsabilidades é assim garantido, transferindo a culpa para terceiros ou distorcendo os factos de forma a escapar a críticas ou consequências.
Outra dimensão importante da mentira é a instrumental. O narcisista recorre à distorção da realidade para alcançar objetivos concretos: ganhos financeiros, benefícios profissionais, status social ou vantagens emocionais. As mentiras tornam-se, portanto, uma ferramenta de manipulação pragmática, usada para convencer, seduzir ou enganar quem o rodeia, obtendo assim aquilo que deseja sem ter de enfrentar obstáculos significativos.
As mentiras também desempenham um papel emocional direto sobre a vítima. Ao insinuar encontros inexistentes, omitir informações relevantes ou inventar histórias destinadas a provocar ciúmes, o narcisista instala um estado de insegurança permanente. A vítima passa a questionar-se constantemente, tentando perceber o que é real e o que é invenção, vivendo num clima de instabilidade emocional que a fragiliza e a torna mais dependente da validação do próprio narcisista.
Com o tempo, a mentira deixa de ser uma ferramenta deliberada e transforma-se num hábito quase automático. O narcisista mente mesmo em situações em que a verdade não lhe traria qualquer inconveniente. Este comportamento compulsivo demonstra a cisão entre o falso self caracterizado por ser grandioso e intocável, e o self autêntico marcado pela fragilidade e pela vergonha. A mentira funciona, neste sentido, como uma camada protetora contra a exposição do verdadeiro eu, vivido internamente como inaceitável.
A manipulação narcisista é um processo sofisticado, que combina diversas técnicas interligadas, sempre orientadas para desestabilizar a vítima e reforçar o poder do manipulador. Não se limita a gestos abertamente hostis ou agressivos. Frequentemente, surge de forma subtil e insidiosa, tornando difícil a perceção, especialmente nas fases iniciais da relação. A manipulação narcisista é multifacetada: combina mentiras descaradas, meias-verdades, retenção seletiva de informações, distorção narrativa, e uso calculado de recompensa/punição emocional. Em seguida são apresentadas algumas técnicas comuns:
Amor condicionado e intermitente (reforço intermitente): alternância entre carinho e frieza para manter a vítima num estado de procura constante por aprovação .
Isolamento social: criticam amigos e familiares, insinuando que não prestam ou não gostam dele, afastando a vítima das suas redes de apoio.
Triangulação: introduzem terceiros (amigos, ex-parceiros, colegas) para criar ciúmes ou insegurança.
Reescrita de narrativas (gaslighting): alteram a versão dos acontecimentos, fazendo parecer que a vítima é culpada ou não lembra bem.
Ocultação estratégica: bloqueiam telemóveis, escondem finanças ou omitem planos importantes, deixando a vítima dependente de fragmentos de informação.
Exploração da empatia: usam histórias de vitimização para suscitar compaixão, desculpando comportamentos abusivos.
Entre as técnicas mais comuns encontra-se a alternância entre afeto e rejeição. O narcisista distribui atenção, carinho ou validação apenas quando a vítima se mostra obediente ou alinhada com os seus interesses. Noutras ocasiões, adota frieza, indiferença ou crítica mordaz, criando um ciclo de "reforço intermitente" que mantém a vítima permanentemente à procura da aprovação perdida. Esta dinâmica é semelhante à encontrada em comportamentos aditivos, como o jogo, em que a recompensa imprevisível se torna altamente viciante.
Outra forma poderosa de manipulação é o isolamento social. O narcisista procura afastar a vítima das suas redes de apoio, criticando familiares, depreciando amigos ou insinuando que "ninguém gosta verdadeiramente de ti". Ao enfraquecer os laços externos, cria-se uma dependência crescente do abusador, que passa a ser a única fonte de validação e pertença.
A triangulação é igualmente frequente. O narcisista introduz uma terceira pessoa, seja um ex-parceiro, um colega de trabalho ou até uma amizade, como elemento de comparação. Comentários como "a minha ex compreendia-me melhor" ou "o meu colega é muito mais competente" funcionam como agulhas de insegurança, mantendo a vítima numa posição de inferioridade.
A manipulação narrativa é outra estratégia recorrente. O narcisista altera os factos ou reescreve os acontecimentos, convencendo a vítima de que se enganou, exagerou ou interpretou mal. Este processo, muitas vezes designado por gaslighting, mina progressivamente a confiança da vítima na própria memória e capacidade de julgamento.
Há ainda a ocultação estratégica de informação. O narcisista controla o fluxo de dados, escondendo senhas, omitindo planos, restringindo o acesso a recursos financeiros ou bloqueando o telemóvel. Com isso, mantém a vítima em constante incerteza, dependente dos fragmentos de informação que ele decide revelar.
Por fim, há a manipulação emocional baseada na exploração da empatia. Muitos narcisistas contam histórias de sofrimento ou vitimização, despertando compaixão para justificar comportamentos abusivos. A vítima, sensível e empática, tende a desculpar falhas repetidas, acreditando que o narcisista apenas precisa de ajuda ou foi marcado pelo passado.
Mesmo as mentiras mais pequenas, apresentadas como inofensivas, têm o efeito de treinar a vítima a duvidar das próprias perceções, tornando-a mais moldável ao controlo.
O controlo é a consequência natural da mentira e da manipulação. Trata-se de um mecanismo abrangente, que não se limita ao campo emocional, mas se estende à vida prática, financeira, social e até íntima da vítima. No plano financeiro, o narcisista pode recusar contribuir para despesas conjuntas ou, inversamente, gastar excessivamente sem aviso prévio, deixando a vítima sobrecarregada com dívidas e responsabilidades. Em casa, evita tarefas domésticas e responsabilidades partilhadas, impondo um peso desproporcional sobre o outro. No campo da privacidade, sente-se autorizado a vasculhar telemóveis, mensagens ou redes sociais da vítima, ao mesmo tempo que mantém as suas próprias atividades cuidadosamente escondidas. No campo das decisões, insiste em ter sempre a última palavra, seja em questões triviais como escolher uma refeição, seja em decisões de grande impacto como mudar de residência.
O controlo narcisista combina três elementos psicológicos-chave:
Dissonância cognitiva: a vítima luta para conciliar as fases iniciais de idealização (em que o narcisista parecia perfeito) com o abuso atual, levando-a a justificar ou minimizar comportamentos tóxicos.
Reforço intermitente: períodos de carinho após abuso funcionam como recompensas imprevisíveis, reforçando laços emocionais (trauma bonding).
Desgaste emocional: discussões intermináveis e ataques constantes drenam a energia mental da vítima, tornando mais fácil ceder para manter paz.
O controlo não se limita a condutas observáveis sendo sustentado por mecanismos psicológicos complexos. A dissonância cognitiva é um deles. A vítima luta para conciliar a memória da fase inicial da relação, marcada por idealização, charme e aparente perfeição, com o abuso atual. Para reduzir o desconforto mental, acaba por minimizar ou justificar comportamentos tóxicos, aceitando níveis crescentes de controlo.
O reforço intermitente é outra peça central. Após episódios de abuso, o narcisista pode oferecer um gesto de afeto, uma promessa de mudança ou um momento de aparente ternura. Essa oscilação entre violência e carinho cria laços emocionais intensos, muitas vezes descritos como "trauma bonding", em que a vítima se apega ao agressor precisamente por depender da imprevisibilidade da recompensa.
O desgaste emocional, por sua vez, funciona como erosão constante da resistência da vítima. Discussões intermináveis, críticas incessantes e manipulações subtis consomem energia mental e reduzem a capacidade de resistência. Com o tempo, a vítima passa a ceder facilmente para manter a paz, acreditando que lutar é inútil.
As consequências psicológicas deste controlo são estarrecedoras. Este controlo progressivo destrói a autonomia da vítima, que começa a adaptar os seus comportamentos para evitar conflitos ou explosões de raiva. Nesta perda de autonomia, a vítima sente que já não consegue decidir sobre aspetos básicos da sua vida e passa a desconfiar das próprias perceções, entregando-se à narrativa do narcisista. Vive num estado de stress crónico, com sintomas de ansiedade, depressão e fadiga constante. Muitas vezes, acredita que não existe saída possível, permanecendo na relação por medo, exaustão ou pela convicção de impotência aprendida ao longo do tempo.
Ana sempre se considerou uma pessoa sensata, independente e capaz de tomar boas decisões. Trabalhava como designer freelancer, tinha um círculo de amigos sólido e um relacionamento próximo com a família. Quando conheceu João, um homem carismático e aparentemente atencioso, não imaginou que a sua vida se transformaria num campo minado de manipulação, mentira e controlo.
O início foi encantador. João parecia genuinamente interessado no seu trabalho, ouvia com atenção as suas histórias e elogiava constantemente o seu talento. Mas, com o passar dos meses, pequenas distorções começaram a infiltrar-se na relação. A primeira mentira que Ana notou parecia inofensiva. João disse que tinha trabalhado até tarde, mas um amigo em comum mencionou tê-lo visto num bar. Quando Ana o confrontou, ele sorriu e disse: "Deves ter ouvido mal. Sabes que as pessoas inventam coisas." A segurança com que dizia aquilo, e a forma como a olhava nos olhos, fê-la duvidar da própria memória.
As mentiras tornaram-se mais frequentes. João escondia pequenas compras alegando que não queria preocupar Ana com gastos, mas simultaneamente criticava-a por cada despesa que fazia. Começou a contar histórias incoerentes sobre encontros de trabalho, trocando detalhes de forma tão subtil que Ana se sentia culpada por sequer questionar.
João sabia usar as suas palavras como ferramentas de engenharia emocional. Num dia, inundava Ana de carinho: mensagens românticas, convites surpresa, declarações de que "nunca tinha amado assim". No dia seguinte, tornava-se frio, distante, quase hostil. Ana passava horas a tentar entender o que tinha feito de errado. Com o tempo, João começou a criticar os amigos dela: "Não percebo porque ainda falas com a Cláudia. Ela tem inveja de ti.", "O teu irmão não gosta de mim, inventa coisas para nos afastar." Estas insinuações, repetidas, foram isolando Ana. Ela começou a evitar encontros e a partilhar menos detalhes da sua vida com os outros, para evitar discussões.
João introduziu a técnica da triangulação com precisão cirúrgica. Falava frequentemente de uma colega de trabalho, Sofia, elogiando a sua inteligência e o quanto o compreendia. Às vezes mencionava mensagens que ela lhe enviava, sempre deixando no ar um tom ambíguo. Quando Ana reagia, João ria-se: "Estás a ser paranoica. É só amizade." Esta mistura de insinuação e negação aumentava a insegurança de Ana e fazia-a sentir-se culpada por duvidar dele.
Com o tempo, João começou a reescrever episódios inteiros da relação. Se discutiam sobre um gasto excessivo dele, mais tarde ele afirmava que Ana é que tinha proposto a compra. Se Ana expressava tristeza por ele faltar a um evento importante, João respondia: "Nunca disseste que querias que eu fosse." Adicionalmente, João mantinha o telemóvel permanentemente protegido por códigos, apagava mensagens e desligava-o de forma estratégica quando estava fora. Dizia que era para não ser incomodado, mas exigia que Ana mantivesse o dela sempre desbloqueado para provar que não escondia nada.
O controlo de João expandiu-se para áreas concretas da vida de Ana. Começou a gerir as finanças de forma unilateral: decidia onde comer, o que comprar, e criticava qualquer despesa dela como supérflua. Evitava fazer tarefas domésticas, justificando-se com cansaço do trabalho, enquanto criticava a forma como Ana fazia as coisas. Até decisões triviais passaram a ser centralizadas nele. Quando Ana sugeria um programa diferente, ele respondia com ironia: "Claro, porque tu percebes muito melhor o que é bom para nós."
A vida de Ana passou a ser regulada por três forças principais: a imagem do João encantador do início ainda vivia na sua memória, criando esperança de que ele pudesse voltar a ser aquele homem (Dissonância cognitiva), os raros momentos de carinho funcionavam como pequenas recompensas emocionais, reforçando o vínculo, mesmo após períodos de abuso (reforço intermitente), discussões intermináveis e ataques constantes drenavam a energia mental de Ana, que passou a evitar confrontos para manter a paz (desgaste emocional).
Com o passar dos meses, Ana deixou de confiar nas próprias perceções. Antes segura e independente, passou a sentir-se incapaz de tomar decisões sem a aprovação de João. O medo de errar ou provocar críticas fazia com que moldasse todos os seus comportamentos para agradar-lhe. O desgaste era visível: insónias, ansiedade constante e uma tristeza silenciosa que se instalara no dia a dia. Acreditava que não havia saída, convencida de que sem João estaria perdida quando ironicamente, era ele o epicentro do seu sofrimento.
A história de Ana ilustra como na PPN a mentira, manipulação e controlo não acontecem de forma abrupta, mas como um processo gradual, insidioso e altamente calculado. Pequenas distorções e omissões criam confusão, a manipulação mina a autoconfiança, e o controlo progressivo retira a autonomia, deixando a vítima emocionalmente dependente e psicologicamente desgastada. Tal como num labirinto invisível, cada saída aparente conduz a mais um corredor de distorção e submissão.
A ausência de empatia é um dos pilares mais sólidos e pungentes da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o narcisista não é incapaz de perceber como funcionam as emoções humanas. Pelo contrário, compreende-as intelectualmente, o que lhe permite decifrar estados emocionais alheios e até reproduzi-los quando lhe convém (empatia cognitiva). No entanto, o que lhe falta é a dimensão afetiva da empatia: a capacidade genuína de sentir com o outro, de ressoar emocionalmente com a dor, alegria ou fragilidade alheia. Esta lacuna cria uma dissociação que abre espaço a atitudes frias, manipuladoras e frequentemente cruéis, especialmente com aqueles mais próximos, onde o disfarce é menos necessário.
Em público, muitos narcisistas parecem até ser pessoas extraordinariamente atentas, solidárias e compassivas. Usam uma empatia performativa, cuidadosamente encenada para impressionar audiências externas, ganhar admiração e consolidar a imagem de pessoa íntegra e sensível. Mas esse teatro cai quando a cortina se fecha, revelando no espaço privado um indivíduo indiferente, hostil e por vezes abertamente desdenhoso das necessidades emocionais de quem lhe é próximo. Esta duplicidade é uma das experiências mais perturbadoras para as vítimas, que se sentem invisíveis em privado e, simultaneamente, desacreditadas em público, porque todos veem no narcisista a máscara generosa que ele ostenta.
Para aqueles que convivem de perto com uma pessoa com este padrão, a frieza emocional não é apenas uma característica pontual, mas sim uma constante que molda a relação, minando-a em profundidade. A frieza emocional manifesta-se como indiferença perante sofrimento alheio, minimização de problemas pessoais da vítima e até prazer em causar dor (Schadenfreude). Em público, porém, o narcisista pode parecer altamente empático e compassivo, sobretudo quando isso lhe traz admiração ou validação social, uma empatia performativa que serve à sua imagem.
Para compreender o impacto da ausência de empatia na PPN, é essencial distinguir entre empatia cognitiva e empatia afetiva. A empatia cognitiva refere-se à capacidade de compreender racionalmente o que o outro sente. O narcisista possui esta competência de forma apurada: sabe identificar quando alguém está triste, exausto ou frustrado, e até consegue prever reações emocionais a determinados estímulos. No entanto, esta compreensão não desperta nele um impulso genuíno de cuidado ou solidariedade. Pelo contrário, transforma-se numa ferramenta, usada estrategicamente para manipular.
Um exemplo frequente é a forma como um narcisista pode consolar alguém em público. Dirige palavras certas, gestos adequados e até lágrimas oportunas, deixando a plateia convencida da sua sensibilidade. No entanto, em privado, a mesma situação pode ser vista como incómoda ou até irritante, especialmente se lhe exigir algum tipo de sacrifício ou atenção prolongada. A discrepância entre o que o narcisista mostra externamente e o que expressa intimamente cria uma dolorosa dissonância cognitiva nas vítimas, que oscilam entre acreditar na bondade pública que testemunham os outros e sentir na pele a indiferença privada.
Esta frieza emocional manifesta-se em pequenas situações do quotidiano como ignorar sinais de exaustão, doença ou tristeza do parceiro, fazer pouco caso de datas importantes ou celebrações que não envolvem diretamente o narcisista, e mostrar impaciência ou enfado diante de desabafos emocionais. Deste modo, o parceiro doente receberá um olhar impaciente em vez de cuidado, uma celebração importante para a vítima será desvalorizada como coisa sem importância, e um desabafo emocional será interrompido com frase como "Estás sempre a dramatizar" e "não tens nada de grave". Até os gestos físicos de afeto são racionados e instrumentalizados: o abraço, o carinho ou a disponibilidade íntima surgem apenas quando trazem benefício direto ao narcisista, seja na forma de sexo, status ou reforço da própria imagem.
Em suma, o narcisista frequentemente compreende de forma racional como as emoções funcionam, mas não as sente no mesmo grau. Essa dissociação permite-lhe usar as emoções dos outros como ferramentas, manipulando com precisão cirúrgica (empatia cognitiva). Por exemplo, o narcisista sabe que uma determinadas palavras e gestos de apoio a um amigo ou parceiro permitem obter validação social, usando-as como ferramenta para obter admiração, sem sentir afeto genuíno. Por outro lado, dada a ausência de empatia afetiva, quando o parceiro está doente ou em sofrimento, o narcisista pode demonstrar irritação ou indiferença, encarando a situação como um incómodo pessoal.
Ao longo do tempo, esta atitude deixa a vítima num terreno árido, onde cada migalha de atenção parece um presente raro, mas insuficiente. A constante recusa em validar as emoções destrói pouco a pouco a sensação de ser digno de cuidado, levando a um estado de desespero silencioso em que se mendiga por reconhecimento.
Se a ausência de empatia afetiva tem consequência graves, em muitos narcisistas surge uma faceta ainda mais inquietante: o prazer perante o sofrimento dos outros. Conhecida pelo termo alemão Schadenfreude, esta atitude traduz-se na satisfação em assistir à dor, falha ou humilhação alheia.
Num ambiente profissional, por exemplo, um narcisista pode sorrir discretamente ou até expressar entusiasmo aberto quando um colega é despedido, mesmo que tal aconteça sem qualquer ligação direta a si. O simples facto de alguém ter caído reforça nele a sensação de superioridade. No espaço íntimo, a Schadenfreude assume contornos mais cruéis: desprezo pelas vulnerabilidades do parceiro, rir-se de um parceiro quando este comete um erro em público, usar momentos de fragilidade como material para piadas sarcásticas ou comentários depreciativos perante terceiro, ou até sabotar silenciosamente pequenos sucessos para ver a vítima frustrada.
Para a pessoa alvo deste comportamento, a sensação é de profundo desamparo. Aquilo que deveria ser um porto seguro transforma-se numa arena de exposição. Partilhar vulnerabilidades torna-se perigoso, porque aquilo que se confessa num momento de fragilidade pode regressar mais tarde sob a forma de arma, usado para humilhar, controlar ou ridicularizar. A vítima aprende, então, a calar-se, a esconder as suas dores, criando um isolamento emocional ainda maior.
Contudo a frieza emocional do narcisista não é universal. O narcisista pode ser extraordinariamente atencioso, protetor e até altruísta com pessoas cujo reconhecimento deseja conquistar. Novos parceiros amorosos, chefes influentes ou figuras de prestígio social podem receber uma avalanche de gestos calorosos, apoios visíveis e demonstrações de cuidado. Contudo, trata-se sempre de uma empatia condicional, que desaparece assim que deixa de servir os seus propósitos. A empatia seletiva é por isso uma das contradições mais desconcertantes da PPN.
A vítima observa um paradoxo doloroso que gera confusão: o narcisista trata desconhecidos melhor do que quem lhe é próximo. O parceiro ou a parceira que vive o desprezo diário assiste, perplexo, ao mesmo indivíduo a organizar jantares para impressionar colegas, a envolver-se em voluntariado ou em causas sociais, e apresentar gestos grandiosos de bondade em público. O efeito sobre a vítima é corrosivo. Não apenas sente a falta de cuidado íntimo, como ainda se vê invalidada externamente, já que o mundo inteiro aplaude a bondade do narcisista e elogia a sua generosidade, enquanto em casa a vítima é ignorada ou desrespeitada. Surge então a sensação de que a sua perceção está errada, que talvez esteja a exagerar, ou que o problema reside nela própria por não conseguir inspirar o mesmo afeto que o narcisista distribui seletivamente. Essa duplicidade agrava a dissonância cognitiva e dificulta a validação externa das experiências da vítima sendo uma das principais razões pelas quais muitas vítimas permanecem longos anos em relações abusivas, incapazes de confiar no seu próprio julgamento.
A ausência de empatia emocional gera por isso consequências esmagadoras, nomeadamente a autoestima em declínio dado que a vítima se sente indigna de cuidado ou amor acreditando que não é suficiente, isolamento emocional em que aprende a reprimir sentimentos para evitar críticas ou humilhação, manifestações físicas do stress constante (insónia, fadiga, dores crónicas), e dependência emocional dado que nos raros momentos de afeto (reforço intermitente), a vítima sente alívio intenso, o que a prende ainda mais ao ciclo abusivo.
Rui conheceu Isabel num evento corporativo, durante uma conferência sobre inovação. Ela destacava-se não apenas pela aparência cuidada, mas pela forma como se movia na sala, abordando cada pessoa com um equilíbrio perfeito entre charme e assertividade. Isabel parecia ter um radar para identificar pontos de interesse nos outros: lembrava nomes, referências pessoais, e adaptava o discurso de acordo com o perfil de cada um.
Para Rui, esta atenção personalizada soou como empatia genuína. Nos primeiros encontros, ela parecia compreender profundamente as suas frustrações no trabalho, incentivando-o com frases de apoio. Rui sentia-se visto, ouvido, validado. O que não sabia era que aquilo não era empatia afetiva, sentir com ele, mas empatia cognitiva: a capacidade de compreender e mapear as suas emoções de forma lógica e estratégica, sem envolvimento emocional verdadeiro. Era como se Isabel tivesse um manual interno sobre ele, mas nunca abrisse espaço para realmente partilhar as suas próprias vulnerabilidades.
A relação evoluiu rapidamente. Isabel adorava os momentos públicos em que podiam exibir a ligação perfeita. Nos jantares com amigos, mostrava-se atenta, ria-se das piadas dele, tocava-lhe na mão enquanto contava histórias sobre o quão dedicado ele era. Mas, em privado, a dinâmica era outra. Se Rui chegava cansado e menos disposto a conversar, ela tornava-se distante e irónica, deixando escapar comentários como "Engraçado… tens sempre energia para os outros, mas para mim é que não".
Com o tempo, Rui começou a perceber um padrão mais desconfortável: Isabel parecia sentir um estranho prazer quando ele cometia erros ou passava por constrangimentos. Num almoço de família, Rui tropeçou nas palavras ao tentar contar uma história engraçada e, no momento, ela deu uma gargalhada que ultrapassou a dos restantes convidados, acrescentando: "Ai, Rui, tu e o teu jeito desajeitado…". Todos riram, mas Rui sentiu um frio no estômago. Mais tarde, notou o brilho nos olhos dela, não de ternura, mas de Schadenfreude: o deleite subtil de o ver exposto, vulnerável.
O mais perturbador era a forma como Isabel escolhia os momentos para demonstrar afeto. Quando havia uma audiência, fosse no trabalho, entre amigos ou em eventos sociais, ela tornava-se quase um exemplo de altruísmo, ajudando, apoiando e elogiando-o. No entanto, em casa, a postura mudava radicalmente. Pequenos pedidos de apoio emocional eram ignorados ou minimizados: "Estás a exagerar… não é assim tão grave" ou "Isso é drama, Rui, segue em frente". Era uma empatia seletiva: visível e calorosa no palco social, mas fria e impassível nos bastidores da vida a dois.
Um episódio específico marcou Rui de forma profunda. Ele estava a preparar uma apresentação importante para a empresa, algo que poderia resultar numa promoção. Isabel ofereceu-se para ajudar a rever os slides. Aparentemente colaborativa, começou a apontar defeitos de forma sarcástica: "Isto está confuso… nem eu percebo o que queres dizer" ou "Sinceramente, não sei como é que achas que isso vai impressionar alguém". No dia seguinte à apresentação, que correu bem mas sem o brilho esperado, ela comentou com um sorriso enviesado: "Bem, pelo menos não te enganaste no nome do diretor… já é um progresso".
Rui sentia-se preso numa teia emocional. Sempre que tentava confrontá-la, Isabel assumia um ar ferido, dizendo que ele estava a interpretá-la mal ou que ele era hipersensível. Por vezes, mudava de tática e passava a noite a elogiar as qualidades dele, lembrando-lhe os momentos bons que partilhavam, mas quase sempre depois de uma situação em que o deixara inseguro ou diminuído.
Com o passar dos meses, Rui começou a notar o impacto psicológico: sentia-se constantemente em estado de alerta, como se tivesse de gerir cuidadosamente cada palavra para evitar comentários mordazes ou silêncios gelados. O físico também começou a ressentir-se, dores de cabeça frequentes, fadiga, dificuldades de sono. Financeiramente, também havia sinais: Isabel incentivava gastos em eventos e viagens que projetavam a imagem perfeita para os outros, mesmo que isso significasse sacrificar prioridades dele.
O ciclo parecia interminável: sedução e admiração públicas, seguidas de frieza e humilhações privadas. Rui, sem perceber completamente a manipulação, oscilava entre gratidão pela atenção dela e um desgaste silencioso que corroía a sua autoestima. Cada vez que tentava racionalizar a situação, lembrava-se de um momento em que ela o tinha defendido ou elogiado diante de outros, esquecendo temporariamente as muitas ocasiões em que a máscara caía em casa.
No fundo, a mestria de Isabel estava precisamente nesta alternância: usar a empatia cognitiva para compreender as necessidades e inseguranças dele mas não para confortá-lo, escolher os momentos de empatia seletiva para manter a reputação impecável, e, ocasionalmente, alimentar-se de um Schadenfreude silencioso sempre que ele tropeçava. Para Rui, a linha entre amor e manipulação tornava-se cada vez mais difusa, e era nesse nevoeiro emocional que Isabel mantinha o controlo absoluto.
"Entitlement" em inglês refere-se a uma sensação ou crença de ter direito a algo, de forma injustificada ou excessiva. Constitui uma das características mais centrais e perturbadoras da Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Não se trata apenas de um sentimento vago de superioridade, mas de uma convicção estruturante que molda a forma como o indivíduo percebe a si mesmo, os outros e o mundo que o rodeia. Para o narcisista, a crença de que é especial, único e inevitavelmente merecedor de tratamento diferenciado é tão enraizada que se torna o filtro através do qual interpreta todas as interações sociais. Esta convicção não se altera mediante os factos ou os méritos objetivos: mesmo em situações em que a sua performance ou contributo são medianos, o narcisista mantém a firme perspetiva de que merece privilégios, deferência e obediência.
É precisamente a partir deste núcleo de entitlement que emergem dinâmicas destrutivas de exploração, arrogância ostensiva e, sobretudo, manifestações de raiva intensa e desproporcional sempre que o seu senso de superioridade é contrariado. A arrogância não é apenas uma característica visível no trato social, mas o alicerce que permite compreender o modo como estes indivíduos exploram os outros, punem resistências e se envolvem em relações profundamente assimétricas.
O "entitlement" manifesta-se na expectativa constante de privilégios e deferência, como se o mundo tivesse sido desenhado para satisfazer os caprichos e necessidades do narcisista. Esta perceção distorcida leva-o a considerar as necessidades alheias como secundárias, ou mesmo irrelevantes. Qualquer resistência ou frustração ao cumprimento das suas expectativas pode desencadear respostas intensas, que vão desde ataques de raiva abertos até retaliações subtis e silenciosas.
A dinâmica quotidiana de um narcisista ilustra este padrão. Ele pode por exemplo esperar que o parceiro execute todas as tarefas domésticas sem nunca reconhecer ou retribuir esse esforço alegando que tal "faz parte do que tu tens de fazer". Também poderá exigir apoio financeiro, usufruir de bens ou serviços partilhados sem contribuir, e sentir-se genuinamente ofendido se alguém ousar negar-lhe um privilégio. Situações neutras, como ter de esperar numa fila ou obedecer a regras comuns, são interpretadas como insultos à sua dignidade e importância. Até responsabilidades básicas são vistas como indignas da sua posição, sendo descartadas com frases como "essas coisas não são para pessoas como eu".
Este padrão corrói gradualmente as relações, criando um desequilíbrio crónico onde a vítima assume o papel de cuidador, provedor ou facilitador, sem nunca receber reciprocidade genuína. Muitas vezes, a vítima adapta-se a este ciclo por medo de retaliação, ou simplesmente por desgaste psicológico. O reforço intermitente, mecanismo bem conhecido em contextos de abuso, prende-a ainda mais: a alternância entre momentos de afeto e fases de frieza ou violência faz com que pequenos gestos positivos pareçam provas de mudança ou amor, perpetuando a ligação. A dissonância cognitiva desempenha igualmente um papel crucial: a vítima racionaliza o comportamento abusivo, convencendo-se de que "ele(a) não é sempre assim" ou que, "no fundo, é uma boa pessoa que apenas precisa de apoio".
É importante distinguir este padrão patológico do senso saudável de merecimento. Indivíduos com autoestima equilibrada reconhecem o valor do esforço, da reciprocidade e das regras sociais. Já o narcisista vive num universo paralelo, onde não existem limites: tudo o que deseja é percecionado como um direito natural e absoluto, independentemente do mérito ou do impacto desolador que possa ter nos outros.
Se o "entitlement" define a estrutura do mundo interno do narcisista, a raiva narcisista é a sua manifestação mais visível quando esse mundo é questionado. Esta raiva não é comparável a uma irritação passageira ou a um aborrecimento momentâneo. É uma reação desproporcional, explosiva e frequentemente destrutiva a qualquer ameaça, real ou percebida, à sua grandiosidade.
Para o narcisista, um simples "não" não é apenas uma negativa, é uma ferida, um ataque direto ao seu valor intrínseco. Pequenas frustrações são interpretadas como insultos intoleráveis. É nesse contexto que emergem gritos, insultos, ameaças, períodos prolongados de silêncio punitivo ou retaliações passivo-agressivas. Habitualmente, estas explosões acontecem longe dos olhares externos, guardadas para o espaço privado, onde o narcisista já não precisa de sustentar a sua imagem de charme e competência. No círculo íntimo, especialmente junto do parceiro ou dos filhos, manifesta-se o lado mais cru e violento da sua personalidade.
Estas crises são frequentemente comparadas, em psicologia clínica, aos tantrums de uma criança em idade pré-escolar. Tal como um toddler que, incapaz de lidar com a frustração, esperneia, grita e exige gratificação imediata, o narcisista demonstra uma imaturidade emocional profunda. A sua reação descontrolada revela uma estrutura psíquica que, em muitos aspetos, permanece fixada num estádio infantil de desenvolvimento. A incapacidade de tolerar frustração, a visão egocêntrica do mundo e a ausência de empatia afetiva aproximam-no do comportamento da criança pequena, mas com a diferença de que aqui o corpo, a força e a posição social são os de um adulto.
Este paralelismo não é apenas metafórico. Diversas teorias sobre a etiologia da PPN apontam precisamente para falhas precoces no desenvolvimento emocional. Alguns autores sublinham que o narcisista pode ter ficado preso a uma etapa de maturação psicológica em que não desenvolveu competências para regular emoções, lidar com frustração ou integrar uma visão realista de si mesmo. Outros destacam a experiência precoce de negligência, excesso de crítica ou até idealização extrema por parte dos cuidadores, que geraram uma autoestima frágil, dependente de validação externa, e uma intolerância absoluta à rejeição.
Assim, quando contrariado, o narcisista revive inconscientemente essas experiências primitivas de humilhação ou abandono, reagindo de forma tão intensa quanto desproporcional. A explosão de raiva é a tentativa desesperada de restaurar a sua sensação de controlo e de preservar a ilusão de grandiosidade. Em muitos casos, esta raiva não se dissipa rapidamente: pode estender-se em retaliações prolongadas, com recurso ao "silent treatment", em humilhações deliberadas e ataques calculados à autoestima da vítima.
Esta raiva não deve ser confundida com uma emoção espontânea e genuína. Para o narcisista, trata-se de um instrumento de poder, um mecanismo de controlo que visa intimidar, silenciar e subjugar quem ousa questioná-lo. É por isso que estas manifestações ocorrem quase sempre em privado: em público, o narcisista mantém a sua máscara social intacta, evitando expor a sua vulnerabilidade ou instabilidade. O parceiro, os filhos e familiares próximos tornam-se, assim, alvos privilegiados destes ataques, carregando sozinhos o peso da violência emocional que permanece invisível aos olhos da sociedade.
O "entitlement", ao gerar uma visão distorcida de superioridade e direito absoluto, abre caminho inevitável à exploração. O narcisista vê os outros como instrumentos ao serviço dos seus objetivos, e não como sujeitos com necessidades próprias. A exploração pode assumir diversas formas: emocional quando exige apoio incondicional sem jamais oferecer reciprocidade, financeira quando recusa pagar contas conjuntas mas gasta excessivamente em si mesmo, ou social quando usa os contactos e recursos alheios para ganhar status e oportunidades, sem qualquer intenção de retribuir.
O mais perturbador é que esta exploração não é percecionada pelo próprio como abusiva. No seu entendimento, se tudo lhe é devido, então usar os outros não é um ato de exploração, mas apenas o exercício natural de um direito. Esta racionalização confere ao narcisista uma sensação de legitimidade e permite-lhe perpetuar comportamentos que, para qualquer observador externo, seriam evidentemente injustos e abusivos.
As consequências para a vítima são avassaladoras. Em termos emocionais instala-se um sentimento de desgaste crónico, de viver como um servo numa relação profundamente assimétrica. Em termos materiais pode ocorrer empobrecimento real, sobretudo quando o abuso económico se combina com a recusa sistemática de contribuir. Psicologicamente, a vítima acaba por interiorizar a culpa, convencendo-se de que não consegue satisfazer as exigências do narcisista porque falhou de alguma forma, ou porque não é suficientemente boa. E, gradualmente, vai perdendo a sua identidade, vivendo em função das necessidades e exigências do outro, esquecendo-se de si mesma.
Mariana sempre teve um jeito de entrar numa sala e fazer com que todas as atenções se voltassem para si. Não era apenas pela beleza ou pelo vestido cuidadosamente escolhido, mas por uma presença que parecia anunciar que alguém especial acabara de chegar. Tiago, quando a conheceu, sentiu-se imediatamente atraído por essa energia magnética. Ela falava com confiança, sabia conduzir uma conversa e parecia genuinamente interessada nele. Nos primeiros meses, era atenciosa, divertida e fazia-o sentir que estava ao lado de alguém fora do comum.
Com o tempo, Tiago começou a perceber que aquela aura tinha um preço. Mariana não escondia a convicção de que merecia mais do que os outros, não por esforço ou mérito, mas porque, segundo ela, "sempre foi assim, desde pequena". Era a primeira a escolher o restaurante, a última a pegar na conta. Se não fosse o lugar que queria, dizia simplesmente: "Não tenho paciência para comer em sítios medíocres, Tiago. Eu mereço mais que isso."
No início, Tiago encarava essas frases como traços de personalidade excêntricos, até charmosos. Mas cedo notou que esse merecimento se estendia a tudo. Quando se mudaram para viver juntos, Mariana esperava que ele cuidasse de todas as tarefas domésticas. Se Tiago lhe pedia ajuda, a resposta vinha seca: "Essas coisas não são para mim. Eu não vou perder tempo a passar a ferro ou a lavar loiça. Isso é trabalho menor." Tiago, para evitar discussões, acabava por fazer tudo, convencendo-se de que eram apenas fases.
O verdadeiro peso do entitlement de Mariana começou a cair sobre ele quando as finanças do casal entraram na equação. Mariana não contribuía para as despesas da casa, alegando que precisava investir no seu estilo de vida para manter a sua imagem profissional. Comprava roupas caras, marcava tratamentos estéticos e não via problema em usar o cartão conjunto para pagar essas despesas. Quando Tiago questionava, ela reagia com uma mistura de desdém e irritação: "Tu não percebes como é importante para mim estar impecável. É também para o nosso bem. E, convenhamos, se eu não estivesse contigo, haveria muitos homens dispostos a sustentar-me."
Esse tipo de comentário deixava Tiago desconfortável, mas sempre que tentava colocar limites, a reação era desproporcionada. Numa ocasião, depois de ele se recusar a pagar um pacote de férias de luxo, Mariana explodiu: gritou, acusou-o de ser mesquinho e de querer prendê-la a uma vida banal. A raiva dela não se limitava a palavras duras pois sabia muito bem como punir silenciosamente. Passava dias sem lhe dirigir a palavra, mantendo um silêncio glacial que enchia a casa de tensão. Tiago acabava por ceder, não pela viagem em si, mas para recuperar a paz.
Havia também uma face mais subtil dessa dinâmica: a exploração emocional. Mariana exigia que Tiago estivesse sempre disponível para ouvir os seus problemas, confortá-la nos dias maus e celebrar as suas vitórias, mas quando ele precisava de apoio, a reação era indiferente. Uma vez, depois de um dia de trabalho particularmente difícil, Tiago tentou partilhar o que tinha acontecido. Mariana interrompeu-o a meio da frase para falar de um sapato que tinha visto online e que precisava urgentemente de comprar.
Essa seletividade de atenção não era coincidência. Para Mariana, o centro da história era sempre ela. Usava a rede de contactos de Tiago para promover os seus projetos, pedia-lhe que organizasse eventos para impressionar certas pessoas, mas não oferecia a mesma reciprocidade. Se ele precisava de um favor, arranjava desculpas ou simplesmente dizia que não estava para isso.
O padrão tornou-se claro para Tiago com o tempo: cada vez que ele dizia "não" ou questionava algo, surgia a raiva narcisista. Podia vir em forma de insultos diretos, chamando-o de ingrato ou incompetente, ou em retaliações passivo-agressivas, como cancelar à última hora planos que ele aguardava há semanas. Essas explosões não aconteciam na frente de outros. Em público, Mariana mantinha a imagem de mulher encantadora e inspiradora, elogiando Tiago para a plateia certa. Era nos bastidores, longe de testemunhas, que a máscara caía.
O efeito cumulativo desse ciclo foi desgastante. Tiago começou a sentir-se como um mero assistente da vida de Mariana, alguém que estava ali para facilitar, pagar e admirar, mas que não tinha espaço para as próprias necessidades. Pequenos gestos de afeto dela, estrategicamente colocados depois de períodos de tensão, funcionavam como uma dose de alívio que o mantinha preso. Quando Mariana o surpreendia com um jantar romântico ou lhe escrevia um bilhete carinhoso, Tiago sentia esperança de que as coisas pudessem mudar. Mas, inevitavelmente, a balança voltava a pender para o lado dela.
Foi apenas quando começou a falar com um amigo de longa data que Tiago percebeu o quanto estava submerso. Ao relatar episódios concretos, viu-os sob outra luz: a recusa sistemática em contribuir, a exploração dos recursos, o desdém pelos seus sentimentos, a raiva desproporcionada a qualquer contrariedade. Com essa clareza, começou a perceber que não se tratava apenas de um relacionamento difícil, mas de um padrão de abuso psicológico sustentado por arrogância e exploração.
A decisão de sair não foi imediata. Havia ainda uma parte dele que acreditava que podia chegar até ela ou que talvez ela mudasse. Mas cada nova interação reforçava a verdade: para Mariana, tudo o que ela queria era devido. Tiago não era visto como um parceiro, mas como um recurso. Quando finalmente encontrou forças para terminar, Mariana reagiu com incredulidade e desprezo: "Tu vais-te arrepender. Vais ver que ninguém te vai tratar como eu."
Tiago saiu com pouco mais do que a roupa que conseguia levar, mas com um alívio silencioso. Nos meses seguintes, percebeu que a perda material era insignificante comparada à recuperação da sua autonomia. A relação com Mariana deixara marcas profundas, a autoconfiança ferida, a sensação de ter sido reduzido a um papel secundário, mas também lhe dera uma lição irreversível: a de que, por mais sedutora que seja a promessa de alguém que se coloca num trono invisível, viver como súbdito não é amor.
Os indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) vivem frequentemente mergulhados em experiências emocionais dominadas pelo ciúme e pela inveja. Estas emoções não são episódicas nem superficiais, mas sim padrões recorrentes e intensos que se ligam diretamente à sua autoestima instável. Ao contrário de pessoas com desenvolvimento emocional saudável, que conseguem reconhecer e regular a inveja ou o ciúme sem comprometer o seu funcionamento social, o narcisista tende a reagir de forma desproporcionada, hostil e controladora.
Estes sentimentos emergem não apenas em relações românticas, mas estendem-se ao ambiente profissional, ao círculo de amizades, ao contexto familiar e até a interações ocasionais com estranhos. A mera perceção de que alguém é mais admirado, mais competente ou mais valorizado é suficiente para desencadear reações de hostilidade. Como mecanismo de defesa, o narcisista lança mão da desvalorização: ataca, ridiculariza ou minimiza os outros para restaurar a sensação de superioridade.
É importante salientar que o ciúme e a inveja fazem parte da experiência humana normal. Contudo, no narcisismo patológico assumem proporções distorcidas e destrutivas, porque qualquer sucesso alheio é interpretado como ameaça direta à sua autoimagem grandiosa. Este filtro cognitivo produz uma realidade em que os outros não são vistos como companheiros, parceiros ou colegas, mas como rivais permanentes. As consequências inevitáveis são reações que vão desde a ironia mordaz ao controlo obsessivo, passando por sabotagens subtis ou explosões de raiva.
No campo das relações íntimas, o ciúme do narcisista, longe de corresponder a uma preocupação saudável com a preservação da relação, assume uma forma intrusiva, irracional e desproporcionada. Muitos parceiros de narcisistas relatam viver sob constante vigilância: telemóveis verificados sem consentimento, exigências para mostrar mensagens e redes sociais, interrogatórios diários sobre deslocações e amizades.
Com frequência, qualquer atraso, mudança de rotina ou interação inocente com terceiros é interpretada como indício de traição. Uma simples conversa com um colega pode ser reinterpretada como prova de infidelidade, levando a acusações agressivas e humilhações. O parceiro da pessoa narcisista acaba por viver num estado de alerta permanente, adaptando a sua conduta para evitar desencadear crises, o que o conduz a um progressivo processo de autoanulação.
Paradoxalmente, a mesma pessoa que exige exclusividade total e que pune severamente suspeitas infundadas, muitas vezes envolve-se em flirts públicos ou em relações extraconjugais. Esta contradição traduz a lógica distorcida da PPN: as próprias falhas são justificadas, minimizadas ou até glorificadas, enquanto o parceiro é severamente punido por suspeitas irreais. Este duplo padrão não só gera confusão, mas instala na vítima uma dissonância cognitiva profunda: oscila entre acreditar que deve ceder mais para acalmar o parceiro e perceber que nunca será suficiente.
No fundo, este ciúme romântico é menos sobre amor e mais sobre posse e controlo. O narcisista não procura proximidade autêntica, mas sim exclusividade absoluta, porque precisa da garantia de que o parceiro não desviará a sua atenção nem validará mais ninguém. O controlo obsessivo é, assim, a tentativa de prevenir a ferida narcisista de sentir-se substituível.
A inveja, no contexto do narcisismo, é uma das forças motrizes do comportamento destrutivo. Qualquer conquista de outrem é percebida como um ataque implícito. Quando um amigo recebe uma promoção, um colega é elogiado em público, ou mesmo quando um familiar atrai atenções positivas, o narcisista é consumido por ressentimento.
Como não suporta lidar diretamente com este desconforto, procura neutralizá-lo de três formas principais. Primeiro, minimizando o valor da conquista: frases como "Esse emprego nem é assim tão bom" ou "Isso qualquer um conseguiria" são utilizadas para reduzir a importância do feito. Segundo, apropriando-se do mérito: insinuam que a vitória do outro só foi possível graças à sua ajuda ou influência. Terceiro, sabotando de forma subtil ou explícita: espalham rumores, desmotivam ou colocam obstáculos ao sucesso alheio.
Esta inveja nasce da visão de mundo rigidamente competitiva do narcisista, onde a lógica é de "soma zero" ("zero-sum"): o triunfo do outro representa inevitavelmente a sua derrota. A incapacidade de sentir satisfação genuína pelo sucesso alheio revela a fragilidade da sua autoestima, que não consegue sustentar comparações sem entrar em colapso.
Importa destacar que a inveja nem sempre se expressa em ataques diretos. Muitos narcisistas escondem o ressentimento sob uma máscara de apoio superficial. Um exemplo típico é o elogio acompanhado de um veneno disfarçado: "Parabéns pela promoção, embora, claro, o cargo não seja tão difícil quanto parece". Este padrão, conhecido como apoio envenenado, tem como função minar gradualmente a confiança da vítima, que acaba confusa entre a aprovação aparente e a crítica velada.
O impacto deste comportamento é demolidor para os que convivem com o narcisista. Amigos, colegas e familiares sentem-se constantemente invalidados, e as suas conquistas tornam-se fonte de tensão em vez de celebração. Com o tempo, muitos preferem esconder sucessos ou minimizar resultados para não despertar o rancor invejoso do narcisista.
Se o ciúme e a inveja são os gatilhos, a desvalorização é a resposta habitual. Sempre que o narcisista se sente ameaçado pela superioridade ou pelo destaque de alguém, recorre a um arsenal de estratégias para rebaixar o outro e restaurar o seu senso ilusório de superioridade.
A desvalorização pode assumir várias formas: sarcasmo constante, críticas mordazes disfarçadas de humor, comparações depreciativas ("Conseguiste isso, mas fulano fez muito melhor") ou indiferença fingida perante conquistas significativas. O objetivo é sempre o mesmo: diminuir simbolicamente o outro para restaurar a hierarquia narcisista em que ele se coloca no topo.
Na prática, este comportamento reflete um mecanismo de defesa inconsciente. O narcisista não suporta reconhecer fragilidade interna, nem tolera admitir que sente inveja ou inferioridade. Assim, ataca e rebaixa os outros como forma de expulsar para fora de si aquilo que não consegue processar internamente. Por trás da fachada arrogante e crítica, encontra-se um ego vulnerável, cronicamente ameaçado por comparações e constantemente exposto a feridas narcisistas.
Para a vítima, viver sob este padrão é emocionalmente corrosivo. O parceiro, amigo ou colega do narcisista vê as suas realizações ridicularizadas, os seus talentos desvalorizados e as suas emoções invalidadas. Com o tempo, instala-se o isolamento social (afastamento de amigos acusados de má influência), a autoanulação (evitar celebrar conquistas para não provocar ataques), a internalização da culpa (sentir-se responsável pelo ciúme e raiva do outro) e a queda progressiva da autoestima.
O resultado final é um ciclo de dependência emocional: a vítima, fragilizada e insegura, tenta incessantemente provar o seu amor, lealdade ou inocência, acreditando que isso apaziguará o narcisista. No entanto, nada é suficiente. O ciclo repete-se, porque a raiz do problema não está no comportamento da vítima, mas na instabilidade emocional crónica do narcisista.
Catarina tinha trinta e sete anos e trabalhava numa empresa de consultoria financeira de renome. Desde que entrara para a organização, destacara-se pela facilidade com que criava laços com a equipa de gestão e pela sua forma persuasiva de comunicar em reuniões com clientes. Era uma figura que irradiava segurança e assertividade, sempre com um sorriso pronto e um discurso envolvente que conquistava facilmente os que a conheciam de forma superficial. Para os diretores, Catarina parecia ser uma colaboradora dedicada, sempre disponível, atenta às oportunidades e com um olhar estratégico sobre os projetos. Contudo, a convivência diária com os colegas de equipa revelava facetas menos visíveis, sobretudo quando alguém conseguia sobressair mais do que ela.
Foi num desses momentos que o padrão começou a tornar-se claro. Sofia, uma colega da mesma equipa, recebeu um prémio interno pelo seu desempenho num projeto de grande complexidade. O reconhecimento foi anunciado numa reunião geral da empresa, e todos os presentes aplaudiram efusivamente. Catarina também aplaudiu, mas quem a observava atentamente podia perceber a rigidez no seu gesto e o sorriso que não chegava aos olhos. Quando a reunião terminou e o grupo se reuniu para a pausa do café, Catarina deixou escapar, num tom de falsa descontração: "Sinceramente, não percebo muito bem porque foi ela escolhida. Houve outros que trabalharam tanto quanto ela. Parece que aqui vale mais saber puxar conversa com os diretores do que o trabalho em si."
As palavras ecoaram entre os colegas e, ainda que ditas em tom aparentemente casual, plantaram pequenas sementes de dúvida. Alguém riu com nervosismo, outro abanou a cabeça, mas a sensação geral era a de que Catarina tinha aberto uma fissura no ambiente de celebração. O comentário, subtil mas envenenado, era apenas o início de um padrão que se repetiria sempre que outra pessoa recebia algum tipo de reconhecimento.
Com o passar dos meses, a atitude de Catarina tornou-se cada vez mais evidente. Sempre que um colega recebia elogios ou uma promoção, surgia uma nova tentativa de desvalorização: "Esse cargo não é grande coisa", dizia, ou então "A sorte dele foi estar no projeto certo na hora certa." Noutras ocasiões, insinuava que os resultados obtidos não eram fruto de competência, mas de ajudas escondidas: "Conheço quem o tenha ajudado nos bastidores, não foi mérito só dele." Estas frases, repetidas em momentos diferentes e em vários círculos, espalhavam-se lentamente, criando um ambiente de desconfiança e competição velada.
O episódio mais marcante aconteceu com Afonso, um jovem recém-contratado que impressionara a equipa ao apresentar uma solução inovadora para um processo interno. A sua ideia gerou poupanças significativas para a empresa e, durante uma reunião com toda a equipa, o diretor-geral elogiou-o de forma pública e entusiástica. O orgulho era visível no rosto de Afonso, que ainda se adaptava ao novo trabalho e via naquele reconhecimento uma validação das suas capacidades. No entanto, no mesmo dia, Catarina começou a insinuar junto dos colegas que o feito não tinha sido tão extraordinário quanto parecia. "Na verdade, aquilo que ele apresentou já existe noutras empresas. Ele não inventou nada de novo, só copiou e adaptou. Não percebo por que fazem tanto alarido."
O comentário espalhou-se rapidamente. E como se isso não bastasse, Catarina adotou uma postura condescendente para com Afonso, falando-lhe como se fosse uma mentora experiente que precisava de o trazer à realidade. "Ainda tens muito a aprender", dizia-lhe, sorridente mas fria. "Esse sucesso inicial pode ter sido sorte. Não te habitues." As palavras, embora ditas em tom aparentemente benevolente, carregavam uma mensagem clara: Afonso não deveria sentir-se seguro no seu lugar.
O impacto psicológico foi imediato. Afonso começou a duvidar de si próprio, questionando se o mérito que lhe fora atribuído era legítimo. O brilho inicial do entusiasmo deu lugar a uma postura mais retraída, quase defensiva, e os colegas repararam na mudança. Muitos suspeitavam das intenções de Catarina, mas como ela mantinha, perante a gestão, uma imagem de profissional dedicada e colaborativa, poucos ousavam confrontá-la diretamente.
Nos bastidores, Catarina ia além dos comentários informais. Enviava e-mails aos supervisores em que questionava decisões tomadas em projetos liderados por outros. O seu tom nunca era acusatório em excesso, mas deixava sempre espaço para a dúvida: "Não sei se esta solução é sustentável a longo prazo" ou "Talvez devêssemos rever os critérios usados para esta decisão." Estas mensagens, embora aparentemente preocupadas com a qualidade do trabalho, funcionavam como uma forma de minar a confiança da chefia nos colegas que tinham obtido reconhecimento.
Ao mesmo tempo, Catarina sentia uma necessidade compulsiva de recuperar terreno sempre que alguém se destacava. Se Sofia recebia elogios por entregar um relatório detalhado, Catarina passava noites em claro a preparar documentos ainda mais elaborados, cheios de gráficos, anexos e detalhes, apenas para impressionar. Quando a gestão não reagia com entusiasmo imediato, Catarina tornava-se amarga e irritadiça, queixando-se em privado: "Aqui só dão valor aos favoritos. Não interessa o esforço, só interessa quem sabem agradar."
Com o tempo, o ambiente da equipa deteriorou-se. Colegas que antes confiavam em Catarina começaram a afastar-se, sentindo que qualquer sucesso seu poderia tornar-se alvo de críticas ou comentários depreciativos. Alguns relatavam sentir que Catarina os via sempre como rivais, mesmo em situações em que não havia competição direta. O clima de colaboração deu lugar a uma atmosfera de vigilância e cautela, como se cada passo tivesse de ser cuidadosamente medido para não desencadear a inveja ou a hostilidade velada de Catarina.
Foi apenas através de sessões de coaching corporativo, promovidas pela empresa após a queda do moral da equipa, que a situação começou a ser compreendida em maior profundidade. Durante uma dessas sessões, a psicóloga organizacional descreveu Catarina como alguém que aparentava confiança e carisma, mas que se sentia constantemente ameaçada pelo sucesso dos outros. Explicou que este comportamento não era incomum em perfis com traços narcisistas, nos quais a autoestima está tão dependente da comparação com os outros que qualquer conquista alheia é vivida como uma ameaça direta.
Segundo a psicóloga, Catarina parecia incapaz de celebrar os sucessos alheios porque estes ativavam sentimentos profundos de inferioridade, ainda que mascarados por uma postura de arrogância. A reação automática era desvalorizar, criticar ou minar, estratégias que lhe permitiam preservar a ilusão de superioridade. Contudo, a longo prazo, estas mesmas estratégias tinham o efeito contrário: isolavam-na dos colegas, criavam desconfiança e corroíam o espírito de equipa.
O impacto foi duplo e duradouro. Por um lado, a moral da equipa ficou gravemente afetada, com vários colaboradores a reportarem níveis elevados de stress e desmotivação. Por outro, Catarina construiu uma imagem ambígua: perante alguns diretores, continuava a parecer uma profissional proativa e envolvida, enquanto que perante os colegas, era cada vez mais vista como uma presença tóxica, incapaz de genuíno espírito de equipa.
Este caso mostra como o sucesso dos outros pode ser intolerável para personalidades narcisistas, não apenas porque desperta inveja, mas porque ameaça a estrutura frágil de autoestima que sustenta a identidade da pessoa. A história de Catarina é um exemplo de como a inveja, quando associada a mecanismos de desvalorização e sabotagem, não afeta apenas os indivíduos visados, mas contamina todo o ecossistema de trabalho, gerando fraturas que podem comprometer o desempenho coletivo de uma equipa
Uma das manifestações mais características em indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) é a tendência sistemática para imitar, absorver e reproduzir comportamentos, opiniões, gostos e estilos de vida das pessoas que os rodeiam. Este fenómeno, conhecido em psicologia como "espelhamento" (mirroring), não se trata apenas de uma forma de influência mútua natural, como ocorre em qualquer relação saudável, mas de uma estratégia psicológica profundamente ligada à ausência de um self coeso e à necessidade de validação externa constante.
Autores como Heinz Kohut e Otto Kernberg foram pioneiros em explicar este processo. Para Kohut, a falha no espelhamento empático durante a infância, quando os cuidadores não refletem de forma estável e consistente a experiência emocional da criança, impede a construção de uma identidade sólida. Já Kernberg destacou como, em muitos narcisistas, se forma uma estrutura psíquica fragmentada, sustentada por defesas primitivas e uma dependência do olhar do outro para assegurar a continuidade da própria identidade. Assim, sem um "eu" autêntico, o narcisista constrói-se através de pedaços de outros: incorpora temporariamente traços que vê como valiosos ou prestigiosos e, ao fazê-lo, sente que também ele se torna valioso.
Este espelhamento não é apenas um reflexo da instabilidade interna, mas também uma estratégia relacional. Ao reproduzir comportamentos e gostos de quem deseja conquistar, impressionar ou manipular, o narcisista cria uma ilusão de afinidade e proximidade emocional. A vítima sente que encontrou alguém igual a si, alguém que a compreende e partilha das mesmas convicções. Contudo, esta ligação é ilusória, uma máscara montada para criar dependência e capturar o vínculo.
Segundo Kohut (1971), quando a criança não recebe validação suficiente, desenvolve um self fragmentado que, na vida adulta, procura constantemente fontes externas para se sentir completo. O espelhamento, neste sentido, cumpre duas funções centrais. Em primeiro lugar, serve como mecanismo de construção temporária de identidade: ao copiar o outro, o narcisista sente que passa a existir socialmente, apropriando-se momentaneamente de um valor que não lhe pertence. Em segundo lugar, funciona como uma poderosa estratégia de manipulação: ao mimetizar preferências e opiniões da vítima, cria-se a falsa sensação de ligação profunda, o que aumenta a vulnerabilidade da outra parte e solidifica a relação desigual.
Na prática, o espelhamento manifesta-se de formas muito diversas. Um exemplo comum é a súbita mudança de estilo de vida: o narcisista que entra num relacionamento com alguém adepto de alimentação saudável pode, quase de imediato, adotar discursos sobre nutrição, frequentar restaurantes vegetarianos e falar de temas ligados ao bem-estar. Porém, assim que a relação termina ou deixa de ter utilidade, esse interesse desaparece por completo, revelando o carácter instrumental da mudança.
Outro exemplo é o das crenças ideológicas ou políticas. O mesmo indivíduo pode defender com paixão uma ideologia conservadora de extrema-direita e, meses depois, converter-se em fervoroso apoiante de causas progressistas ao ingressar num grupo de ativistas. Não há consistência, apenas adaptação camaleónica ao meio que confere maior oportunidade de prestígio ou aprovação.
No plano estético e dos hobbies, o espelhamento pode ser ainda mais visível. Roupa, cortes de cabelo, vocabulário e até interesses culturais ou desportivos são frequentemente copiados. Uma vítima pode, num determinado momento, sentir-se desconfortável ao perceber que o parceiro repete as suas expressões, adota os seus passatempos e até cita opiniões que lhe pertencem, como se fossem originais. O efeito imediato é a sensação de proximidade e sintonia, mas a longo prazo instala-se um desconforto crescente, pois a repetição excessiva denuncia a ausência de autenticidade.
Finalmente, o espelhamento pode assumir a forma de reprodução de opiniões durante conversas. O narcisista tende a concordar com quase tudo o que o interlocutor diz, repetindo argumentos e até expressões textuais. O objetivo não é partilhar genuinamente ideias, mas criar uma ligação ilusória de cumplicidade.
Se o espelhamento confere ao narcisista uma identidade temporária, a contrapartida é que esta nunca se torna estável ou autêntica. O resultado é uma confusão identitária crónica. Muitos narcisistas, em momentos de maior introspeção, relatam sentir-se como se não soubessem verdadeiramente quem são. Sem a validação externa ou a presença de alguém a quem possam espelhar, experimentam um vazio profundo e angustiante, frequentemente descrito como uma sensação de não-existência.
Esta dinâmica traduz-se em ciclos constantes de reinvenção pessoal. De fora, pode parecer entusiasmo por novas fases de vida, como a adoção repentina de uma nova carreira, estilo ou causa. Mas, na verdade, trata-se de um mecanismo desesperado para preencher a instabilidade identitária. A cada nova fonte de espelhamento, surge uma nova versão do narcisista, que dura apenas enquanto aquela relação ou círculo social for útil.
Para as vítimas, esta oscilação gera confusão e dor. No início, a imitação cria uma sensação intoxicante de compatibilidade: tudo parece encaixar, como se o parceiro ou amigo fosse a alma gémea. Porém, com o tempo, as mudanças bruscas de comportamento, valores e opiniões expõem a inconsistência. Aquilo que antes parecia sintonia transforma-se em perplexidade: como é possível alguém mudar tão radicalmente em tão pouco tempo?
Um efeito tremendo deste processo é o sentimento de perda de autenticidade que algumas vítimas relatam. Quando o narcisista copia intensamente traços, gostos e até formas de expressão da vítima, esta pode sentir-se esvaziada, como se a sua própria identidade tivesse sido roubada ou dissolvida. Em casos mais graves, a vítima desenvolve a sensação de invasão psicológica: aquilo que a distinguia como pessoa já não lhe pertence, mas foi apropriado e usado contra si.
Do ponto de vista clínico, o espelhamento e a confusão identitária revelam a fragilidade estrutural da PPN. A ausência de um núcleo identitário estável conduz a uma dependência contínua do outro, o que explica tanto a voracidade relacional como a instabilidade emocional. Sem espelhos externos, o narcisista sente-se vazio. Com eles, sente-se temporariamente completo, mas apenas de forma ilusória.
Nas relações interpessoais, esta dinâmica é uma das fontes mais intensas de sofrimento para quem convive com narcisistas. O início das relações é marcado por uma sensação de fusão e afinidade, mas, com o tempo, emergem as contradições, a incoerência e a manipulação. A vítima não apenas sofre com as mudanças abruptas do parceiro, mas também com a experiência de ver a sua própria identidade apropriada e instrumentalizada.
A compreensão desta dinâmica é essencial para o diagnóstico e para a intervenção terapêutica. Identificar o padrão de espelhamento pode ajudar clínicos a distinguir entre influências normais do desenvolvimento de personalidade e os sinais patológicos de uma identidade fragmentada. Do lado das vítimas, o reconhecimento deste fenómeno pode ser um passo crucial para compreender que a sintonia perfeita inicial não era autenticidade, mas uma técnica de manipulação baseada na apropriação da sua própria identidade.
Mário conheceu Sofia numa conferência sobre inovação tecnológica. Ela parecia ter lido a sua mente: partilhava as mesmas opiniões sobre o impacto da inteligência artificial na sociedade, conhecia os autores que ele mais admirava, e até usava expressões que ele costumava empregar nas suas apresentações. Num primeiro momento, Mário sentiu-se finalmente compreendido. A conversa fluía como se fossem conhecidos há muitos anos. Quando Sofia mencionou que também adorava fazer caminhadas na serra ao amanhecer, Mário sentiu aquela pontada de entusiasmo que surge quando encontramos alguém feito à nossa medida.
Nos meses seguintes, Sofia parecia moldar-se a cada detalhe do mundo de Mário. Começou a frequentar os mesmos cafés que ele, inscreveu-se no mesmo ginásio, comprou livros que ele recomendava e citava-os nas conversas como se fossem descobertas suas. Se Mário mencionava um filme que o tinha marcado, Sofia não só o assistia no dia seguinte, como aparecia com análises profundas, alinhadas com o seu próprio ponto de vista. O relacionamento avançou rapidamente, alimentado por essa sensação de sintonia perfeita.
Mas, por baixo dessa harmonia aparente, havia algo cuidadosamente calculado. Sofia não estava apenas a partilhar interesses. Estava a absorvê-los, a vesti-los como uma segunda pele. Quando estava com Mário, parecia a parceira ideal: atenta, curiosa, entusiasta com as mesmas coisas que ele. Porém, Mário começou a notar pequenas inconsistências. Um dia, ao acompanhá-la a um jantar com o seu grupo de amigos, ficou surpreendido: Sofia comportava-se de forma quase irreconhecível. Os temas que a entusiasmavam com ele eram substituídos por opiniões e gostos completamente diferentes. Aquela mulher que, com Mário, defendia a importância da alimentação saudável, ali ria-se de quem recusava fast food e falava com paixão sobre hambúrgueres artesanais.
Com o tempo, a duplicidade começou a emergir de forma mais clara. Sofia tinha o dom de se transformar conforme o contexto. Com o grupo de colegas de Mário, era a profissional dedicada e idealista, mas com o seu próprio círculo, era cínica e desdenhosa dessas mesmas ideias. O mais perturbador era a naturalidade com que transitava entre essas versões de si mesma, como se nenhuma contradição existisse.
Aos poucos, Mário começou a sentir uma estranha desconexão. As conversas que antes pareciam genuínas começaram a soar a eco, como se Sofia estivesse apenas a devolver-lhe as suas próprias palavras. Havia momentos em que ele percebia que ela não falava de si de forma consistente, as histórias mudavam, pequenos detalhes eram alterados conforme a audiência, e até acontecimentos importantes pareciam ter versões alternativas.
Quando Mário tentava confrontá-la sobre essas incoerências, Sofia sorria com condescendência e dizia que ele estava a imaginar coisas ou que estava a procurar problemas onde não existiam. Esse padrão de gaslighting minava a confiança de Mário nas suas próprias perceções. Começou a duvidar de si mesmo: estaria a ser demasiado crítico? Estaria a inventar contradições?
O que ele não percebia totalmente na altura era que o espelhamento inicial tinha criado uma falsa sensação de intimidade. Sofia, carente de uma identidade coesa, construíra-se a partir dos fragmentos da vida dele. Copiara os seus gostos, interesses e valores para se aproximar, mas sem nunca os integrar como parte autêntica de si mesma. Assim que a dinâmica de poder se estabeleceu e a relação entrou noutra fase, o espelhamento deixou de ser necessário como ferramenta de sedução.
Nessa nova etapa, Sofia começou a mostrar um lado mais crítico e distante. Onde antes havia concordância, agora havia desdém, onde antes havia entusiasmo partilhado, surgia apatia ou até sarcasmo. Ao mesmo tempo, Mário via-se constantemente a tentar reconquistar aquela versão dela que parecia tão perfeita no início. Esse esforço mantinha-o preso, numa esperança silenciosa de que a Sofia inicial voltasse a emergir.
A viragem mais dura aconteceu quando Sofia entrou num novo círculo social através de um projeto profissional. De repente, os valores e interesses que antes partilhava com Mário desapareceram. Agora, estava completamente absorvida por novas modas, novas opiniões políticas e novos passatempos, tudo alinhado com as pessoas que queria impressionar nesse grupo. Com elas, falava de viagens exóticas, investimentos e arte contemporânea, tópicos que nunca tinham surgido com Mário. Quando ele tentava conversar sobre assuntos que antes eram centrais para ambos, ela mostrava-se entediada, acusando-o de ser uma seca e de viver no passado.
Essa metamorfose contínua deixou Mário exausto e confuso. Começou a sentir que a pessoa com quem se tinha envolvido não existia de facto, que a Sofia que conheceu era apenas um reflexo cuidadosamente construído para corresponder às suas expectativas. Por vezes, ao olhar para ela, tinha a estranha sensação de estar diante de um espelho deformado, onde via fragmentos de si próprio misturados com elementos que não reconhecia.
O vazio interno de Sofia, algo que Mário só conseguiu compreender muito mais tarde, manifestava-se nesses ciclos de reinvenção. Sempre que perdia o contacto próximo com alguém que servia de modelo para o seu espelhamento, deixava para trás todos os gostos e hábitos associados e mergulhava numa nova identidade. Para quem observava de fora, podia parecer entusiasmo por novas fases de vida, para Mário, foi um processo de lenta erosão, no qual se apercebeu de que estava a perder não só a relação, mas também partes de si mesmo.
Quando a relação terminou, Sofia afastou-se abruptamente, como se Mário fosse apenas mais um capítulo encerrado. Pouco tempo depois, ele soube que ela já exibia uma nova versão de si, adaptada a outra pessoa e outro contexto, repetindo o ciclo. Para Mário, ficou a dolorosa certeza de que o que vivera não tinha sido uma partilha verdadeira, mas uma encenação cuidadosamente projetada para capturar a sua atenção e, depois, descartada quando deixara de servir o propósito.
O espelhamento, que no início lhe parecera um sinal de afinidade rara, revelou-se uma das ferramentas mais desestabilizadoras e invasivas que alguma vez tinha experienciado. E a maior ferida não foi a perda da relação, mas a sensação de que a sua própria identidade tinha sido usada como matéria-prima para construir a ilusão que o prendeu.
A triangulação constitui uma das estratégias mais insidiosas e destrutivas utilizadas por indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). A essência desta dinâmica reside na introdução de uma terceira pessoa, ou mesmo de um grupo, dentro de uma relação que, até então, se apresentava como dual. Essa terceira parte, seja ela um amigo, um familiar, um colega ou até um novo interesse romântico, é instrumentalizada para desequilibrar a vítima principal. A sua função pode ser variada: criar ciúmes, despertar insegurança, estimular competição ou semear desestabilização emocional. Mas em todas as variantes, o efeito é o mesmo: reforçar o poder do narcisista e garantir que este se mantém no centro do palco.
A complexidade deste processo torna-se mais clara quando se observa que a triangulação raramente se limita a uma ação isolada. Trata-se de um mecanismo sistemático que se inscreve no padrão mais amplo da personalidade narcisista, na qual a necessidade de manter o controlo absoluto e a centralidade é vital. A vítima, colocada entre o desejo de agradar e o medo de perder a relação ou o apoio social, acaba enredada numa teia de comparações, inseguranças e sentimentos de inadequação.
Associado a este mecanismo estão os chamados "flying monkeys", expressão cunhada a partir do clássico cinematográfico "O Feiticeiro de Oz". Tal como no filme em que as criaturas voadoras obedecem cegamente à bruxa maligna ("Wicked Witch of the West"), também no contexto do narcisismo essas figuras secundárias são manipuladas para executar as intenções do agressor. Os "flying monkeys" funcionam como extensões da vontade do narcisista: podem difamar, espiar, vigiar, acusar, defender ou neutralizar a vítima, muitas vezes sem sequer perceberem que estão a ser instrumentalizados. Noutros casos, aceitam conscientemente o papel, movidos por lealdade cega, interesse pessoal ou medo de se tornarem eles próprios alvos do narcisista.
A triangulação manifesta-se em diferentes esferas da vida e pode assumir formas subtis ou abertamente agressivas. No campo das relações românticas, é frequente o narcisista invocar constantemente a presença simbólica de uma ex-parceira ou de alguém que apresenta como mais atraente, mais interessante ou mais competente. Comentários aparentemente inocentes como "a Maria sempre fazia isto melhor do que tu" não têm apenas o objetivo de relembrar a ex-parceira, mas sobretudo de instalar insegurança no atual parceiro. Da mesma forma, pode recorrer a redes sociais para publicar fotografias ambíguas ou insinuantes com outras pessoas, criando deliberadamente um campo fértil para os ciúmes.
No seio familiar, a triangulação adquire uma dimensão particularmente dolorosa. O narcisista pode colocar filhos contra um dos pais, explorando vulnerabilidades e promovendo rivalidades que fragmentam os vínculos. Em casos mais amplos, utiliza familiares próximos para validar a sua narrativa, apresentando-se como vítima incompreendida e retratando o parceiro ou outro membro da família como o verdadeiro problema. Esse processo conduz ao isolamento da vítima, que passa a sentir que não tem onde encontrar apoio.
No contexto profissional, a triangulação surge sob a forma de alianças estratégicas. O narcisista cria divisões entre colegas, espalha rumores ou utiliza terceiros como porta-vozes de críticas que não quer assumir diretamente. Assim, protege-se da responsabilidade, ao mesmo tempo que mina a coesão das equipas e reforça a sua posição como figura central, indispensável ou até injustiçada.
Em todos os cenários, a lógica é invariavelmente a mesma: criar uma atmosfera de insegurança, rivalidade e dependência. A vítima é forçada a competir por atenção, a justificar-se constantemente e a tentar recuperar uma aprovação que lhe escapa cada vez mais. É um jogo viciado, em que as regras mudam sempre que o narcisista deseja e em que o resultado final é previsível: desgaste emocional, confusão mental e perda progressiva de autoestima.
Este processo segue quase sempre um padrão reconhecível. Começa pela fase de idealização, em que o narcisista conquista a confiança e a proximidade da vítima. Em seguida, surge a introdução de terceiros, que passam a ser utilizados como comparação ou ameaça velada. A partir daí instala-se o conflito indireto, em que a vítima se sente forçada a competir ou a defender-se. É neste ponto que o narcisista começa a recrutar aliados, moldando narrativas que transformam pessoas próximas em "flying monkeys". Finalmente, o ciclo culmina no isolamento da vítima, que perde progressivamente o suporte emocional que poderia ajudá-la a identificar a manipulação.
A triangulação deve ser compreendida como extensão de outros traços centrais do narcisismo. Ao dividir e desvalorizar os que o rodeiam, o narcisista neutraliza qualquer ameaça ao seu domínio. Ao manter duas ou mais partes em conflito, assegura-se de que nenhuma delas terá força suficiente para o desafiar diretamente. E ao apresentar-se como figura central de uma disputa ou como vítima injustiçada, reforça perante terceiros a sua imagem grandiosa e indispensável.
Os "flying monkeys" desempenham um papel fundamental neste teatro de manipulação. A expressão "flying monkeys" tem origem no filme "O Feiticeiro de Oz". No enredo, as criaturas aladas, semelhantes a macacos, obedecem sem questionar à bruxa malvada ("Wicked Witch of the West"). De maneira análoga, no âmbito do narcisismo, estas pessoas secundárias são influenciadas para realizar os planos do indivíduo narcisista. Normalmente recrutados através de apelos emocionais ou narrativas distorcidas, tornam-se braços operacionais do narcisista. Muitas vezes, a sua adesão é inconsciente. O narcisista apresenta-se como vítima de uma injustiça, mobilizando empatia e lealdade. Pessoas bem-intencionadas acabam por se transformar em cúmplices involuntários do abuso.
Num círculo de amigos, este processo pode ser ilustrado por conhecidos que defendem o narcisista e culpam a vítima, argumentando que "ele só está assim porque tu o stressaste". No ambiente de trabalho, surgem colegas que transmitem mensagens indiretas, pressionando a vítima com frases como "o diretor disse-me que devias melhorar a tua postura, estou apenas a avisar". No contexto familiar, irmãos ou pais influenciados por versões distorcidas da realidade passam a agir como aliados cegos, reforçando a posição do narcisista e fragilizando ainda mais a vítima.
Contudo, nem todos os "flying monkeys" são inocentes. Alguns encontram no papel uma oportunidade de se aproximar do poder, de obter benefícios secundários ou de evitar tornar-se alvo do mesmo processo. Independentemente da consciência do seu envolvimento, o resultado é colossal: ao multiplicar vozes que ecoam a narrativa do narcisista, criam uma realidade paralela que aprisiona a vítima num ciclo de descrédito e solidão.
As consequências da triangulação e da atuação dos "flying monkeys" são particularmente profundas. A vítima experimenta a erosão progressiva da sua autoestima, pois ao ser comparada constantemente ou colocada em competição permanente, sente que nunca é suficiente. Esta dinâmica de desvalorização conduz inevitavelmente ao isolamento social. Amigos e familiares que poderiam representar uma rede de apoio são transformados em instrumentos de manipulação.
Quando várias pessoas reforçam uma narrativa distorcida, instala-se um fenómeno que pode ser descrito como gaslighting coletivo. A vítima passa a duvidar não apenas da sua perceção dos factos, mas também da própria sanidade. O ambiente relacional, que deveria constituir uma fonte de suporte e validação, converte-se num espaço hostil e desorientador.
Este abuso ultrapassa o nível interpessoal. Ele atinge uma dimensão social e sistémica. O narcisista manipula múltiplos níveis da rede de relações da vítima, destruindo a sua credibilidade e corroendo as suas defesas emocionais. A vítima não sofre apenas nas mãos do narcisista, mas também através de uma comunidade contaminada pela sua influência. A solidão, a sensação de injustiça e a exaustão emocional são o terreno fértil onde germinam depressão, ansiedade, stress pós-traumático e um profundo sentimento de desesperança.
Quando Jorge conheceu Patrícia, ficou impressionado com a forma como ela parecia movimentar-se com naturalidade entre diferentes círculos sociais. No trabalho, todos a elogiavam pela sua simpatia e pela capacidade de unir equipas. Entre amigos, ela era a anfitriã perfeita, sempre com histórias cativantes, rodeada de pessoas que riam e aplaudiam as suas piadas. Para Jorge, que se sentia mais reservado, ela parecia ser a ponte para um mundo mais vibrante e sociável. No início, essa energia foi contagiante e, durante alguns meses, Jorge acreditou ter encontrado alguém verdadeiramente especial.
As primeiras fissuras surgiram de forma quase impercetível. Durante um jantar com amigos, Patrícia comentou, com um sorriso leve, que "o Ricardo, do trabalho, é quem realmente percebe de viagens, ao contrário de certas pessoas que não saem da rotina." A frase pareceu inocente, mas deixou Jorge desconfortável. Na semana seguinte, numa conversa informal no café da empresa, um colega de Patrícia perguntou a Jorge se já tinha pensado em variar mais nas férias, porque ela tinha dito que ele era demasiado previsível. Foi a primeira vez que Jorge percebeu que informações partilhadas na intimidade estavam a ser reinterpretadas e divulgadas a outros, mas na altura limitou-se a engolir o incómodo, atribuindo o episódio a um mal-entendido.
Com o tempo, as referências a terceiros tornaram-se mais frequentes. Patrícia mencionava constantemente o João, um colega que de acordo com ela sabia ouvir e tinha sempre uma palavra certa quando ela estava stressada. Em encontros com amigos, comparava Jorge com antigos namorados, sugerindo que alguns daqueles sabiam surpreender mais, ou que tinham uma energia mais compatível com a dela. Quando Jorge confrontava Patrícia, ela reagia com indignação ou ironia: "Estás a ver fantasmas onde não existem. Eu só estava a fazer uma observação." O padrão repetia-se, deixando-o num estado permanente de dúvida e insegurança.
A manipulação ganhou outra dimensão quando Patrícia começou a aproximar-se mais da irmã de Jorge, a Inês. No início, Jorge ficou feliz por elas se darem bem, mas rapidamente percebeu que algo não estava certo. Inês começou a repetir-lhe frases que soavam estranhamente familiares, como se estivessem alinhadas com os argumentos de Patrícia: "A Patrícia só quer o melhor para ti, mas às vezes parece que não valorizas o suficiente o que tens." Mais tarde, Jorge soube que Patrícia confidenciava à irmã preocupações sobre ele, apresentando-se como uma parceira dedicada mas incompreendida. Sem perceber, Inês tornara-se uma "flying monkey" na narrativa de Patrícia, levando mensagens e reforçando a visão distorcida que ela criava.
O círculo de manipulação expandiu-se. Amigos comuns começaram a defender Patrícia sempre que Jorge tentava expressar insatisfação. "Ela é tão atenciosa contigo, não percebo como consegues estar chateado com ela", diziam. No trabalho, alguns colegas com quem Jorge tinha pouco contacto pareciam já ter uma opinião formada sobre ele, provavelmente baseada em comentários subtis que Patrícia deixava escapar. A sensação de estar a ser observado e julgado por múltiplos lados tornou-se sufocante.
O efeito mais significativo foi o isolamento progressivo. As pessoas que antes eram fontes de apoio tornaram-se canais de pressão e julgamento. Sempre que Jorge tentava falar sobre o que se passava, recebia respostas que refletiam exatamente a versão de Patrícia dos acontecimentos. Era como se uma teia invisível o tivesse envolvido, com cada fio a ligá-lo a alguém que, consciente ou inconscientemente, estava a agir de acordo com a vontade dela.
O golpe mais duro veio quando Patrícia, durante uma discussão, disse friamente: "Mesmo que tentes virar as pessoas contra mim, ninguém vai acreditar em ti." Jorge percebeu, naquele momento, que ela estava consciente e confiante no alcance da rede que tinha montado. Essa certeza deu-lhe um arrepio profundo: não estava apenas a lidar com uma relação tóxica, mas com um sistema social inteiro que tinha sido manipulado para o enfraquecer.
A tentativa de sair dessa relação foi árdua. Sempre que se afastava, alguém do círculo comum aparecia com uma mensagem conciliatória em nome de Patrícia, ou insinuando que ele estava a exagerar. A presença dos "flying monkeys" prolongava o vínculo, mantendo o contacto indireto e impedindo que Jorge tivesse o espaço necessário para recuperar a clareza.
Só meses depois, com apoio de um terapeuta e de alguns amigos que tinham resistido à manipulação, Jorge conseguiu cortar totalmente a comunicação. O processo de reconstruir a sua autoestima e confiança foi lento, mas aos poucos aprendeu a reconhecer os padrões de triangulação e a importância de proteger a sua narrativa dos olhares e opiniões contaminadas por terceiros. Ainda hoje, Jorge descreve a experiência como "viver dentro de um teatro em que todos os outros já tinham decorado o guião, menos eu".
O caso de Jorge ilustra como a triangulação e o uso estratégico de "flying monkeys" não se limitam a conflitos isolados, mas criam um ecossistema de manipulação em que a vítima é constantemente desestabilizada e privada de referências seguras. Ao multiplicar as vozes que repetem a mesma narrativa distorcida, o narcisista não só mina a confiança da vítima na sua perceção, como dificulta a sua saída, pois a rede social que poderia ser um refúgio torna-se mais uma ferramenta de controlo.
Um dos mecanismos mais poderosos e insidiosos que os indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) utilizam para manter as suas vítimas presas a uma relação abusiva é o chamado reforço intermitente. Este conceito, proveniente da psicologia comportamental, traduz-se na alternância imprevisível entre momentos de recompensa emocional e episódios de punição, criando um ambiente instável, confuso e altamente viciante para quem está exposto a ele. A vítima nunca sabe quando vai ser alvo de carinho, afeto ou validação, ou, pelo contrário, quando será confrontada com indiferença, crítica ou crueldade. Esta oscilação imprevisível gera uma espécie de prisão psicológica: um vínculo emocional disfuncional conhecido como "trauma bonding" ou vinculação traumática.
Enquanto o reforço intermitente corresponde ao padrão de comportamento do abusador, o trauma bonding traduz-se no resultado interno vivido pela vítima. Esta passa a sentir-se emocionalmente dependente do abusador, ainda que tenha plena consciência dos danos sofridos. É um paradoxo dilacerante: quanto mais sofrimento é infligido, maior tende a ser a dificuldade de se libertar, porque os raros momentos de afeto parecem ganhar uma intensidade desproporcional. O que para alguém de fora poderia parecer uma relação intolerável, para a vítima surge como uma ligação que não consegue romper, sustentada por uma esperança frágil e constantemente renovada de que as coisas ião melhorar.
O conceito de reforço intermitente foi inicialmente estudado por B.F. Skinner (1957), no âmbito do comportamento animal. Verificou-se que os comportamentos reforçados de forma irregular (nem sempre recompensados) são mais difíceis de extinguir. Isto aplica-se diretamente à dinâmica abusiva: quando a vítima recebe atenção ou carinho de forma esporádica e imprevisível, tende a esforçar-se mais, na esperança de repetir a experiência positiva, mesmo que o abusador passe a maior parte do tempo a desvalorizá-la. Esses ciclos instáveis geram ansiedade antecipatória: a vítima nunca sabe quando será punida ou recompensada, mantendo-se em alerta constante e emocionalmente exausta.
De modo análogo ao que acontece nos jogos de azar, em que a imprevisibilidade das recompensas mantém o jogador colado à máquina ou à mesa de jogo, também a vítima de reforço intermitente permanece emocionalmente presa ao narcisista. No caso das apostas, o jogador experimenta pequenas vitórias ocasionais, muitas vezes insuficientes para compensar as perdas acumuladas, mas cada ganho reforça a esperança de que da próxima vez será melhor. O mecanismo é exatamente o mesmo na relação abusiva: os raros momentos de carinho funcionam como jackpots emocionais que fazem a vítima acreditar que todo o sofrimento prévio valeu a pena. A oscilação entre perda e ganho cria um padrão viciante, em que a mente fica condicionada a perseguir a próxima recompensa, ainda que esta seja cada vez mais escassa e mais cara em termos de desgaste emocional.
Aplicado às relações humanas e, em particular, à dinâmica abusiva promovida por um narcisista, este mecanismo explica como a vítima se mantém presa. Quando recebe atenção, afeto ou gestos de ternura de forma esporádica, tende a valorizar esses momentos como se fossem provas de amor, esforçando-se ainda mais para os merecer. Paradoxalmente, quanto mais raros são esses instantes positivos, maior se torna a necessidade de os procurar. O resultado é um estado de ansiedade antecipatória: a vítima vive em permanente alerta, tentando prever o humor e as reações do abusador, num esforço contínuo para evitar o castigo e conquistar a recompensa.
Este ciclo tem um efeito esmagador na saúde emocional. O sistema nervoso da vítima permanece em estado de hiperativação, com altos níveis de cortisol associados ao stress, alternados com breves libertações de dopamina que correspondem aos momentos de aparente reconciliação. Esta montanha-russa bioquímica fragiliza o equilíbrio psicológico, mina a autoestima e compromete a capacidade de julgamento racional. A vítima já não age em função da sua liberdade ou dignidade, mas sim em função da imprevisibilidade emocional do outro.
No contexto do reforço intermitente, um mecanismo perverso utilizado por indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) é o chamado "breadcrumbing", ou migalhas. O termo, oriundo do inglês, descreve a prática de oferecer pequenas doses de atenção, validação ou afeto, estrategicamente calculadas para manter a vítima investida na relação sem nunca lhe fornecer a nutrição emocional que realmente precisa. É como dar pequenas migalhas de pão a alguém faminto: não saciam, impedindo a fome de desaparecer, criando dependência e esperança de que, em algum momento, virá um banquete que nunca chega.
Este padrão manifesta-se de forma subtil e enganadora. O narcisista pode enviar uma mensagem carinhosa após dias de silêncio, oferecer um elogio isolado depois de uma série de críticas, ou prometer um futuro melhor logo após uma explosão de raiva. A vítima, faminta de reconhecimento, agarra-se a essas pequenas demonstrações como provas de amor ou sinais de mudança. Na realidade, as migalhas são cuidadosamente distribuídas para manter a ligação viva, sem que o narcisista precise de investir de forma consistente na relação.
Do ponto de vista psicológico, o breadcrumbing opera em consonância com os mesmos circuitos de reforço dopaminérgico ativados nos jogos de azar e nas dependências químicas. O cérebro associa cada pequena recompensa ao alívio da tensão acumulada, reforçando a esperança de que da próxima vez poderá ser diferente. Esta ilusão alimenta a persistência da vítima, que interpreta as migalhas como prenúncio de uma transformação futura. Com o tempo, a pessoa perde a capacidade de avaliar de forma realista a escassez de investimento do outro, ficando presa a uma expectativa que nunca se concretiza.
As consequências emocionais são avassaladoras. O breadcrumbing mina progressivamente a autoestima, uma vez que a vítima passa a acreditar que deve contentar-se com pouco e que não merece mais. Este processo alimenta sentimentos de inadequação e reforça a ideia de que é preciso ganhar o amor do narcisista através de esforço constante, submissão ou autoanulação. A longo prazo, a vítima interioriza que migalhas são o máximo que pode esperar de uma relação, normalizando padrões de abuso emocional e desvalorizando o seu próprio valor.
O breadcrumbing é, portanto, uma das formas insidiosas de reforço intermitente, pois combina a manipulação consciente do abusador com a vulnerabilidade emocional da vítima. Enquanto a imprevisibilidade gera excitação e dependência, as migalhas funcionam como lembretes de que ainda existe uma ligação, mantendo acesa uma esperança ilusória. Reconhecer este mecanismo é um passo fundamental para quebrar o ciclo do trauma bonding e restituir a perceção de que amor genuíno não se mede por escassos gestos ocasionais, mas por consistência, respeito e empatia.
O trauma bonding não surge de imediato, mas vai-se instalando através de um ciclo repetitivo que alterna entre fases de sedução, dor e falsa reparação. O início da relação é geralmente marcado pela idealização: o narcisista apresenta-se como carismático, encantador, generoso e intensamente disponível. A vítima sente-se especial, escolhida, quase como se tivesse encontrado alguém único. Este início idílico cria uma base de comparação que será, mais tarde, explorada pelo abusador.
Gradualmente, a fase de idealização dá lugar à desvalorização. Surgem críticas veladas, comentários sarcásticos, distanciamento afetivo e até humilhações explícitas. A vítima começa a duvidar de si própria, esforçando-se para voltar a agradar e reconquistar a atenção recebida no início. Quando o clima emocional atinge um ponto de saturação, o narcisista introduz novamente momentos de afeto e aparente arrependimento. Pode pedir desculpa, fazer uma promessa de mudança, oferecer um gesto carinhoso. É aqui que entra em ação o reforço intermitente: estas migalhas de afeto, cada retorno ao afeto, ainda que fugaz, funcionam como um poderoso reforço, reativando a esperança da vítima e levando-a a acreditar que as coisas poderão voltar a ser como antes. Esse processo vicia emocionalmente a vítima, criando uma ligação semelhante ao condicionamento de dependência emocional.
O trauma bonding é por isso alimentado por fases bem delimitadas:
Idealização: o narcisista mostra-se encantador, generoso, amoroso.
Desvalorização: surgem críticas, sarcasmos, distanciamento, comportamentos cruéis.
Recompensa intermitente: após momentos de tensão, o narcisista reaparece com afeto e promessas de mudança, reativando a esperança.
Repetição do ciclo: a vítima volta a investir na relação, que após algum tempo regressa ao padrão abusivo.
Este ciclo repete-se vezes sem conta. Cada fase de reconciliação, por mais breve e superficial que seja, ganha um peso emocional desproporcionado. Vítimas presas neste ciclo apresentam comportamentos contraditórios. A vítima passa a justificar os maus-tratos, minimizando a gravidade do abuso com frases como "Ela só estava stressada" ou "Ele age assim porque teve uma infância difícil". Muitas vezes têm receio de represálias emocionais ("Se eu sair, ele vai terminar a relação comigo"), e possuem a crença de que ainda podem salvar ou curar o narcisista. É comum também a vítima sentir vergonha por ainda amar quem a magoa e culpa-se pela sua própria incapacidade de sair da relação. Essa vergonha, contudo, está enraizada na própria manipulação emocional que foi sofrendo ao longo do tempo: não resulta de falta de força ou inteligência, mas do condicionamento emocional a que foi sujeita.
Deste modo, o trauma bonding cria uma dependência emocional que se confunde com amor. Mas ao contrário do amor saudável, que se caracteriza pela consistência, respeito e empatia, esta ligação é volátil, marcada pelo medo e pela ilusão. O que mantém a vítima ligada, trauma bonding, não é a realidade de um afeto constante, mas a esperança infundada de que esse afeto volte a existir e na desvalorização do próprio valor pessoal.
A dificuldade em romper uma relação marcada por reforço intermitente não se deve apenas à dimensão psicológica, mas também ao impacto direto no cérebro da vítima. A imprevisibilidade do afeto ativa o sistema de recompensa dopaminérgico, criando picos intensos de prazer semelhantes aos observados em dependências químicas ou comportamentais, como o jogo. O cérebro passa a associar os raros momentos de recompensa a algo de valor extremo, mesmo que para os alcançar seja necessário suportar longos períodos de abuso.
A isto somam-se outros fatores que reforçam o aprisionamento emocional. O narcisista tende a isolar a vítima do seu círculo de apoio, afastando-a de familiares e amigos que poderiam funcionar como rede de proteção. A autoestima da vítima é progressivamente corroída pelas críticas e pela manipulação, levando-a a acreditar que não é capaz de sobreviver sozinha ou que ninguém mais a poderá amar. Muitas vezes, a dependência não é apenas emocional, mas também financeira ou prática, criando barreiras adicionais à saída.
Outro elemento que sustenta o trauma bonding é a esperança de redenção. O abusador, ciente do impacto das suas ações, introduz ciclicamente desculpas, promessas de mudança e gestos de aparente vulnerabilidade. A vítima, empática e desejosa de recuperar a relação idealizada, agarra-se a essas migalhas de esperança como se fossem sinais de transformação genuína. Esta esperança é, na verdade, um dos grilhões mais fortes da prisão psicológica.
Romper este ciclo exige, portanto, um processo consciente e estruturado. O primeiro passo é compreender que não se trata de amor, mas de condicionamento. É necessário restaurar a autoestima e reconstruir a identidade que foi progressivamente desfeita. O corte de contacto com o abusador, frequentemente referido como "no contact", é uma medida fundamental para quebrar o ciclo e dar início à recuperação. Paralelamente, a vítima precisa de reativar a sua rede social, procurar apoio psicológico especializado e reprocessar a dor emocional acumulada, de modo a transformar a experiência vivida numa aprendizagem que permita evitar novos padrões de abuso.
O trauma bonding é, em última instância, a prova de como o amor pode ser deturpado e transformado em instrumento de dominação. Reconhecer a sua existência é um passo decisivo não apenas para a vítima, mas também para a sociedade em geral, que muitas vezes ainda romantiza relações marcadas por intensidade emocional sem compreender que essa intensidade pode ser apenas a face visível de um mecanismo destrutivo.
Quando Nuno conheceu Madalena, sentiu que finalmente tinha encontrado alguém que o via de forma especial. Ela parecia atenta a cada detalhe dele, desde a forma como mexia o café até às histórias de infância que ele raramente partilhava com alguém. Madalena sabia ouvir e, mais do que isso, sabia responder com palavras que faziam Nuno sentir-se visto, validado e até admirado. Nos primeiros meses, ela era calorosa, carinhosa e sempre pronta a fazer-lhe surpresas. Pequenos bilhetes deixados no carro, mensagens de bom dia com frases doces, convites inesperados para jantares românticos. Nuno sentia-se como se tivesse ganho na lotaria emocional.
Essa fase, mais tarde ele perceberia que era a idealização, mas naquele momento parecia simplesmente amor verdadeiro. O coração dele pulsava com uma intensidade nova. Madalena mostrava-se orgulhosa dele em público, elogiava-o para amigos, e até afirmava que ele era o homem com quem sempre sonhou. Essa atenção constante e entusiasmada tornava-se viciante, e Nuno passou a viver em função daquele afeto.
Mas, sem aviso, as primeiras fissuras começaram a aparecer. Comentários antes carinhosos transformaram-se em críticas subtis: "Tu até és inteligente, mas às vezes falas sem pensar" ou "Eu gosto de estar contigo, mas tens de melhorar a tua aparência, sabes?". Pequenas alfinetadas, ditas com um sorriso, que Nuno ignorava na esperança de não quebrar a harmonia. O contacto físico, antes espontâneo e frequente, tornou-se mais raro. Madalena parecia mais distraída, respondia às mensagens dele com atraso ou apenas com curtas frases, e, em alguns dias, mostrava-se francamente fria.
Quando Nuno tentava conversar sobre o que estava a sentir, ela desviava, acusando-o de ser demasiado sensível ou dramático. E depois, como se quisesse apagar qualquer vestígio de conflito, voltava de repente a ser doce e atenciosa. Enviava uma mensagem inesperada a dizer "Estou com saudades tuas" ou aparecia na casa dele com um bolo que sabia ser o favorito. Essa alternância imprevisível entre proximidade intensa e distanciamento cortante começou a deixar Nuno confuso.
Ele não sabia quando receberia carinho ou quando seria alvo de frieza, mas começou a reparar que, quando o afeto surgia, o alívio era tão grande que quase esquecia a fase dolorosa que o antecedera. Madalena dominava este ritmo com precisão quase cirúrgica: nunca o afastava por completo, mas também nunca lhe permitia sentir-se seguro. A ligação que se criava não era estável, mas profundamente viciante.
Nuno começou a fazer cada vez mais esforços para manter Madalena por perto. Ajustava a agenda para se adaptar à dela, aceitava críticas sem responder, oferecia presentes para tentar agradar. Quando ela o elogiava, mesmo que de forma breve, ele sentia-se validado e alimentava a esperança de que a relação poderia voltar àquele início mágico. Mas, inevitavelmente, a frieza voltava. E sempre que Nuno pensava em confrontá-la ou afastar-se, lembrava-se das vezes em que Madalena fora doce e atenciosa, e dizia a si mesmo que "ela estava apenas a passar por uma fase difícil" ou que "no fundo, ela amava-o".
Madalena nunca deixava claro o motivo para os seus afastamentos. Às vezes, após uma semana de distância emocional, reaparecia com lágrimas nos olhos, dizendo que tinha estado stressada ou a precisar de espaço. Noutras vezes, culpava Nuno, insinuando que ele tinha mudado, que não era tão divertido ou espontâneo como antes. Nuno, mergulhado no ciclo de reforço intermitente, aceitava a culpa e esforçava-se mais, acreditando que, se fosse melhor, poderia evitar a próxima fase de distanciamento.
Com o tempo, os efeitos tornaram-se mais profundos. A autoestima de Nuno começou a erodir. Passou a duvidar do próprio valor, convencido de que só merecia afeto se correspondesse às expectativas voláteis de Madalena. Tornou-se hipervigilante aos sinais dela, interpretando cada mensagem ou expressão facial como um indicador do clima da relação. Um sorriso inesperado podia transformar-lhe o dia. Uma resposta seca podia mergulhá-lo num poço de ansiedade.
Esta oscilação constante afetava até o corpo dele: insónia nas fases de afastamento, euforia quando ela voltava a aproximar-se. Nuno vivia num estado de alerta emocional, à espera da próxima recompensa: um beijo, uma frase carinhosa, um convite inesperado. Madalena mantinha-o preso a este ciclo, sabendo que ele reagia como alguém viciado numa substância rara e imprevisível.
Isolado gradualmente dos amigos, muitos dos quais deixara de ver porque Madalena insinuava que não gostavam dela ou que desviavam a atenção dele, Nuno já não tinha pontos de referência externos para confirmar que aquilo que vivia não era saudável. E sempre que tentava abrir-se com alguém, sentia vergonha de admitir que ainda amava uma pessoa que tantas vezes o magoava.
As fases boas continuavam a aparecer, mas tornavam-se cada vez mais curtas e espaçadas. A cada nova recaída na frieza e no distanciamento, Nuno dizia a si mesmo que talvez aquela fosse a última vez, que ela estava a aprender com os erros. Mas, no fundo, o padrão repetia-se com a mesma previsibilidade mascarada de imprevisibilidade.
O que Nuno não percebia na altura era que o seu cérebro estava preso num ciclo de reforço intermitente. A imprevisibilidade do afeto de Madalena provocava-lhe picos intensos de dopamina, que se tornavam tão poderosos que ele já não conseguia pensar na relação de forma racional. Era como um jogador que, mesmo perdendo na maioria das vezes, continua a apostar porque, de vez em quando, ganha e esse “de vez em quando” é suficiente para o manter preso.
Com o tempo, a identidade de Nuno foi-se diluindo. Ele já não sabia distinguir o que queria para si próprio do que fazia para agradar a Madalena. Vivia em função dela, na esperança de voltar àquele início idílico que, na verdade, nunca mais existiria. O trauma bonding tornara-se a prisão invisível que o mantinha ao lado de quem, alternando migalhas de carinho com longos períodos de frieza, conseguia exercer sobre ele um controlo quase absoluto.
O "silent treatment" (silêncio punitivo) e o "emotional withholding" (privação emocional) constituem duas formas insidiosas de manipulação emocional utilizadas por indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Ambas representam formas de abuso psicológico que envolvem a privação intencional de comunicação, afeto e validação emocional, com o objetivo de controlar, punir e desestabilizar a vítima. Não se trata por isso de uma flutuação natural no afeto dentro de uma relação. Estas estratégias são deliberadas, consistentes e intencionalmente aplicadas para exercer poder sobre a vítima, privando-a de necessidades humanas fundamentais como o afeto, a validação e a ligação emocional. O seu propósito central é fragilizar emocionalmente a vítima, desestabilizar o seu equilíbrio interno e criar um estado de insegurança que a leva a esforçar-se incessantemente para recuperar a atenção e o afeto do narcisista.
Quando um indivíduo recorre a estas práticas, não está simplesmente a retirar-se por necessidade de espaço ou introspeção. Está, pelo contrário, a manipular ativamente a perceção da vítima, transformando o silêncio e a ausência de afeto em armas psicológicas. São, portanto, manifestações de abuso psicológico que funcionam tanto pela ausência quanto pela presença seletiva de atenção. O narcisista, ao negar comunicação ou calor emocional, induz na vítima um estado de angústia e instabilidade, levando-a a acreditar que é responsável pelo distanciamento. Esse jogo cruel gera ansiedade, dependência e condiciona a vítima a lutar incessantemente para restaurar a ligação perdida, mesmo à custa do seu bem-estar e dignidade.
O impacto destas estratégias não se limita ao momento em que ocorrem. Elas têm efeitos cumulativos que corroem a autoestima, promovem a dependência emocional e enfraquecem a identidade da vítima. De facto, estudos em psicologia relacional e dinâmica abusiva sublinham que tanto o silêncio punitivo como a privação emocional intencional são comparáveis, em termos de dano, a formas explícitas de abuso verbal ou até físico. Estas dinâmicas, longe de serem meros desencontros conjugais, configuram um verdadeiro campo de manipulação onde a privação emocional se converte em arma de domínio. Para compreender melhor este fenómeno, importa observar em detalhe as duas modalidades principais: o silêncio punitivo e a privação emocional intencional.
O "silent treatment" pode ser descrito como uma recusa consciente e persistente de comunicação, utilizada como ferramenta de punição e de controle. É talvez a expressão mais clara e visível da forma como o narcisista utiliza a ausência de comunicação como ferramenta de poder. Não é um simples preciso de espaço, nem um afastamento temporário para acalmar ânimos após um conflito. É antes a recusa consciente e calculada em comunicar, como forma de punir, humilhar e reafirmar o seu domínio sobre a vítima.
Tipicamente, o silêncio punitivo emerge após discussões, confrontos ou situações em que a vítima ousou colocar limites ou questionar a conduta do narcisista. Ao invés de dialogar, o narcisista opta por cortar a comunicação, transformando o silêncio num instrumento de poder. Este comportamento pode manifestar-se de diferentes formas. Há situações em que o narcisista desaparece literalmente, não atendendo chamadas, não respondendo a mensagens e ignorando completamente os esforços da vítima para restabelecer contacto. Noutras ocasiões, permanece fisicamente presente mas emocionalmente inacessível: evita contacto visual, responde com monossílabos, circula pela mesma casa sem reconhecer a presença do outro, ou adota uma frieza glacial que transmite desprezo. O efeito psicológico é pungente, porque o silêncio não é neutro sendo carregado de uma hostilidade implícita que faz a vítima sentir-se invisível, irrelevante e indigna de consideração. Esta postura gélida é mais destruidora do que uma explosão de raiva, porque atinge diretamente a necessidade humana de ser reconhecido e validado.
O impacto psicológico é profundo: a vítima sente-se apagada, como se a sua existência tivesse deixado de ter significado. O silêncio prolongado não é apenas ausência de palavras, mas a criação de um vazio relacional que leva a vítima a procurar incessantemente reparar a ligação, acreditando que o afastamento é consequência direta de algum erro pessoal. O silêncio punitivo atua por isso como uma forma de gaslighting silencioso. Esta inversão da responsabilidade é uma das maiores forças do "silent treatment": a vítima, em vez de reconhecer a manipulação, tende a culpar-se a si mesma, esforçando-se cada vez mais para agradar e evitar novos períodos de silêncio. Este processo instala um ciclo vicioso em que a vítima, ansiosa por recuperar o vínculo, intensifica os esforços para agradar ao narcisista, oferecendo ainda mais submissão e cuidado, apenas para evitar a angústia da rejeição.
Na perspetiva clínica, o "silent treatment" atua como um condicionamento de tipo aversivo. O silêncio, insuportável do ponto de vista emocional, funciona como uma punição que força a vítima a adaptar o seu comportamento. A pessoa aprende, muitas vezes de forma inconsciente, que qualquer tentativa de confronto ou afirmação pessoal resultará em afastamento emocional. Assim, o silêncio não é apenas uma resposta fria, mas um instrumento de treino psicológico que molda e enfraquece a autonomia da vítima.
O mais cruel deste mecanismo é a sua intermitência. O narcisista, após longos períodos de frieza, pode regressar subitamente ao contacto, oferecendo momentos de aparente normalidade ou até de afeto intenso. Essa alternância entre rejeição e proximidade cria um reforço intermitente extremamente poderoso, semelhante ao mecanismo que sustenta vícios comportamentais como os jogos de azar. A imprevisibilidade de quando o silêncio terminará faz com que a vítima se agarre ainda mais aos raros momentos de reconciliação, acreditando que o vínculo está novamente seguro. No entanto, esta oscilação não fortalece a relação, mas antes aprofunda o trauma e a dependência, tornando o ciclo cada vez mais difícil de quebrar. Deste modo, o silêncio transforma-se num ciclo de condicionamento, em que a vítima é treinada a submeter-se para evitar o sofrimento e alcançar migalhas de validação.
Se o silêncio punitivo priva a vítima de palavras e comunicação, o "emotional withholding" vai mais longe, negando de forma ativa o afeto, a atenção e a intimidade. Constitui uma manipulação mais subtil, mas igualmente dilacerante, porque atinge necessidades emocionais profundas, que estão no cerne de qualquer relação saudável. Trata-se de uma recusa ativa e consciente de oferecer carinho, proximidade emocional, intimidade física ou verbal e até mesmo empatia básica perante as necessidades do outro.
O narcisista retém deliberadamente gestos que, em qualquer relação saudável, seriam naturais e espontâneos, como abraços, beijos, palavras de validação, demonstrações de desejo ou de ternura, ou exerce uma total falta de empatia perante as necessidades emocionais da vítima. Muitas vezes, quando confrontado, minimiza a gravidade dos seus atos com frases como "não estou com vontade", "estás a exagerar" ou "és demasiado dramático", transformando a vítima em culpada pela ausência de afeto. A recusa de intimidade sexual, quando utilizada como ferramenta de controle, é talvez uma das manifestações mais dolorosas deste mecanismo. Ao negar deliberadamente proximidade física, o narcisista não apenas frustra necessidades legítimas de ligação, mas também envia uma mensagem de rejeição profunda, minando o senso de atratividade e de valor da vítima. A privação emocional prolongada instala um ciclo de insegurança: a vítima passa a acreditar que precisa de merecer o afeto, ajustando-se constantemente às expectativas do outro para obter pequenas recompensas emocionais.
Este tipo de privação não é acidental. É cuidadosamente calibrado para reforçar a sensação de poder do narcisista e a vulnerabilidade da vítima. A mensagem subjacente é clara: o acesso ao carinho e à intimidade não é um direito natural dentro da relação, mas um privilégio concedido apenas quando a vítima se comporta de acordo com as expectativas do abusador. Assim, o amor torna-se condicional, um prémio que pode ser retirado a qualquer momento. Com o tempo, a vítima começa a internalizar a ideia de que o seu valor pessoal depende da capacidade de satisfazer o narcisista. Por outras palavras, a vítima começa a medir o seu valor pelo grau de afeto que consegue extrair do narcisista. Surge então um ciclo de auto-culpabilização: se não há carinho a falha deve ser minha, se não há proximidade eu devo estar a fazer algo errado. Este processo corrói gradualmente a autoestima, levando a vítima a aceitar mais abusos na esperança de, eventualmente, recuperar o afeto perdido.
Adicionalmente, a privação emocional cria um paradoxo doloroso: quanto menos a vítima recebe, mais intensamente deseja. Os raros momentos em que o narcisista se mostra carinhoso tornam-se eventos de grande impacto, que reforçam a ligação emocional, mesmo que essa ligação seja marcada pela negligência e pelo sofrimento. Deste modo, cada gesto mínimo de validação é amplificado e vivido como demonstração de amor, mesmo quando surge após longos períodos de frieza. A vítima passa a viver em função da próxima migalha de atenção, num estado semelhante ao vício, onde a escassez aumenta o valor percebido da recompensa. Este ciclo gera uma dependência particularmente tóxica. A privação, seguida de recompensas intermitentes, reforça o trauma bonding, criando um vínculo de lealdade paradoxal em que a vítima permanece ligada a quem mais a fere, na esperança de recuperar o afeto perdido.
Do ponto de vista psicológico, este processo pode ser comparado ao mecanismo de reforço intermitente utilizado nos jogos de azar. Tal como o jogador continua a apostar, na expectativa de que a próxima jogada traga finalmente a vitória, a vítima mantém-se presa à relação, acreditando que o próximo gesto de carinho será a prova definitiva de amor. Esta incerteza e intermitência criam uma forma poderosa de dependência emocional, que pode ser mais difícil de romper do que outras formas de abuso explícito.
O "silent treatment" e o "emotional withholding" funcionam como reforço negativo. A ausência de resposta ou carinho cria uma tensão emocional intolerável, levando a vítima a fazer o que o narcisista deseja para restaurar uma aparência de harmonia. Com o tempo, isto condiciona comportamentos: a vítima aprende que apenas ao submeter-se ou evitar provocar o narcisista é que pode escapar ao silêncio ou frieza.
O narcisista retira comunicação e afeto como forma de reforçar a sua superioridade pois ao tratar a vítima como invisível, coloca-se numa posição de poder e controle. O silêncio e a frieza funcionam também simultaneamente como castigo por confrontos, em que o silêncio é muitas vezes a resposta direta a qualquer tentativa da vítima de impor limites ou questionar comportamentos. Adicionalmente, a ausência de resposta ou afeto é usada como método de treino psicológico, sendo usada para condicionar submissão, ao reintroduzir breves momentos de carinho após longos períodos de frieza, criando assim dependência emocional semelhante à de vícios comportamentais.
Adicionalmente, muitos narcisistas minimizam o abuso ("Só estou a precisar de espaço, és tu que exageras"). Este gaslighting subtil agrava a confusão e leva a vítima a internalizar a culpa, convencendo-se de que é responsável pelo afastamento ("Se eu fosse melhor, ele/ela não estaria assim"). O isolamento social, provocado pelo narcisista, limita perspectivas externas que poderiam quebrar o ciclo. Com o tempo, a vítima não só perde confiança em si própria, como passa a duvidar da sua perceção da realidade.
Este padrão tem como consequência o surgimento de uma ansiedade constante da vítima com medo de desagradar e provocar novo distanciamento, a sua auto-culpa e vergonha internalizando a ideia de que é responsável pelo afastamento, o isolamento emocional com sensação de abandono e desespero, e o trauma bonding reforçando o apego da vítima a quem alterna entre negligência e breves migalhas de atenção. A vitima agarra-se desesperadamente aos raros momentos de ligação, acreditando que o verdadeiro amor ainda existe ali, quando na realidade são apenas reforços intermitentes estrategicamente oferecidos para manter o controlo. .
Estudos sobre abuso psicológico destacam que este tipo de manipulação é tão ou mais prejudicial como as formas explícitas de violência verbal ou física, uma vez que destrói gradualmente o senso de identidade e de valor próprio da vítima (Williams, 2009). A recuperação deste tipo de abuso requer o reconhecimento do padrão como uma tática de controle deliberada, a educação emocional e terapia para reconstruir autoestima e autonomia, o estabelecimento de limites claros, o afastamento ("no contact" ou "low contact"), e uma rede de apoio externa (amigos, grupos de apoio, familiares empáticos) para revalidar percepções da realidade.
O "silent treatment" e o "emotional withholding" não são simples desentendimentos conjugais, mas sim formas sistemáticas de manipulação e abuso psicológico que corroem a saúde emocional da vítima a longo prazo.
Quando Ricardo conheceu Rita, sentiu que tinha encontrado alguém capaz de o compreender de uma forma que ninguém antes tinha conseguido. No início, ela era calorosa, atenta e encantadoramente expressiva. O sorriso dela parecia iluminar qualquer espaço e, durante os primeiros meses, os gestos de afeto eram constantes, com mensagens durante o dia, telefonemas antes de dormir, e abraços demorados. Ricardo, que vinha de relações marcadas pela distância emocional, sentiu-se finalmente visto e valorizado.
Com o tempo, pequenas mudanças começaram a surgir, tão subtis que, no início, ele quase não lhes deu importância. Uma tarde, após um comentário inocente sobre como gostaria de passar mais tempo com amigos, Rita ficou estranhamente silenciosa. Não foi um silêncio casual, mas um vazio denso, acompanhado de um olhar frio e distante. Durante dois dias, respondeu-lhe apenas com monossílabos, evitando qualquer contacto físico. Ricardo, desconfortável com aquela ausência súbita de ligação, tentou conversar, mas recebeu frases vagas: "Não estou com vontade de falar" ou "Acho melhor deixarmos as coisas acalmar." Não havia explicações, apenas um afastamento que lhe parecia tanto castigo como teste.
Este padrão começou a repetir-se. Cada vez que Ricardo questionava algo ou tentava impor um limite, fosse sobre a divisão de tarefas, ou sobre gastos, Rita retirava-se para um silêncio glacial. Ignorava mensagens, passava por ele em casa como se fosse invisível e, em ocasiões mais prolongadas, chegava a passar noites inteiras sem dizer uma palavra. Não se tratava de precisar de espaço, mas de o fazer sentir-se culpado, ansioso e disposto a qualquer coisa para recuperar o afeto perdido.
Com o passar dos meses, o "silent treatment" começou a ser acompanhado de "emotional withholding". Mesmo nos períodos bons, havia um fio de tensão. Rita controlava o acesso à intimidade física e emocional de forma precisa, quase cirúrgica. Um abraço ou um elogio tornaram-se raros, oferecidos apenas depois de longos períodos de frieza, como se fossem recompensas cuidadosamente medidas. Quando Ricardo procurava afeto, recebia respostas como "Não estou para aí virada!" ou "Estás a ser demasiado carente". O peso dessas palavras, repetidas vezes, começou a corroer lentamente a sua autoestima. Passou a questionar-se constantemente: “Estarei mesmo a exagerar? Será que sou eu o problema?”
O efeito era colossal. Cada afastamento fazia Ricardo entrar numa espécie de estado de urgência emocional. Durante o silêncio, sentia um aperto constante no peito, a ansiedade a corroer-lhe o sono e a concentração. Nas raras ocasiões em que Rita voltava a ser carinhosa, a sensação de alívio era tão intensa que ele se agarrava a esses momentos como provas de que o amor verdadeiro ainda existia na relação. Não percebia, na altura, que estava preso num ciclo de condicionamento: a alternância entre negligência e pequenas migalhas de afeto reforçava o seu apego, tal como um vício se alimenta de recompensas intermitentes.
Os amigos começaram a notar mudanças em Ricardo. Estava mais retraído, mais hesitante ao falar sobre a sua vida pessoal e, quando questionado, minimizava a situação: "São coisas de casal… às vezes ela precisa de espaço." Rita, por seu lado, reforçava essa narrativa sempre que havia oportunidade. Se alguém lhe perguntava por que razão estava distante, respondia com um ar levemente ofendido: "Eu só não gosto de drama, e o Ricardo às vezes insiste em coisas sem importância." A minimização constante transformou-se numa estratégia eficaz, Ricardo começou a duvidar das suas próprias percepções e a assumir a culpa por quase todas as tensões.
O isolamento emocional intensificou-se quando Rita começou a mostrar irritação sempre que ele passava tempo com outras pessoas. Pequenos comentários como "Parece que preferes a companhia deles à minha" ou "Engraçado, tens energia para sair, mas não para falar comigo" plantavam nele um sentimento de culpa. Gradualmente, Ricardo reduziu os contactos sociais para evitar novos episódios de frieza. A sua rede de apoio encolheu, e com ela desapareceu a possibilidade de ter perspectivas externas que o ajudassem a reconhecer o padrão abusivo.
O ponto de rutura chegou numa noite de inverno. Ricardo, exausto emocionalmente, tentou ter uma conversa franca com Rita, dizendo que o silêncio e a falta de afeto estavam a magoá-lo profundamente. Ela não respondeu. Levantou-se, pegou no telemóvel e saiu para outra divisão. Durante três dias, não lhe dirigiu uma palavra. Quando finalmente falou, foi apenas para dizer: "Vês? É por isso que não falo. Tudo o que faço está errado para ti." Nesse momento, Ricardo sentiu um misto de desespero e resignação, qualquer tentativa de diálogo acabava convertida em prova contra si.
Demorou meses até ele conseguir reconhecer que o que vivia não era falta de compatibilidade, mas sim um padrão deliberado de manipulação. O "silent treatment" e o "emotional withholding" não eram reações impulsivas, mas estratégias calculadas para o controlar, punir e manter numa posição de submissão emocional. Rita tinha construído um sistema no qual o silêncio não era vazio, mas sim uma arma, e a ausência de afeto não era descuido, mas sim uma forma de o manter preso à esperança de que, se fosse melhor, mais paciente, mais compreensivo, tudo voltaria a ser como no início.
A recuperação de Ricardo começou quando, numa conversa casual com um colega de trabalho, ouviu alguém descrever uma experiência semelhante. Foi como acender uma luz num quarto escuro. A partir daí, procurou informação, reconheceu o padrão e, finalmente, teve coragem de se afastar. O silêncio, que antes o aterrorizava, tornou-se, aos poucos, um espaço de cura. A ausência de Rita deixou de ser punição e passou a ser liberdade.
Indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), sobretudo do subtipo grandioso, utilizam de forma recorrente estratégias relacionais que aparentam ser superficiais ou até socialmente aceitáveis, mas que na realidade têm uma intencionalidade clara de testar limites, provocar ciúmes, desestabilizar vínculos e reforçar a sua própria sensação de grandiosidade. A violação de limites interpessoais, o flirt público e a infidelidade não são incidentes ocasionais nem comportamentos inocentes: fazem parte de um padrão estruturado de exploração relacional, sustentado pela necessidade de poder, validação e domínio. Algumas destas práticas, por mais subtis que possam parecer, são profundamente corrosivas para a autoestima, para o sentimento de segurança e para a integridade psicológica da vítima, contribuindo para dinâmicas de abuso emocional invisível que raramente são reconhecidas de imediato por terceiros.
As violações de limites interpessoais constituem uma das marcas mais consistentes da dinâmica relacional com indivíduos que apresentam Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). À primeira vista, podem parecer episódios pontuais, deslizes ocasionais ou até mal-entendidos de comunicação. No entanto, quando analisadas em sequência, revelam-se como parte integrante de uma estratégia meticulosamente repetida, destinada a minar a segurança psicológica da vítima e a dissolver progressivamente a sua capacidade de resistência emocional.
Estas violações assumem diferentes formas. Em muitos casos, surgem sob a forma de comentários depreciativos em público, aparentemente inocentes, mas carregados de ironia ou sarcasmo. O parceiro é exposto em situações sociais como se fosse alvo de uma piada privada, ridicularizado perante amigos ou familiares, sem possibilidade de resposta sem parecer exagerado ou demasiado sensível. Noutras situações, os limites são ultrapassados através do desrespeito sistemático por acordos previamente estabelecidos, como cancelar planos à última hora, aparecer inesperadamente em contextos pessoais do parceiro, ou forçar a participação em atividades desconfortáveis.
A característica transversal a todas estas situações é a intencionalidade: não se tratam de erros casuais, mas de testes sucessivos que procuram medir até onde a vítima tolera a invasão da sua esfera íntima. A cada violação não contestada, cria-se um precedente, e a noção de que o narcisista tem direito a ultrapassar barreiras pessoais sem consequências. O que para a vítima começa como cedências pontuais para evitar conflito transforma-se gradualmente numa rotina de submissão em que os seus valores, limites e desejos são secundarizados.
Mais insidioso ainda é o efeito psicológico cumulativo. Com o tempo, a vítima começa a duvidar dos seus próprios direitos: questiona se não estará a ser demasiado rígida, se não deveria ser mais flexível, ou se a reação de desconforto que sente não será fruto de insegurança pessoal. É este o cerne da manipulação: transformar a violação de limites numa experiência de gaslighting subtil, onde o agressor se apresenta como espontâneo, livre e autêntico, enquanto a vítima se vê rotulada como controladora ou intolerante.
Este processo instala uma dinâmica profundamente assimétrica. O narcisista mantém total liberdade de transgredir, enquanto a vítima se vê cada vez mais condicionada a recalibrar as suas próprias fronteiras, tornando-se permeável à invasão. A erosão progressiva da autonomia relacional, emocional e até física é, assim, o terreno fértil no qual se consolidam a dependência e o controlo.
Se as violações de limites interpessoais servem como teste e habituação à invasão, o flirt público constitui uma das manifestações mais calculadas do poder narcisista em contexto social. Longe de ser um gesto espontâneo ou um reflexo de simpatia natural, o flirt praticado pelo narcisista grandioso é uma arma de dupla face: simultaneamente seduz terceiros e fere o parceiro, reforçando a sua posição de dominância perante ambos.
O comportamento apresenta-se muitas vezes sob a capa da sociabilidade charmosa. O narcisista sabe calibrar olhares prolongados, elogios ostensivos, comentários de duplo sentido e toques aparentemente casuais, criando uma aura de magnetismo que raramente passa despercebida. A vítima, muitas vezes presente, é colocada numa posição paradoxal. Por um lado, percebe que existe intencionalidade erótica ou sedutora. Por outro, sente que não dispõe de provas inequívocas, pois a conduta é mascarada de simpatia, boa educação ou espírito descontraído.
É precisamente nesta ambiguidade que reside o poder do flirt público. Ao provocar insegurança e ciúmes no parceiro, o narcisista reforça a sensação de ser desejado e indispensável, reposicionando-se como o centro em torno do qual gravitam tanto a vítima como potenciais rivais. Ao mesmo tempo, testa os limites do que é tolerado: até que ponto o parceiro aceita este tipo de exposição? Até que ponto engole o desconforto sem reagir? Cada silêncio da vítima, cada tentativa de racionalizar o episódio, é contabilizado como uma vitória no jogo de dominação.
Quando confrontado, o narcisista raramente admite a intenção. A negação surge acompanhada de humor, sarcasmo ou frases que invertem a culpa: "Estás a imaginar coisas", "És demasiado inseguro(a)", "Não posso ser simpático(a)?", "És controlador(a)!". Estes mecanismos de gaslighting não apenas desvalorizam a reação da vítima, como criam uma confusão emocional que a faz questionar a legitimidade da sua perceção. Com o tempo, a vítima passa a antecipar que qualquer confronto resultará em humilhação ou ridicularização, optando por silenciar o desconforto.
Um dos aspetos mais cruéis do flirt público é o modo como expõe a vítima em contextos sociais. Ao assistir impotente ao jogo de sedução do parceiro, a vítima não apenas sente ciúme ou insegurança, mas também vergonha e humilhação pública. O sofrimento não é privado, mas testemunhado por terceiros, o que aumenta o impacto psicológico e aprofunda a ferida narcisista infligida.
Este padrão pode ser ainda ampliado pelas redes sociais, que se tornaram terreno fértil para a exibição calculada. Likes, comentários sugestivos ou a exposição deliberada de interações inocentes funcionam como extensões digitais do flirt público, perpetuando o ciclo de insegurança e validação constante.
No fundo, o flirt público praticado pelo narcisista grandioso não é um mero comportamento social, mas uma coreografia de poder cuidadosamente desenhada. Cada gesto sedutor, cada negação subsequente, cada acusação de ciúme infundado compõe um teatro cujo objetivo último é duplo: alimentar a necessidade insaciável de validação e, ao mesmo tempo, cimentar a posição de supremacia sobre a vítima.
As traições, no contexto da Perturbação de Personalidade Narcisista, não devem ser entendidas como eventos isolados de infidelidade conjugal, mas como parte integrante de uma estratégia relacional onde a quebra de lealdade desempenha funções múltiplas. Mais do que a procura de prazer sexual ou variedade, a traição torna-se um instrumento de afirmação de poder, de regulação da autoestima frágil e de manipulação da vítima.
Muitos narcisistas grandiosos experienciam um vazio interno permanente, uma sensação de insuficiência que necessita de ser continuamente preenchida através da atenção e validação externas. O parceiro oficial, por mais devotado ou admirador que seja, nunca consegue satisfazer essa procura insaciável. Deste modo, a procura de novas conquistas funciona como uma injeção de reforço narcisista, validando a sua perceção de superioridade, charme e irresistibilidade. Cada conquista funciona como prova viva da sua grandiosidade, neutralizando temporariamente sentimentos de vazio ou inferioridade.
No entanto, a traição não tem apenas um significado intrapsíquico, mas também relacional. Ao trair, o narcisista não só satisfaz necessidades pessoais, como coloca o parceiro numa posição de vulnerabilidade. A simples possibilidade de descoberta da traição cria um desequilíbrio de poder: a vítima passa a viver na insegurança, num estado de hipervigilância permanente, tentando decifrar sinais, justificações ou inconsistências. Esta incerteza, por si só, já fragiliza a sua posição.
Quando confrontado com suspeitas ou provas, o narcisista tende a adotar posturas que oscilam entre a negação categórica, o gaslighting e a inversão de culpa. Frases como "Estás a delirar", "Não confias em mim" ou "És obcecado(a) pelo controlo" são utilizadas como armas psicológicas que desviam o foco da sua conduta e projetam a culpa sobre a vítima. Em casos mais extremos, chega a confessar parcialmente, mas minimizando o impacto: "Foi só uma vez", "Não significou nada", transformando o episódio num detalhe irrelevante para o qual a vítima deveria ser madura e resiliente.
A repetição de traições, associada à constante manipulação discursiva, instala na vítima um duplo aprisionamento. Por um lado, o desejo de acreditar e preservar a relação. Por outro, a crescente erosão da autoestima e da confiança. Este ciclo gera uma dependência ainda maior: a vítima tenta reconquistar o afeto do narcisista, adaptando-se cada vez mais, como se o problema residisse na sua própria insuficiência.
Deste modo, as traições no contexto da PPN não podem ser vistas como episódios de infidelidade, mas como dispositivos de manutenção da hierarquia relacional: reafirmam a superioridade do narcisista, fragilizam a vítima e mantêm-na emocionalmente enredada numa dinâmica de procura e perda, reforço intermitente e constante instabilidade.
O impacto das violações de limites, do flirt público e das infidelidades não se esgota no momento em que ocorrem. Trata-se de experiências cumulativas, que deixam marcas profundas na psique da vítima. A dor não advém apenas de cada episódio isolado, mas da repetição sistemática que mina, fragmenta e desestrutura a identidade pessoal.
A nível emocional, as consequências mais imediatas são sentimentos de humilhação, vergonha e insegurança. O parceiro traído ou exposto vê-se constantemente colocado em situações de inferioridade, comparado a terceiros ou relegado para um papel secundário na vida do narcisista. Este posicionamento repetido cria um ambiente interno de dúvida e autodepreciação: "Será que não sou suficiente?", "O problema está em mim?". A autoestima, outrora sólida, transforma-se num campo minado de incerteza e autorrecriminação.
Em paralelo, instala-se um estado de hipervigilância psicológica. A vítima passa a viver em constante alerta, monitorizando gestos, expressões e interações do narcisista, tentando antecipar sinais de novas violações ou traições. Esta vigilância crónica consome recursos emocionais e cognitivos, conduzindo frequentemente a sintomas de ansiedade, insónia, somatizações e até estados depressivos. O organismo permanece em permanente estado de stress, como se estivesse aprisionado numa ameaça que nunca se dissipa.
Outro efeito central é a dependência emocional. Através do reforço intermitente, que consiste na alternância imprevisível entre episódios de validação e desvalorização, a vítima acaba presa numa dinâmica semelhante ao vício. A esperança de recuperar os momentos de proximidade ou afeto inicial leva-a a suportar condutas abusivas, na expectativa de que o ciclo volte à fase de lua de mel. Esta oscilação cria um vínculo traumático, em que a dor e o prazer se entrelaçam de forma quase indissociável.
As consequências não se limitam ao âmbito da relação imediata. Muitas vítimas relatam dificuldades em relações futuras, caracterizadas por medo de confiar, hipersensibilidade a sinais de rejeição e tendência para tolerar novos abusos. O trauma não resolvido prolonga-se no tempo, moldando padrões de vinculação posteriores e perpetuando um ciclo de vulnerabilidade.
Por fim, importa destacar o impacto identitário. A erosão contínua da autoestima, associada ao gaslighting e à manipulação, conduz a um enfraquecimento do sentido de identidade. A vítima pode deixar de reconhecer os seus próprios desejos, necessidades e valores, vivendo em função do narcisista. Esta perda do "eu" é uma das consequências mais demolidoras, pois obriga a um processo longo e difícil de reconstrução pessoal, muitas vezes apenas possível com apoio terapêutico especializado.
Deste modo, as violações de limites, o flirt público e as infidelidades não são incidentes isolados, mas engrenagens de uma máquina relacional que produz devastação emocional e psicológica. O impacto é profundo, prolongado e requer reconhecimento clínico cuidadoso para que a vítima possa iniciar um processo de recuperação.
Quando Filipe conheceu Clara, sentiu-se imediatamente cativado pela sua presença. Havia nela uma energia magnética, uma forma de falar que prendia a atenção de todos à sua volta. Nos primeiros meses, Filipe acreditou ter encontrado alguém que, além de atraente, possuía uma inteligência e charme incomuns. Clara parecia atenciosa, curiosa sobre a vida dele e sempre pronta para o apoiar nos seus projetos. No entanto, com o tempo, pequenas fissuras começaram a surgir na imagem perfeita que ela cuidadosamente projetava.
Tudo começou em situações sociais aparentemente inofensivas. Num jantar com amigos, Clara inclinou-se de forma sugestiva para falar com um colega de Filipe, tocando-lhe no braço enquanto ria de forma exagerada a cada comentário dele. Filipe sentiu um desconforto subtil, mas preferiu ignorar, dizendo a si mesmo que não queria parecer possessivo ou inseguro. Clara, como se tivesse pressentido a hesitação dele, olhou-o rapidamente e sorriu, como quem diz "não há motivo para preocupação".
Esse padrão repetiu-se em várias ocasiões. Em festas, Clara mantinha olhares prolongados com estranhos, iniciava conversas com um toque de intimidade desnecessário e, não raras vezes, elogiava abertamente o aspeto físico ou o charme de outros homens, mesmo com Filipe ao lado. Quando ele, num tom calmo, lhe comentou que certas atitudes o deixavam desconfortável, Clara respondeu com uma gargalhada quase indulgente: "Estás a exagerar… eu sou apenas simpática, é o meu jeito. Não posso mudar quem sou." Em seguida, completava com um leve toque no rosto dele, como se quisesse encerrar a conversa ali, com a certeza de que a sua narrativa tinha prevalecido.
O que Filipe não percebia ainda era que aquelas interações não eram fruto de uma espontaneidade inocente. Clara sabia exatamente como provocar ciúmes de forma controlada, até encontrar o ponto em que Filipe começava a sentir-se ameaçado, mas sem ultrapassar o limite que a fizesse parecer claramente culpada. Quando ele reagia, ela revertia a situação com mestria: "Estás tão inseguro… isso afasta-me." Ao colocar a questão dessa forma, não só anulava a legitimidade do desconforto dele, como o fazia sentir-se culpado por estragar o momento ou por não confiar nela.
Com o tempo, Filipe começou a notar que esse comportamento não se limitava a contextos sociais presenciais. Clara também recorria às redes sociais para manter o jogo ativo. "Likes" frequentes em fotografias insinuantes de conhecidos, comentários com duplo sentido e até trocas de mensagens privadas que, quando descobertas, eram sempre justificadas como apenas conversa ou amizade. Quando confrontada, Clara adotava um tom de surpresa e leve indignação: "Não acredito que estás a desconfiar de mim por causa disto… depois de tudo o que faço por nós." Era uma inversão perfeita, transformando Filipe de parceiro magoado em acusador irracional.
A par do flirt público, Clara violava repetidamente limites interpessoais. Fazia comentários depreciativos sobre Filipe em frente a terceiros, sempre mascarados de brincadeiras. Se ele chegava atrasado, comentava em voz alta: "Ele nunca consegue ser pontual, já me habituei…" Se ele errava um detalhe numa conversa, corrigia-o imediatamente, com um sorriso que mais parecia um golpe suave: "Não foi assim que aconteceu, mas pronto, a tua memória às vezes prega partidas." Para os outros, aquilo podia soar como humor ou intimidade de casal mas para Filipe, eram pequenas facadas que minavam a sua autoconfiança.
Em privado, quando ele tentava estabelecer limites claros, Clara reagia com uma mistura de incredulidade e desafio. "Então queres controlar como eu falo, com quem falo e como interajo? Isso é possessivo, Filipe. Não posso viver numa prisão emocional." Com esta retórica, Clara conseguia inverter novamente os papéis, posicionando-se como vítima de uma suposta tentativa de controlo, quando na verdade era ela quem testava constantemente até onde poderia ir sem consequências.
Com o passar dos meses, Filipe começou a sentir os efeitos dessa dinâmica. Desenvolveu uma insegurança constante, a sensação de que precisava melhorar para merecer a atenção exclusiva de Clara. Evitava confrontos para não desencadear discussões desgastantes e começou a recusar convites para eventos sociais onde temia que a mesma cena se repetisse. A vida dele foi-se tornando mais silenciosa, mais limitada, enquanto Clara continuava a brilhar publicamente, colecionando sorrisos, olhares e atenções.
As consequências emocionais tornaram-se evidentes: ansiedade antes de cada evento social, noites mal dormidas repletas de pensamentos circulares sobre o que tinha visto ou ouvido, e uma crescente sensação de que estava a perder-se de si próprio. Em momentos de maior lucidez, Filipe perguntava-se se não estaria a exagerar. Afinal, Clara parecia tão convincente quando dizia que tudo não passava de mal-entendidos e que ele estava a projetar inseguranças. Essa dissonância cognitiva corroía-lhe o discernimento.
Quando finalmente procurou ajuda de um terapeuta, Filipe começou a compreender que não estava perante gestos inocentes, mas sim diante de uma estratégia deliberada. O flirt público e as violações de limites não eram acasos, mas sim ferramentas cuidadosamente usadas para manter poder e controlo, alimentando a autoestima de Clara à custa da dele. Reconhecer isso foi doloroso, mas também o primeiro passo para recuperar a clareza e começar a reconstruir a sua autoestima.
Clara, no entanto, continuou o seu jogo em novos círculos, como se nada tivesse acontecido. Para quem olhava de fora, era apenas uma mulher encantadora, divertida e socialmente envolvente. Para Filipe, e para quem já tivesse sentido aquele padrão na pele, ficava claro que por trás do sorriso havia um guião bem ensaiado, onde cada gesto, olhar e palavra tinham um propósito: manter-se no centro, mesmo que para isso fosse necessário apagar a luz de quem estivesse ao seu lado.
Uma das características subtis da Perturbação Personalidade Narcisista (PPN) é a forma como o narcisista estrutura as suas relações com os outros como transações, em vez de ligações autênticas. Neste contexto, mesmo comportamentos que aparentam ser generosos ou altruístas, como dar presentes, ajudar financeiramente ou oferecer apoio emocional, são, na realidade, instrumentos de manipulação e controlo, projetados para obter algo em troca: admiração, submissão, influência ou validação. Este tipo de relação é designado como relação transacional: a interação com o outro é percecionada pelo narcisista como uma troca de benefícios, em que cada gesto é medido, contabilizado, e mais tarde usado como moeda emocional. Não se trata de partilha genuína, mas de investimentos estratégicos em poder emocional.
Contudo, os relacionamentos transicionais com um narcisista frequentemente não se associam a presentes exagerados ou ofertas condicionadas que o narcisista dá para manter poder e criar dívidas emocionais, mas a uma vertente ainda mais insidiosa: a relação de extração unilateral, onde o narcisista quase nunca oferece nada e a vítima acaba por ser a única a investir, manter e sustentar a dinâmica. Neste modelo, o narcisista pode usufruir de uma vida confortável, acesso a recursos e apoio contínuo, sem qualquer intenção real de contribuir. Ao contrário de parceiros equilibrados, que partilham responsabilidades e procuram reciprocidade, o narcisista vê o investimento da vítima como um direito adquirido, algo que lhe é devido simplesmente por existir ou por fazer parte da relação. Neste tipo de dinâmica, frequentemente a vítima sustenta financeiramente, emocionalmente e logisticamente o parceiro, acreditando que esse investimento será valorizado. O narcisista, no entanto, vê o apoio como um direito adquirido e, no momento em que já não precisa dele, descarta a fonte de suprimento sem remorsos, reescrevendo a história a seu favor.
Numa relação saudável, as pessoas dão e recebem com base na empatia, no afeto, na reciprocidade natural e na confiança. Há um equilíbrio fluido, ora um apoia mais, ora o outro, mas sem contabilização rígida. Para o narcisista, no entanto, as interações humanas são vistas sob uma lente utilitarista: "O que ganho com esta pessoa?", "Se lhe fizer um favor, poderei exigir algo depois?", "Esta pessoa vai elevar o meu status, imagem ou autoestima?", "Como posso colocá-la em dívida emocional?"
Mesmo gestos afetivos, como elogios, conselhos ou presentes, são dados com intenção oculta e expectativas específicas de retorno. A ausência de retorno (ou o retorno "insuficiente") gera ressentimento, frieza ou até punição emocional. O narcisista adora dar presentes que parecem generosos, mas que escondem motivações profundamente egoístas. Estes gestos têm diversas finalidades: exibir poder financeiro ou superioridade moral, obter validação pública ("ele é tão generoso"), colocar o outro em dívida, garantir lealdade ou submissão futura, corrigir uma ofensa ou desvio de comportamento ("vê como sou bom para ti") e recompensar comportamentos desejados (reforço intermitente).
As vítimas de narcisistas frequentemente relatam sentir-se culpadas ou em dívida, mesmo quando o narcisista foi abusivo. Isto ocorre porque os gestos generosos são constantemente lembrados, contabilizados e cobrados: "Depois de tudo o que fiz por ti?", "Comprei-te aquilo, e é assim que me agradeces?", "Dei-te tudo, e nem um obrigado."
Com o tempo, estas frases minam a autoestima da vítima, criando um ciclo de dependência emocional: o medo de não retribuir suficientemente conduz a submissão, autocensura e auto-sacrifício. Este padrão é especialmente visível em relações parentais narcisistas, onde os filhos são pressionados a compensar os sacrifícios dos pais com obediência e gratidão eterna. O narcisista encara as relações como investimentos com retorno esperado. Se esse retorno não chega, seja em forma de obediência, admiração ou conveniência, ele pode reagir com: retirada emocional ("Já não mereces os meus gestos"), ressentimento passivo-agressivo, gaslighting ("Tu nunca estás satisfeito"), punições subtis ou flagrantes, e quebra do vínculo com justificação moralista ("Não valorizas nada").
As relações com indivíduos com PPN raramente assentam em altruísmo genuíno. Em vez disso, são moldadas por uma lógica de controlo, dívida emocional e dominação simbólica. A generosidade do narcisista é, muitas vezes, uma máscara que encobre a sua incapacidade de empatia e o seu profundo medo de vulnerabilidade. A pessoa alvo poderá proteger-se de várias formas, nomeadamente ao recusar entrar na lógica da dívida emocional pois um presente não implica submissão, ao avaliar a intenção por detrás dos gestos ("Está a ser usado como moeda?"), ao estabelecer limites claros ("Agradeço, mas não quero que isso condicione o futuro"), ao aceitar com discernimento uma vez que dizer "não" a presentes poderá ser um ato de auto-proteção, ao fortalecer a autonomia emocional e financeira para quebrar a dependência, e ao evitar entrar na contabilidade emocional mantendo o foco na autenticidade.
Para o narcisista, as relações interpessoais não são vínculos de afeto genuíno mas sim transações. O que importa não é a conexão emocional ou o bem-estar mútuo, mas sim o que se pode extrair do outro. Embora este padrão possa estar associado a presentes exagerados ou ofertas condicionadas, que o narcisista dá para manter poder e criar dívidas emocionais, existe uma vertente ainda mais insidiosa: a relação de extração unilateral, onde o narcisista quase nunca oferece nada e a vítima acaba por ser a única a investir, manter e sustentar a dinâmica.
Para a vítima, pode parecer que existe um acordo tácito: "Eu invisto em ti, tu investes em mim". Mas para o narcisista, essa equação não existe. Na sua mente, o parceiro serve para suportar, apoiar e servir, enquanto ele se posiciona como beneficiário permanente. O investimento da vítima pode ser de vários tipos, nomeadamente: a) financeiro através do pagamento da renda, eletricidade, água, gás, alimentação, cuidados médicos, e até custos associado aos animais de estimação (frequentemente do narcisista mas mantidos pela vítima), b) doméstico com a limpeza integral da casa, arrumação, manutenção, compra de móveis e eletrodomésticos para espaços onde o narcisista reside mas que nunca gere ou sustenta, c) formativo providenciando ajuda com estudos, formações, cursos especializados (e.g. informática, auditorias, estatística), revisão de trabalhos, criação de portfólios, aconselhamento profissional, d) emocional através da presença constante, afeto, validação, paciência perante explosões emocionais ou períodos de frieza, escuta ativa mesmo quando não há reciprocidade, e e) logística ao gerir burocracias, marcar consultas, organizar documentos, resolver problemas práticos que o narcisista evita deliberadamente.
Este tipo de exploração pode durar meses ou anos, sustentado por promessas vagas de que eventualmente o narcisista irá retribuir, algo que raramente acontece. Pelo contrário, quando a vítima começa a questionar a falta de retorno, o narcisista recorre a manipulações emocionais como a culpabilização ("Estás a dizer que só fazes as coisas à espera de algo em troca?"), vitimização ("Se eu pudesse, ajudava mais, mas agora não consigo…"), desvalorização ("Não foi assim tanto, exageras sempre."), e gaslighting ("Tu é que disseste que querias ajudar. Eu nunca te pedi nada.").
Quando o narcisista decide terminar a relação, o investimento maciço da vítima não só é ignorado como é ativamente distorcido. Comentários como "E agora sou obrigada a ficar contigo?" ou "Nunca te pedi para fazeres nada" servem para apagar anos de esforço e criar uma narrativa onde o narcisista é a parte lesada ou presa, e a vítima é retratada como carente, controladora ou interesseira.
Este tipo de resposta não é acidental. Funciona para proteger o ego do narcisista e evitar qualquer reconhecimento de dívida moral ou emocional. Admitir a importância da contribuição da vítima seria admitir dependência, e isso é incompatível com a sua autoimagem grandiosa.
Aprender a identificar esta lógica transacional é essencial para qualquer pessoa que deseje libertar-se de ciclos relacionais tóxicos e recuperar a soberania sobre o seu valor e dignidade.
Quando Alice conheceu Pedro, não imaginava que a relação se tornaria um dos capítulos mais desgastantes e dolorosos da sua vida. Alice, uma mulher profissionalmente estável, independente e com sentido prático, tinha passado anos a construir a sua segurança financeira e emocional. Pedro, por outro lado, vivia de forma mais instável: ocupava um quarto arrendado numa casa partilhada, e falava constantemente de ambições para o futuro.
Nos primeiros encontros, Pedro parecia encantador: atento, comunicativo, sempre com um discurso sobre projetos, cursos que queria fazer e metas profissionais ambiciosas. Na altura, Pedro estava inscrito num curso falando com entusiasmo de áreas como ciência de dados e tecnologia, e descrevia-se como alguém em fase de investimento em si próprio, expressão que Alice interpretou como sinal de visão de futuro. Alice, habituada a apoiar as pessoas de quem gostava, sentiu-se motivada a incentivar aquele potencial. A química inicial e a forma como Pedro parecia interessado e recetivo ao afeto fizeram-na acreditar que poderiam crescer juntos.
Alguns meses depois de começarem a namorar, Pedro começou a passar mais tempo em casa de Alice, até que, gradualmente, praticamente deixou o quarto arrendado que pagava. O espaço onde vivia antes era modesto, com pouca privacidade e longe do seu local de estudo. Pedro começou a sugerir que seria mais prático arrendarem um apartamento só para os dois, onde ele pudesse estudar melhor e onde pudessem ter mais conforto.
A proposta parecia razoável: um espaço a dois, um ninho onde poderiam partilhar o dia-a-dia. Mas na prática, quando a conversa sobre finanças surgiu, Pedro revelou que não tinha condições para contribuir de forma significativa para a renda. Falou sobre "ocar-se no estudo e que, no futuro, quando tivesse um emprego melhor, iria compensar. Alice, confiando no compromisso que acreditava estar a construir, decidiu assumir integralmente o arrendamento.
A escolha do apartamento foi feita em conjunto, mas as condições foram suportadas exclusivamente por Alice. Ela pagava não só a renda, mas também todas as contas associadas: eletricidade, água, gás, internet, alimentação e até as despesas com os gatos que, apesar de terem sido escolhidos e trazidos por Pedro, ficavam sob inteira responsabilidade dela.
O dia-a-dia no apartamento seguia um padrão que, inicialmente, Alice interpretou como fase temporária. Pedro passava muitas horas no computador, a estudar ou a trabalhar em tarefas relacionadas com os cursos. Alice cuidava de praticamente tudo: limpeza, compras, arrumação, cozinha e manutenção. Apesar de viver no espaço e usufruir dele em pleno, Pedro não participava ativamente nas tarefas domésticas.
A justificação era sempre a mesma: "estou a investir no nosso futuro". Esta frase, repetida vezes sem conta, funcionava como um escudo contra qualquer questionamento. Com o tempo, Alice começou a sentir um peso crescente, não apenas financeiro, mas também emocional. Ela não estava apenas a sustentar a casa, estava a sustentar o projeto de vida de Pedro.
Havia, no entanto, pequenos gestos que Pedro fazia para manter o vínculo: comprava ocasionalmente um presente, preparava uma refeição especial de forma esporádica, ou elogiava Alice perante amigos e familiares, destacando como ela era incrível e apoiante. Estes momentos funcionavam como reforço intermitente, típicos em relações abusivas, mantendo viva a esperança de Alice de que, um dia, o equilíbrio surgisse.
Após alguns anos de convivência no apartamento pago por Alice, Pedro terminou o curso e conseguiu um emprego mais estável. Rapidamente, começou a falar sobre comprar casa. Alice apoiou a ideia. Contudo, ficou surpresa quando percebeu que o plano não incluía, de forma alguma, a compra de um imóvel em conjunto. Pedro procurou, encontrou e comprou uma casa apenas em seu nome, sem sequer considerar envolver Alice na decisão ou propriedade.
O simbolismo foi esmagador. Durante anos, Alice tinha sido a base financeira e logística que lhe permitiu estudar e chegar àquele ponto. No entanto, quando chegou a hora de dar um passo significativo, Pedro escolheu garantir um ativo só para si. Para piorar, não se mudou para lá imediatamente, preferia continuar a viver no apartamento de Alice, poupando assim nas despesas enquanto pagava a nova hipoteca com facilidade.
Outro padrão começou a emergir: sempre que havia discussões ou que Pedro tinha ataques de raiva, ele ia para a sua casa. Ficava lá alguns dias ou semanas, até que regressava ao apartamento de Alice como se nada tivesse acontecido. O ciclo repetia-se: períodos de convivência relativamente pacífica, explosões de irritação ou frieza, afastamento para a sua casa e posterior retorno.
Este comportamento reforçava a assimetria: Pedro tinha sempre uma base alternativa para onde fugir, deixando Alice emocionalmente desamparada e financeiramente sobrecarregada. A casa comprada não era um lar partilhado mas sim um refúgio estratégico para manter o controlo da relação.
Ao longo dos anos, Alice não foi apenas uma parceira amorosa: foi também mentora, tutora e apoio técnico de Pedro. Ajudou-o em todas as áreas: explicações de informática, noções de estatística, preparação para auditorias, utilização avançada de ferramentas de Office e até conceitos de ciência de dados e inteligência artificial. Muitas vezes, Alice sacrificava o seu próprio tempo livre para rever trabalhos, corrigir erros e até criar apresentações para Pedro.
Este investimento não era apenas material, era também intelectual. Alice estava a contribuir diretamente para o sucesso académico e profissional de Pedro, que eventualmente se tornou efetivo no trabalho e ganhou estabilidade.
Com a sua vida profissional consolidada e um imóvel próprio, Pedro começou a distanciar-se emocionalmente. A comunicação tornou-se fria, as críticas aumentaram e a gratidão desapareceu. Pouco tempo depois, Alice descobriu que Pedro tinha iniciado uma nova relação. Não apenas isso, rapidamente engravidou a nova parceira e assumiu publicamente a nova família.
Para Alice, o golpe não foi apenas a traição ou o abandono, mas a forma como Pedro reescreveu a narrativa: desvalorizou anos de apoio, minimizou o impacto financeiro e emocional que ela teve na sua vida, e chegou a dizer frases como: "Nunca te pedi para fazer nada. Fizeste porque quiseste.", "E agora sou obrigado a ficar contigo?".
A história de Alice foi apagada do discurso de Pedro. Na nova versão, ele era um homem que lutou sozinho para chegar onde estava. Alice ficou sozinha no apartamento que ainda arrendava, com dívidas acumuladas de anos de despesas partilhadas apenas no nome, e com a sensação de ter sido usada de forma calculada. A perda não foi apenas financeira: foi a destruição de uma narrativa de vida construída a dois e a constatação de que o compromisso que pensava existir nunca passara de uma ilusão.
O impacto emocional prolongou-se: sentimentos de culpa, vergonha, raiva e desorientação marcaram o pós-relacionamento. Foram necessários anos de reflexão e apoio psicológico para que Alice compreendesse que o padrão vivido era típico de relações com traços narcisistas, baseadas em extração, ausência de reciprocidade e reescrita da história no final.
A compartimentalização é uma das ferramentas mais refinadas e perigosas utilizadas por indivíduos com traços narcisistas. Trata-se da capacidade de manter caixas separadas de interações sociais, cada uma cuidadosamente moldada e isolada das restantes, como se a vida fosse uma série de palcos independentes, com cenários, diálogos e figurinos distintos. Ao dominar essa técnica, o narcisista consegue projetar imagens completamente diferentes de si próprio perante públicos diferentes, evitando que contradições sejam expostas e que narrativas paralelas colidam.
No centro desta estratégia encontra-se a crença de que cada grupo (e.g. colegas de trabalho, amigos, familiares, parceiros românticos, conhecidos de atividades extracurriculares) existe num vácuo social. O narcisista atua partindo do princípio de que as pessoas nesses círculos raramente se cruzarão ou trocarão informações relevantes. É precisamente nesta ausência de interligação que ele vê a oportunidade de moldar a própria imagem de acordo com as necessidades de cada contexto. No ambiente profissional, pode ser o colega prestativo, paciente e colaborador, no círculo de amigos de lazer, surge como o espírito livre, descontraído e sem filtros, na família, apresenta-se como o elemento responsável e equilibrado. Cada grupo vê somente uma versão cuidadosamente editada.
O efeito dessa fragmentação não é apenas a preservação de reputações distintas, mas também a possibilidade de manipular perceções de forma quase cirúrgica. A compartimentalização permite criticar, desvalorizar e sabotar alguém num grupo, ao mesmo tempo que se mantém uma fachada de cordialidade ou mesmo apoio noutro. Por exemplo, um colega de trabalho pode ser discretamente minado no ambiente profissional através de insinuações sobre a sua competência, enquanto, num contexto social partilhado com esse mesmo colega, o narcisista aparenta ser seu amigo ou defensor. Deste modo, sem que as vítimas consigam ligar os pontos, a imagem pública da pessoa vai sendo corroída num espaço, enquanto, noutro, o agressor preserva o capital relacional para evitar suspeitas.
Um dos ingredientes essenciais para a eficácia desta técnica é o espelhamento (mirroring) que consiste na habilidade de espelhar comportamentos, opiniões e valores do grupo-alvo para ganhar aceitação e confiança. O narcisista adapta o discurso, o tom, os interesses e até a postura corporal consoante o público. Em grupos mais formais, adota uma linguagem cuidada, referências intelectuais e uma atitude ponderada. Em grupos mais informais, abraça a gíria, o humor ligeiro e até comportamentos de risco, se isso lhe garantir maior integração. Esta plasticidade social não é sinal de versatilidade saudável, mas sim um mecanismo calculado para maximizar a influência e minimizar a exposição.
A compartimentalização também se manifesta no contraste entre o que o narcisista diz sobre terceiros em diferentes grupos. Pode elogiar publicamente uma pessoa num espaço onde esse elogio seja bem visto, mas, noutro contexto, sem a presença dessa pessoa, adotar um discurso de crítica e desprezo. Esta duplicidade não é acidental sendo parte de uma engenharia social que tem por objectivo enfraquecer potenciais ameaças, manipular alianças e manter o controlo narrativo.
A gravidade deste comportamento reside no impacto cumulativo sobre as vítimas. Muitas vezes, estas percebem apenas fragmentos do que está a acontecer. Notam inconsistências na forma como são tratadas ou como terceiros as abordam, mas têm dificuldade em entender a origem dessas perceções distorcidas. Sem acesso ao outro palco onde as críticas e as narrativas alternativas estão a ser disseminadas, as vítimas acabam por duvidar das próprias impressões ou por internalizar mensagens negativas, minando a autoestima.
Por fim, é importante salientar que a compartimentalização não é somente uma técnica de autopreservação do narcisista. É também uma arma ofensiva, usada ativamente para manipular relações, manter vantagens e explorar vulnerabilidades. Quando combinada com outras estratégias, como o gaslighting e o reforço intermitente, a compartimentalização torna-se uma força invisível mas avassaladora, capaz de corroer redes de confiança inteiras sem que, à superfície, se observe um conflito aberto.
Anabela tinha 38 anos, uma presença magnética e uma facilidade impressionante para se adaptar a qualquer ambiente. No escritório, era vista como a colega dedicada, sempre pronta a ajudar e a partilhar créditos nos projetos. Tinha um sorriso cordial, lembrava-se dos aniversários e, por vezes, levava bolos caseiros para partilhar com a equipa. Ninguém imaginava que, fora daquele ambiente, algumas das mesmas pessoas que elogiava eram alvo de comentários calculados e depreciativos.
Carla, uma colega que trabalhava diretamente com Anabela, começou a sentir que algo estranho se passava. No início, não passava de uma sensação vaga. No ginásio que ambas frequentavam, um grupo de amigos em comum começou a fazer-lhe perguntas curiosas sobre alegadas falhas no trabalho, detalhes que só poderiam ter vindo de alguém do escritório. Mas, no ginásio, Anabela era outra pessoa: descontraída, divertida, quase cúmplice de Carla. Ali, fazia questão de partilhar risos, confidências e histórias leves. Esse contraste entre a Anabela do trabalho e a Anabela do ginásio parecia impossível de conciliar, até porque nos momentos de convívio ela se mostrava genuinamente atenciosa.
O que Carla não sabia era que Anabela usava cada ambiente como palco para desempenhar um papel específico. No escritório, ao mesmo tempo que cultivava a imagem de boa colega, insinuava de forma subtil que Carla não estava a corresponder às expectativas da chefia. Nunca eram acusações diretas, mas comentários disfarçados de preocupação: "Tenho reparado que a Carla anda muito distraída, será que está a conseguir dar conta de tudo?" Essas frases, ditas no momento certo, plantavam dúvidas nos superiores e criavam uma sombra sobre a reputação de Carla.
Já no ginásio, Anabela fazia mirroring do grupo. Adotava o tom descontraído, interessava-se por temas de treino, comentava dietas e participava em piadas internas. Com Carla, mostrava-se solidária e, por vezes, até insinuava que a defendia no trabalho. "Sabes, há pessoas que não entendem o teu estilo, mas eu explico sempre que é só uma questão de método.”" Essa frase, aparentemente reconfortante, era, na verdade, um lembrete velado de que havia críticas sobre ela, críticas que Anabela ajudara a disseminar noutro contexto.
O isolamento de Carla foi gradual. No trabalho, começou a notar que colegas evitavam confiar-lhe tarefas importantes ou a excluíam de certas reuniões. No ginásio, embora mantivesse uma aparência de amizade, Anabela começava a partilhar pequenas anedotas que ridicularizavam "certas manias" de Carla, sempre sem nomear diretamente, mas suficientemente sugestivas para que o grupo percebesse de quem falava. O mais perverso era que, como os dois grupos raramente se cruzavam, ninguém via a duplicidade de forma clara.
A compartimentalização de Anabela estendia-se também à família e a outros círculos. Com os pais, era a filha exemplar, dedicada ao bem-estar dos outros. Com alguns amigos de longa data, pintava-se como vítima de colegas invejosos e de um ambiente de trabalho tóxico, omitindo o papel ativo que tinha na criação dessa mesma tensão. Assim, mantinha intacta a sua rede de apoio, evitando qualquer suspeita de que era ela quem plantava as sementes do conflito.
Quando, meses depois, Carla confrontou Anabela sobre os rumores que circulavam, a resposta foi um misto de surpresa fingida e ligeiro desdém. "Carla, não faço ideia de onde isso vem. No ginásio, só falamos de coisas leves. Se alguém te disse que fui eu, estão a criar intrigas." O tom era suficientemente convincente para deixar Carla a duvidar da própria perceção.
A situação prolongou-se até Carla começar a juntar peças: um comentário aqui, uma coincidência ali, o padrão de distorção a repetir-se. Mesmo assim, nunca conseguiu expor Anabela de forma inequívoca, pois as versões eram sempre adaptadas ao público e cuidadosamente isoladas. A reputação de Anabela manteve-se intacta em todos os círculos, enquanto a de Carla sofreu fissuras difíceis de reparar.
Este caso ilustra como a compartimentalização, quando aliada ao mirroring e à manipulação narrativa, cria uma teia quase impossível de desmontar. A vítima sente-se perdida entre versões incompatíveis da mesma pessoa e, muitas vezes, acaba por internalizar a culpa, sem compreender que está presa numa rede de realidades cuidadosamente fabricadas.
A dinâmica de abuso narcisista raramente acontece num vazio. Para além da interação direta entre vítima e agressor, existe quase sempre uma rede de pessoas que, de forma consciente ou inconsciente, contribui para a perpetuação do ciclo abusivo. Entre estas figuras destacam-se os facilitadores, também conhecidos como "enablers", e os cúmplices involuntários, popularmente descritos na literatura sobre abuso psicológico como "flying monkeys". Ambos desempenham um papel crucial na manutenção do poder e do controlo do indivíduo com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), ainda que a sua atuação varie em intenção, consciência e impacto.
O facilitador é alguém que, por medo, dependência, comodismo ou por uma visão distorcida da realidade, escolhe não confrontar o comportamento abusivo do narcisista. Muitas vezes, esta atitude nasce de uma lógica de sobrevivência psicológica: "É mais fácil ceder do que enfrentar". O enabler não é necessariamente uma pessoa mal-intencionada, mas a sua passividade, racionalização ou minimização do problema serve para legitimar o narcisista e prolongar a situação de abuso.
Um exemplo comum surge em contextos familiares. Quando um dos progenitores apresenta traços narcisistas e exerce abuso emocional sobre os filhos, o outro pode assumir a posição de enabler ao não intervir, justificando a conduta com frases como "ele só está cansado", "não ligues, é o jeito dele" ou "não vale a pena contrariá-lo". Apesar da intenção aparentemente conciliadora, esta postura acaba por validar o agressor, ao mesmo tempo que desprotege a vítima. A omissão torna-se, assim, uma forma de cumplicidade indireta.
No contexto profissional, o enabler pode ser aquele colega ou superior hierárquico que observa o narcisista a difamar ou sabotar um colega, mas escolhe não intervir para não se expor. O medo de represálias ou a vontade de manter uma imagem de neutralidade transformam-se em forças paralisantes. Ainda que não difame ativamente, o enabler contribui para a solidificação do poder do narcisista ao silenciar-se perante a injustiça.
Psicologicamente, os enablers muitas vezes vivem numa tensão entre a perceção do abuso e a necessidade de preservação do vínculo. Podem sentir culpa ou desconforto, mas racionalizam a sua passividade como uma forma de evitar maiores conflitos. O preço desta postura, contudo, é elevado: reforçam a posição do abusador e, em última análise, comprometem o bem-estar da vítima e até a sua própria integridade moral.
Diferente do enabler, que se mantém sobretudo passivo, o cúmplice involuntário participa ativamente na dinâmica de abuso, muitas vezes sem plena consciência de que se tornou uma extensão do narcisista. O termo "flying monkey" deriva do filme "O Feiticeiro de Oz", onde os macacos voadores obedecem cegamente à bruxa malvada (Wicked Witch of the West), executando as suas ordens sem questionar. Na psicologia do abuso, esta metáfora descreve aqueles que são manipulados pelo narcisista para atacar, vigiar, difamar ou isolar a vítima.
Os flying monkeys podem surgir em qualquer círculo social: familiares, amigos, colegas ou até membros de comunidades religiosas ou digitais. Através de narrativas cuidadosamente construídas, o narcisista apresenta-se como vítima ou como figura moralmente superior, convencendo os outros da sua versão dos factos. O cúmplice, acreditando estar a proteger ou a apoiar alguém injustiçado, passa a difundir boatos, confrontar a vítima ou retirar-lhe apoio emocional. Muitas vezes, fá-lo em nome da preocupação, dizendo frases como "o que ouço dizer de ti é preocupante, talvez devas procurar ajuda". No fundo, tornou-se porta-voz da manipulação do narcisista.
O caráter involuntário desta cumplicidade não diminui o seu impacto destrutivo. Ao serem seduzidos pela narrativa distorcida, os flying monkeys reforçam o isolamento social da vítima e minam a sua credibilidade. São utilizados como armas indiretas que permitem ao narcisista manter as mãos aparentemente limpas. Ao mesmo tempo, funcionam como escudo de proteção, já que a vítima passa a sentir-se atacada por vários lados, em vez de identificar claramente um único agressor.
Embora enablers e flying monkeys desempenhem papéis distintos, existe frequentemente uma sobreposição entre estas figuras. Um facilitador passivo pode, em certos momentos, ser arrastado para uma participação mais ativa, tornando-se cúmplice involuntário. O inverso também acontece: alguém inicialmente envolvido na difamação pode recuar para uma posição de neutralidade, mantendo-se apenas como espectador silencioso. Esta oscilação reflete a complexidade das dinâmicas interpessoais em torno do narcisista, onde o medo, a manipulação e a sedução moldam continuamente os comportamentos.
Uma distinção fundamental reside no grau de consciência. O enabler pode ter uma perceção parcial do abuso, mas evita agir por conveniência ou autopreservação. Já o flying monkey atua convencido de que serve uma causa legítima, sem perceber que se tornou instrumento de manipulação. Ambos, no entanto, partilham o mesmo resultado: ampliam o poder do narcisista e agravam o sofrimento da vítima.
Apesar da força destas dinâmicas, é importante destacar que tanto enablers como flying monkeys podem, em certos contextos, tomar consciência do papel que desempenham. Esta conscientização pode emergir da observação de incoerências no comportamento do narcisista, do confronto com provas objetivas ou da empatia pelo sofrimento evidente da vítima. Quando isso acontece, existe a possibilidade de quebra do círculo de manipulação. Contudo, este despertar raramente ocorre de forma espontânea, pois exige coragem para enfrentar o narcisista e assumir o erro de ter sido cúmplice.
Do lado da vítima, compreender a existência destas figuras e os mecanismos de manipulação que as movem é fundamental para reduzir o impacto do abuso. Reconhecer que o enabler age por medo ou cegueira, e que o flying monkey atua sob manipulação, ajuda a deslocar a culpa e a evitar uma interiorização destrutiva da rejeição. A proteção da própria integridade passa, em muitos casos, por redefinir vínculos e estabelecer novos círculos de apoio fora do alcance do narcisista.
A existência de enablers e flying monkeys agrava de forma exponencial os efeitos do abuso narcisista. O que poderia ser uma relação de poder dual transforma-se numa rede de pressão social, emocional e até profissional. A vítima não enfrenta apenas o agressor, mas também aqueles que, intencionalmente ou não, reforçam a sua posição. Este cerco psicológico gera sentimentos de impotência e desamparo. Em vez de encontrar apoio no seu círculo próximo, a vítima vê portas a fecharem-se, reputações a desmoronarem-se e relações a dissolverem-se.
O isolamento é um dos efeitos mais destruidores. Quando amigos, familiares ou colegas se afastam, acreditando na versão fabricada pelo narcisista, a vítima perde referências de validação externa. Esta ausência de testemunhas solidárias intensifica o trauma e dificulta o processo de recuperação. Mais ainda, o impacto pode estender-se ao nível profissional, com danos irreversíveis na carreira, na imagem pública e na rede de contactos.
Uma das estratégias mais eficazes utilizadas pelos narcisistas para recrutar enablers e flying monkeys é a manipulação da moralidade e da empatia. Ao apresentarem-se como vítimas, como figuras sacrificiais ou como guardiões de valores elevados, conseguem despertar nos outros um sentimento de lealdade e de missão. Esta manipulação emocional transforma pessoas bem-intencionadas em cúmplices de campanhas destrutivas. A empatia, que deveria proteger a vítima, é desviada em benefício do agressor. Este mecanismo explica porque tantas vítimas relatam sentir-se revitimizadas não apenas pelo narcisista, mas também por aqueles que acreditavam ser amigos ou aliados. A traição implícita nesta descoberta tem um peso psicológico profundo, intensificando o trauma e prolongando o luto pela perda de relações significativas.
Débora cresceu numa família aparentemente funcional, marcada por tradições fortes e laços de proximidade. O pai, um homem com traços narcisistas evidentes, centralizava a vida familiar em torno da sua autoridade, exigindo admiração, lealdade e obediência incondicional. As críticas eram constantes, sempre disfarçadas de orientações ou conselhos, e as manifestações de afeto, quando surgiam, eram condicionais, dependentes da conformidade de Débora às expectativas paternas. O espaço para a autonomia era praticamente inexistente: as escolhas de roupas, amizades e até interesses académicos eram filtrados pelo olhar controlador do progenitor.
Neste cenário, a mãe de Débora assumiu um papel característico de facilitadora. Embora testemunhasse diariamente os episódios de desvalorização, optava por minimizar a gravidade das situações, justificando o comportamento do marido com expressões como “é o feitio dele” ou “não vale a pena responder”. O silêncio e a passividade, embora nascidos de medo e habituação, tiveram o efeito de validar o agressor, reforçando a sua posição de poder. Para Débora, esta postura materna era confusa e dolorosa: ao mesmo tempo que percebia a injustiça das críticas, recebia da mãe a mensagem implícita de que não havia alternativa senão aceitar. Esta omissão configurou um dos primeiros fatores de vulnerabilidade psicológica, comprometendo a perceção de proteção e o desenvolvimento de confiança nas figuras parentais.
Com o passar do tempo, o impacto desta dinâmica tornou-se ainda mais claro quando Samuel entrou na vida de Débora. Ambos se conheceram no final da adolescência, num período em que ela procurava afirmar a sua identidade para além do controlo familiar. Samuel apresentou-se como um jovem carismático, atencioso e aparentemente compreensivo. No início da relação, investiu fortemente na fase de idealização, elogiando Débora pela sua sensibilidade, inteligência e dedicação. Este contraste em relação ao ambiente familiar gerou em Débora uma sensação de alívio e esperança, como se tivesse finalmente encontrado alguém capaz de reconhecer o seu valor intrínseco.
Contudo, à medida que a relação evoluiu, emergiram os traços narcisistas de Samuel. Gradualmente, a fase de idealização deu lugar à desvalorização, manifestada através de críticas subtis, manipulações emocionais e exigências crescentes. Débora, já condicionada pela experiência familiar, mostrou-se vulnerável a esta inversão: acreditava que, se cedesse ou se esforçasse mais, poderia recuperar o afeto inicial.
Neste ponto, a rede de facilitadores e cúmplices desempenhou um papel crucial. A família de Débora, ainda profundamente enredada na lógica patriarcal do pai, assumiu atitudes de enabler perante Samuel. Quando ela tentava partilhar as suas angústias, recebia respostas semelhantes às que ouvira na infância: “ele deve estar stressado”, “talvez estejas a exagerar”, “todos os casais discutem”. Esta postura não só negava a legitimidade da dor de Débora, como também reforçava a imagem de Samuel como um parceiro aceitável e digno de compreensão.
Por outro lado, alguns amigos comuns do casal tornaram-se verdadeiros flying monkeys. Seduzidos pelo discurso habilidoso de Samuel, que se apresentava como vítima de um relacionamento com uma mulher excessivamente sensível ou instável, passaram a confrontar Débora com críticas disfarçadas de preocupação: “já pensaste que talvez precises de ajuda?”, “o Samuel só quer o teu bem, mas parece que nunca estás satisfeita”. Através destes intermediários, Samuel conseguia amplificar o impacto do abuso, minando a credibilidade de Débora e isolando-a emocionalmente.
Este isolamento foi progressivamente intensificado. No seio familiar, a lealdade ao padrão de silêncio transmitido pela mãe perpetuava a ideia de que enfrentar o narcisista era inútil ou perigoso. No círculo social, os flying monkeys reproduziam as narrativas de Samuel, reforçando a imagem de que Débora era a verdadeira problemática da relação. Assim, a vítima encontrava-se encurralada entre a desproteção da família e a traição implícita dos amigos, sem conseguir identificar aliados claros.
Do ponto de vista psicológico, este cerco social e emocional teve efeitos devastadores. Débora desenvolveu um estado persistente de dissonância cognitiva, tentando conciliar a imagem idealizada de Samuel, reforçada pela memória da fase inicial da relação, com o comportamento abusivo atual. O reforço intermitente de Samuel, alternando momentos de carinho com períodos de frieza ou agressividade, funcionava como um condicionamento, semelhante ao observado em contextos de dependência química. O resultado foi um apego traumático, que dificultava qualquer tentativa de rutura.
O papel dos facilitadores e cúmplices foi determinante para prolongar este ciclo. Ao invés de encontrar validação e apoio nos outros, Débora recebia mensagens de dúvida, desvalorização e isolamento. A mãe, enquanto enabler, acreditava estar a proteger a filha ao evitar confrontos, mas na realidade alimentava o ciclo de abuso. Os amigos, enquanto flying monkeys, agiam sob manipulação, mas o efeito era o mesmo: aumentavam o poder de Samuel e reduziam a resistência de Débora.
Com o passar dos anos, a identidade de Débora foi-se esbatendo. Abandonou interesses pessoais, afastou-se de amizades genuínas e começou a acreditar que os defeitos apontados por Samuel e reforçados pelos outros eram reais. A erosão da autoestima e da autonomia levou-a a um estado de vulnerabilidade extrema, no qual a própria ideia de saída parecia impossível.
Este caso evidencia a complexidade das redes de cumplicidade em torno do abuso narcisista. Não se trata apenas da relação dual entre vítima e agressor, mas de um sistema alargado, no qual facilitadores e cúmplices desempenham papéis fundamentais na manutenção do ciclo. A história de Débora e Samuel demonstra como a manipulação de empatia, a racionalização do silêncio e a instrumentalização das relações sociais podem transformar uma vítima não apenas em alvo de um agressor, mas em alguém sitiado por uma comunidade inteira.
Em termos clínicos, compreender a presença e a função destas figuras é essencial para a intervenção terapêutica. Débora não precisava apenas de quebrar a relação com Samuel, mas também de reconstruir o seu sistema de suporte, redefinindo laços e aprendendo a identificar os papéis de enablers e flying monkeys no seu percurso. O processo de cura exigiu, assim, não só a rutura com o agressor, mas também a ressignificação de vínculos e a construção de novos espaços de validação, fora do alcance da manipulação narcisista.
O pensamento dicotómico, também conhecido como "splitting", é uma das manifestações cognitivas e emocionais mais marcantes na Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Este fenómeno caracteriza-se pela incapacidade de integrar numa visão coerente e equilibrada as qualidades positivas e negativas de si próprio ou dos outros. A realidade é percebida em extremos opostos, como se não houvesse tonalidades intermédias: alguém é visto como absolutamente bom ou totalmente mau, como digno de veneração ou merecedor de desprezo. O mesmo sucede com o próprio narcisista, que oscila entre sentimentos de grandiosidade ilimitada e perceções de fragilidade intolerável.
Ao contrário de um processo natural de avaliação em que as pessoas reconhecem tanto virtudes como defeitos em si e nos outros, o narcisista tende a simplificar a experiência de forma radical e polarizada. Esta forma de pensar e sentir não é apenas uma preferência cognitiva, mas sim uma defesa psicológica profundamente enraizada, que procura proteger o ego do confronto com a ambivalência, a incerteza ou a frustração.
O splitting emerge desde cedo na vida emocional dos indivíduos com traços narcisistas, estando associado a dificuldades no desenvolvimento da capacidade de integrar experiências afetivas contraditórias. A criança que cresceu em ambientes marcados por validação condicional, rejeição ou negligência emocional, pode ter aprendido a categorizar as figuras de vinculação de forma binária: ora eram figuras ideais que ofereciam afeto e aprovação, ora eram figuras hostis ou ameaçadoras quando negavam atenção ou reconhecimento.
Na vida adulta, este padrão repete-se. O splitting funciona como uma defesa contra a ansiedade que advém da perceção de que uma mesma pessoa pode ser simultaneamente fonte de prazer e de frustração. Em vez de lidar com esta contradição, o narcisista resolve a tensão ao dividir o outro em "bom" ou "mau". Este processo mantém uma ilusão de controlo interno, mas compromete gravemente a qualidade das relações e a consistência da própria identidade.
No quotidiano, o pensamento dicotómico manifesta-se em ciclos de idealização e desvalorização. Quando alguém corresponde às necessidades do narcisista, oferecendo atenção, reconhecimento ou admiração, essa pessoa é vista como excecional, perfeita, única, indispensável. O narcisista pode expressar entusiasmo exagerado, demonstrando comportamentos de idolatria ou até de fusão emocional. Contudo, basta um pequeno desapontamento, uma crítica mínima ou uma falha em corresponder às expectativas, para que a perceção mude drasticamente. A mesma pessoa passa a ser vista como traidora, ingrata, manipuladora, sem valor.
Esta alternância radical confunde profundamente as vítimas, que se veem inicialmente colocadas num pedestal e, pouco tempo depois, lançadas ao abismo do desprezo. É comum que, após um episódio de desvalorização, o ciclo volte a repetir-se, recomeçando uma fase de idealização, sobretudo se a vítima procura justificar-se, agradar e recuperar a posição anterior. Este movimento cíclico contribui para o chamado "trauma bonding", em que a alternância de afeto e rejeição aprofunda a dependência emocional.
No contexto familiar, por exemplo, um narcisista pode tratar um dos filhos como a criança dourada (golden child), perfeita e sem defeitos, enquanto outro é designado como a ovelha negra, sempre errado, culpado ou inadequado. Estas categorizações não se baseiam em características objetivas, mas na função psicológica que cada papel desempenha na manutenção da estrutura interna fragmentada do narcisista.
O splitting não afeta apenas a perceção que o narcisista tem dos outros, mas também a perceção de si próprio. Internamente, oscila entre experiências de grandiosidade e sentimentos de inferioridade esmagadora. Num dia pode sentir-se invencível, mais inteligente e mais talentoso do que todos à sua volta, e no dia seguinte pode afundar-se em vergonha, autodepreciação e raiva, especialmente quando confrontado com falhas ou rejeições.
Esta oscilação gera uma identidade instável e fragmentada. O falso self grandioso procura dominar e ocultar as partes mais vulneráveis e inseguras, mas a pressão psicológica é constante. Sempre que o falso self é ameaçado, seja por uma crítica ou por uma perceção de falha, o narcisista pode recorrer ao splitting como forma de reorganizar rapidamente a realidade. Em vez de integrar a crítica como uma oportunidade de crescimento, o narcisista expulsa simbolicamente essa parte negativa, projetando-a no outro e classificando-o como "mau".
A nível relacional, o splitting gera ciclos destrutivos de aproximação e afastamento. As vítimas relatam frequentemente uma sensação de andar numa montanha-russa emocional. Num momento são vistas como especiais, insubstituíveis e idealizadas. No instante seguinte, qualquer deslize faz com que sejam alvo de acusações injustas, rejeição ou mesmo difamação.
Com o tempo, esta dinâmica desgasta profundamente as relações. Parceiros românticos, amigos ou colegas de trabalho sentem-se exaustos, confusos e emocionalmente drenados. A ausência de nuances torna impossível o desenvolvimento de relações estáveis, baseadas em confiança e aceitação mútua. Adicionalmente, o splitting está intimamente ligado a outras estratégias de manipulação, como o gaslighting e o reforço intermitente, aumentando a sensação de aprisionamento psicológico das vítimas.
No campo profissional, o splitting pode conduzir a mudanças bruscas de atitude. Um colega pode ser visto como o aliado perfeito numa semana, sendo depois rotulado como incompetente ou inimigo na seguinte. Este padrão não apenas cria climas de instabilidade e tensão, mas pode também conduzir à sabotagem de equipas inteiras, especialmente quando o narcisista ocupa cargos de liderança.
O impacto do splitting na vítima é profundo, uma vez que esta tende a internalizar as mensagens dicotómicas recebidas. Quando constantemente idealizada e depois desvalorizada, a vítima pode começar a duvidar de si própria, oscilando entre sentimentos de valor e de inutilidade. Esta internalização pode gerar estados depressivos, ansiedade, confusão de identidade e, em casos mais graves, sintomas de stress pós-traumático complexo. As vítimas frequentemente descrevem a experiência como viver sob uma nuvem de incerteza permanente. Nunca sabem qual será a versão do narcisista com que irão lidar. A falta de previsibilidade torna-se paralisante, criando uma hipervigilância constante e uma necessidade de agradar para evitar a rejeição.
No caso das vítimas, a consciencialização de que a oscilação entre idealização e desvalorização não é reflexo do seu verdadeiro valor, mas sim de uma dinâmica interna do narcisista, pode ser libertadora. A reconstrução exige o fortalecimento da autoestima, o desenvolvimento de limites claros e a criação de uma rede de apoio estável. Também implica reaprender a viver fora da lógica do tudo ou nada, cultivando a capacidade de reconhecer nuances, imperfeições e contradições como parte natural da experiência humana.
Carlota conheceu Santiago num contexto aparentemente banal: uma conferência académica em que ambos apresentavam comunicações. Ele destacou-se pela eloquência e pela capacidade de encantar a audiência com uma mistura de humor e aparente vulnerabilidade. Carlota, jovem investigadora em início de carreira, sentiu-se imediatamente atraída pela sua confiança e pelo entusiasmo com que elogiou a sua apresentação. Nos dias seguintes, Santiago intensificou o contacto, enviando mensagens longas em que a enaltecia de forma quase desmedida. Falava do seu talento como se fosse excecional, descrevia-a como uma raridade no mundo académico e fazia Carlota sentir que estava diante de alguém que realmente a compreendia e valorizava.
Esse início marcado por idealização constituiu a primeira fase do ciclo de splitting. Carlota era colocada no pedestal, como se fosse perfeita, sem falhas, alguém destinada a uma grandeza quase inatingível. Santiago dizia-lhe frases como "És a única pessoa que consigo respeitar neste meio" ou "Nunca conheci alguém tão brilhante e genuíno". Para Carlota, estas palavras funcionavam como uma injeção de autoestima. Tendo atravessado um período de insegurança profissional, os elogios de Santiago pareciam confirmar que estava no caminho certo e que finalmente alguém via nela um valor profundo.
Contudo, essa valorização inicial carregava uma semente de instabilidade. Santiago não via Carlota como uma pessoa inteira, com virtudes e fragilidades. Via-a como um reflexo de si mesmo, como uma extensão da sua necessidade de encontrar figuras perfeitas que sustentassem a sua autoimagem grandiosa. Quando Carlota mostrava opiniões próprias, especialmente quando discordava dele, começava a surgir uma fenda. Se ela o contradizia numa discussão académica, Santiago ficava visivelmente incomodado. Tentava disfarçar, mas no fundo sentia-se desafiado e ferido. Pouco a pouco, o discurso de adoração cedeu espaço a críticas subtis.
O episódio mais marcante ocorreu quando Carlota recusou participar num projeto coordenado por Santiago porque já tinha compromissos profissionais. Para ela, a recusa foi cordial e fundamentada. Para ele, foi um sinal de deslealdade. A partir desse momento, Carlota passou da posição de pessoa idealizada para inimiga potencial. Santiago começou a falar dela em termos depreciativos, primeiro de forma velada, insinuando que talvez não fosse tão dedicada quanto parecia, mais tarde de forma direta, dizendo-lhe que estava a dececioná-lo e que afinal não era tão diferente dos outros colegas medíocres.
Este movimento abrupto de Carlota de um polo para o outro ilustra o pensamento dicotómico típico do splitting. Para Santiago, ela já não era a investigadora brilhante e única que merecia admiração, mas sim alguém que encarnava falhas intoleráveis. O facto de ela ter estabelecido limites foi interpretado como uma traição, uma prova de que afinal não era confiável. Carlota ficou confusa, pois ainda no dia anterior ele lhe havia enviado mensagens calorosas de apreço, e agora parecia distante e frio. Essa alternância produzia nela sentimentos de culpa, como se tivesse feito algo de terrivelmente errado sem perceber bem o quê.
A situação agravou-se quando, em reuniões profissionais, Santiago começou a questionar as ideias de Carlota com uma hostilidade disfarçada de crítica construtiva. Utilizava expressões como "Não sei se estás a ver bem a questão, talvez estejas a simplificar demais" ou "Já reparei que te falta alguma experiência para lidar com estes temas". Para os outros colegas, podia soar como simples discordância académica, mas para Carlota era evidente a mudança de tom. Sentia-se constantemente testada, como se estivesse sob um microscópio pronto a amplificar qualquer erro.
Este clima afetou profundamente a autoconfiança de Carlota. Ao oscilar entre momentos de reaproximação, em que Santiago voltava a elogiá-la e a mostrar-se protetor, e momentos de crítica mordaz, Carlota ficava aprisionada numa dinâmica psicológica de incerteza. Nunca sabia se iria encontrar o Santiago encantador ou o Santiago hostil. O efeito dessa imprevisibilidade era corrosivo: Carlota começou a duvidar de si mesma, da sua competência e até da sua memória dos acontecimentos. Sentia-se obrigada a justificar cada decisão, a medir cada palavra, como se qualquer passo em falso pudesse desencadear nova vaga de desvalorização.
A relação entre ambos foi-se tornando cada vez mais assimétrica. Santiago exigia lealdade incondicional, mas oferecia apenas uma aceitação condicional, dependente da submissão de Carlota às suas expectativas. Se ela o aplaudia e apoiava, era a melhor colega que poderia ter. Se ousava discordar ou traçar fronteiras, tornava-se ingrata ou falsa. Esta oscilação não era casual, mas antes reflexo do mecanismo interno de splitting, que não tolerava nuances nem complexidade: Carlota era ou completamente boa ou completamente má, não havia meio-termo.
Com o tempo, a pressão tornou-se insustentável. Carlota começou a evitar interações com Santiago para se proteger, mas isso só reforçou a narrativa dele de que ela era distante e pouco colaborativa. O isolamento era quase inevitável. Outros colegas, sem conhecerem os bastidores, viam Santiago como alguém carismático e Carlota como a parte problemática. Este duplo efeito, a desvalorização constante e a manipulação da perceção externa, levou Carlota a um estado de exaustão emocional.
A consequência psicológica mais severa foi a erosão da sua identidade profissional. Carlota, que sempre tivera orgulho no seu trabalho e nas suas capacidades, passou a sentir que não tinha lugar naquele meio. Questionava-se diariamente se o problema estava nela, se de facto era insuficiente ou incompetente. O que antes era entusiasmo e energia para a investigação transformou-se em ansiedade constante e medo de errar.
Este caso mostra como o splitting não se limita a um padrão interno do narcisista, mas tem impactos significativos sobre aqueles que são apanhados no seu raio de ação. A incapacidade de integrar visões complexas do outro cria relações de alternância extrema entre idealização e desvalorização, aprisionando a vítima num ciclo de esperança e frustração. Carlota só começou a recuperar quando, após meses de sofrimento, procurou apoio terapêutico e pôde reconhecer que estava a viver uma dinâmica típica de pensamento dicotómico. Com o suporte adequado, conseguiu compreender que a oscilação não refletia a sua verdadeira identidade, mas antes a rigidez psicológica de Santiago.
A narrativa de Carlota é paradigmática porque ilustra em detalhe como o splitting atua não apenas como defesa do ego narcisista, mas também como arma de controlo relacional. Ao negar a complexidade e reduzir o outro a extremos, o narcisista garante que a vítima permanece em estado de instabilidade e dúvida. O caminho de saída exige precisamente o oposto: a capacidade de recuperar uma visão integrada de si mesma, reconhecendo que ninguém é totalmente bom nem totalmente mau, e que a identidade pessoal não pode ser refém das perceções fragmentadas de quem vive prisioneiro do preto e branco psicológico.
O assassinato de carácter constitui uma das armas mais pungentes no repertório de um indivíduo com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Ao contrário de conflitos interpessoais comuns, que podem resultar em desentendimentos, críticas ou até acusações mútuas, aqui estamos perante um processo calculado e sistemático de destruição da reputação de outra pessoa. Trata-se de uma campanha intencional, prolongada e profundamente enraizada na necessidade do narcisista de preservar a sua imagem grandiosa, punindo ao mesmo tempo quem ousa desafiar o seu controlo.
O alvo deste tipo de ataque é, quase sempre, alguém que já teve uma ligação próxima ao narcisista: um parceiro romântico que decide terminar a relação, um colega de trabalho que recusa submeter-se às suas manipulações, um familiar que ousa impor limites, ou até um amigo que começa a questionar as suas contradições. Quando o narcisista se sente exposto, rejeitado ou desvalorizado, ativa uma resposta de retaliação. A sua lógica interna dita que, se não consegue manter o controlo através da manipulação direta, então deve destruir o valor social e emocional do outro.
O assassinato de carácter não ocorre em momentos isolados, mas numa sequência de atos repetidos, cuidadosamente escolhidos para desestabilizar a vítima e corroer o seu círculo de apoio. Esta prática é tanto mais perigosa porque raramente é reconhecida pelo público como uma forma de abuso. O narcisista veste a pele de vítima, de pessoa preocupada ou de inocente injustiçado, enquanto a verdadeira vítima passa a ser retratada como instável, agressiva, infiel, preguiçosa ou emocionalmente desequilibrada. O objetivo último não é apenas punir, mas também garantir que a narrativa social valida a versão distorcida da realidade apresentada pelo narcisista.
O assassinato de carácter manifesta-se através de acusações falsas, exageradas ou descontextualizadas. O narcisista utiliza meias-verdades, distorções subtis ou invenções completas para manchar a credibilidade da vítima. Uma discussão trivial transforma-se, na sua versão, num episódio de violência emocional, uma noite de ausência é relatada como sinal de infidelidade, uma reação de frustração torna-se prova de instabilidade mental. Esta manipulação seletiva da realidade tem como finalidade inverter papéis, levando o público a acreditar que o verdadeiro agressor é a vítima e que o narcisista, afinal, é quem sofreu.
A estratégia DARVO (Deny, Attack, Reverse Victim and Offender) é um dos mecanismos mais comuns neste processo. O narcisista nega qualquer comportamento abusivo, ataca a vítima com acusações hostis e, finalmente, assume a posição de vítima, alegando ter sido alvo de injustiça. É neste cenário que entram os chamados "flying monkeys": amigos, familiares ou colegas que, muitas vezes sem consciência da manipulação, acabam por repetir e amplificar a narrativa criada pelo narcisista.
Estes aliados, recrutados de forma subtil, podem acreditar genuinamente na versão do narcisista ou apenas preferir alinhar com a parte que aparenta ter mais poder social. Consequentemente, a vítima vê-se não apenas atacada diretamente, mas também rodeada por vozes que reforçam a mentira, amplificando o isolamento. Uma frase aparentemente inocente como "O João disse que estavas desequilibrada… espero que estejas melhor" carrega em si o peso da difamação já instalada e a exclusão silenciosa que lhe está associada.
Este fenómeno atinge frequentemente o auge após o término de uma relação, momento em que o narcisista sente a perda do controlo narrativo. A campanha de assassinato de carácter funciona como a derradeira arma de destruição, um ataque final antes do afastamento, destinado a preservar a máscara de perfeição. Nesse processo, o narcisista encontra uma forma de validar perante terceiros que ele tentou de tudo e que ela (a vítima) é que sempre foi o problema. É uma defesa desesperada de um ego frágil que não suporta rejeição.
As consequências para a vítima são profundas e multifacetadas. O assassinato de carácter atinge não apenas a reputação pública, mas também a identidade privada e a perceção interna do próprio valor. O impacto psicológico é, muitas vezes, comparável ao de uma agressão direta e prolongada.
No plano social, a vítima pode ver-se isolada. Amigos afastam-se, familiares passam a duvidar, colegas no trabalho encaram-na com suspeição. A perda de apoio social agrava o sofrimento, porque a vítima não encontra eco para validar a sua experiência. Por vezes, sente-se a lutar contra uma realidade paralela criada pelo narcisista, sem ter como provar a verdade. Este isolamento é particularmente demolidor em contextos profissionais, onde boatos ou rumores podem comprometer oportunidades de carreira, minar relações de confiança e prejudicar a progressão.
No plano emocional, surgem sentimentos de injustiça, raiva, vergonha e impotência. A vítima pode começar a questionar-se: "E se for verdade o que ele disse? E se os outros acreditarem mais nele do que em mim?" Esta dúvida interna corrói a autoestima, conduzindo frequentemente à autocrítica e ao retraimento social.
Os sintomas de trauma são igualmente comuns: ansiedade persistente, insónias, hipervigilância e medo de exposição pública. A vítima vive num estado de alerta constante, receando novos ataques, novos boatos ou novas humilhações. Em casos mais graves, pode desenvolver-se um quadro semelhante ao de stress pós-traumático, no qual qualquer referência ao narcisista ou à narrativa difamatória desencadeia memórias intrusivas, tensão corporal e respostas emocionais intensas.
A resposta instintiva de muitas vítimas é a defesa pública imediata. No entanto, ao tentar justificar-se, acabam por reforçar o jogo narrativo do narcisista, que passa a retratar a sua reação como prova de instabilidade. Por isso, uma das estratégias mais recomendadas é precisamente resistir à tentação de responder de imediato. Documentar provas, preservar mensagens, guardar registos, partilhar a verdade apenas com círculos íntimos de confiança e manter coerência entre ações e valores pode ser mais eficaz a longo prazo do que qualquer confronto direto.
A recuperação exige um processo de reconstrução identitária. A terapia desempenha aqui um papel fundamental, ajudando a vítima a reconstituir a narrativa da sua vida, separar factos de distorções e reapropriar-se da sua voz. Grupos de apoio oferecem igualmente um espaço de validação, onde é possível perceber que esta experiência, embora dolorosa, não é única, e que existem caminhos de reconstrução.
Para além do impacto imediato, o assassinato de carácter deve ser entendido como uma forma de trauma relacional. Ao destruir a reputação e desfigurar a perceção social da vítima, o narcisista mina um dos alicerces mais importantes da identidade humana: a pertença. Ser reconhecido, validado e respeitado pelos outros é uma necessidade psicológica básica. Quando esta ligação é comprometida por mentiras sistemáticas, a vítima experimenta uma ferida profunda, que toca tanto a esfera individual como a coletiva.
Este tipo de trauma difere de agressões físicas ou verbais diretas porque atinge não apenas o corpo ou a mente, mas também a rede de relações que dá sentido à vida de uma pessoa. O dano não é visível, mas é contínuo e insidioso. O narcisista, ao manipular a perceção social, consegue criar uma prisão invisível onde a vítima é desacreditada em qualquer tentativa de se defender.
Quando Paulo conheceu Sandra, ficou imediatamente cativado pela forma como ela parecia entender o mundo de uma maneira intensa e apaixonada. Era inteligente, articulada, socialmente carismática, capaz de adaptar-se a qualquer ambiente com uma naturalidade quase hipnótica. Nos primeiros meses, ele sentia-se privilegiado por estar ao lado de alguém que parecia ter o respeito e a admiração de todos. Ela sabia dizer as palavras certas nos momentos certos, oferecia atenção exclusiva e, nas conversas privadas, fazia-o sentir-se como a pessoa mais especial da sala.
No entanto, por trás desse verniz encantador, havia fissuras que Paulo começou a perceber com o tempo. Pequenos comentários depreciativos, sussurrados entre elogios, plantavam dúvidas na sua mente sobre si mesmo e sobre as pessoas à sua volta. Sempre que ele questionava algum comportamento dela, a conversa era habilmente desviada ou virada contra ele. Sandra era mestre na inversão de papéis: transformava qualquer tentativa de diálogo num ataque à sua pessoa, deixando Paulo com a sensação de que tinha sido injusto e ingrato.
A relação terminou abruptamente após uma discussão em que Paulo, já desgastado, decidiu impor limites claros. Sandra ouviu-o em silêncio, com um sorriso quase imperceptível, e no dia seguinte desapareceu completamente da sua vida. Ele pensou que seria apenas o fim de um relacionamento, mas estava prestes a descobrir que a separação era apenas o início de algo muito mais destrutivo.
Sem que ele soubesse, Sandra começou a semear histórias sobre ele junto a amigos em comum, colegas de trabalho e até familiares distantes. As narrativas eram cuidadosamente calibradas para soar plausíveis, com doses de verdade misturadas a distorções calculadas. Falava sobre o lado instável que poucos conheciam, insinuando que Paulo tinha problemas emocionais e episódios de comportamento errático. A sua capacidade de contar estas histórias com aparente dor e preocupação genuína fazia com que quem a ouvisse não tivesse motivos para duvidar.
No trabalho, Paulo começou a notar olhares estranhos e conversas que cessavam quando ele se aproximava. Um colega de confiança acabou por lhe contar, em tom constrangido, que Sandra tinha falado com alguns membros da sua equipa, insinuando que ele não era de confiança e que tinha tido problemas com álcool. A mentira, embora absurda para quem o conhecia de perto, tinha peso suficiente para criar dúvida nos que o conheciam superficialmente. Sandra sabia exatamente como plantar essas sementes para que crescessem sozinhas.
Nas redes sociais, surgiam publicações vagas mas sugestivas. Frases sobre "sobreviver a relações tóxicas" e "como as pessoas podem esconder quem realmente são" acumulavam reações de apoio e comentários solidários. Nenhum nome era mencionado, mas todos os detalhes implícitos coincidiam com a história que ela estava a espalhar. Amigos que Paulo considerava próximos começaram a afastar-se, alguns de forma silenciosa, outros com mensagens curtas, afirmando que não queriam estar no meio de conflitos.
O golpe mais duro veio quando um grupo de amigos com quem se costumava encontrar todas as semanas para jogar futebol deixou de o convidar. Mais tarde descobriu que Sandra tinha falado com alguns deles, afirmando que ele tinha sido verbalmente abusivo durante a relação e que estava "a lidar mal com a separação", sugerindo que seria melhor manterem distância por segurança. Esse amigo, genuinamente convencido de que estava a proteger o grupo, acatou o conselho.
Sandra não atuava sozinha. Conseguiu, de forma quase impercetível, transformar pessoas neutras em extensões da sua narrativa, os chamados flying monkeys. Alguns repetiam a história por acharem que estavam a alertar outros, outros apenas se afastavam para evitar problemas. A cada nova distorção, Paulo sentia a sua rede de apoio encolher. Isolado, começou a questionar a própria perceção da realidade. Perguntava-se se teria dito ou feito algo que pudesse ser interpretado da forma como Sandra descrevia. O peso da dúvida corroía-lhe a autoestima e, por vezes, a tentação de confrontá-la diretamente quase se tornava insuportável. Mas sabia que qualquer reação seria usada como mais prova contra ele.
A devastação não se limitava à vida social. Uma oportunidade de promoção no trabalho desapareceu subitamente, depois de um rumor chegar à direção. Oficialmente, disseram-lhe que "o momento não era oportuno". Extraoficialmente, soube que alguém, e não tinha dúvidas de quem, tinha enviado um e-mail anónimo insinuando que ele criava conflitos e tinha dificuldade em trabalhar em equipa. Era a prova final de que o ataque à sua reputação tinha ultrapassado qualquer limite pessoal.
Meses depois, Paulo percebeu que estava emocionalmente exausto, com sintomas claros de ansiedade e hipervigilância. Qualquer notificação no telemóvel era acompanhada de um aperto no estômago, e os encontros sociais, antes fonte de prazer, transformaram-se em situações de stress e autoproteção. A vergonha de ser visto como alguém problemático fê-lo recuar ainda mais, evitando interações que pudessem gerar novas oportunidades para Sandra distorcer factos.
Com o tempo e com ajuda profissional, começou a compreender que estava preso numa campanha de assassinato de carácter deliberada, e que nada do que fizesse mudaria a narrativa que Sandra tinha construído. A sua única opção viável era reconstruir a própria vida de forma silenciosa, sem tentar corrigir cada mentira, e cercar-se de pessoas que conhecessem verdadeiramente o seu caráter. Foi um processo lento, doloroso, mas essencial para recuperar a dignidade que ela tinha tentado destruir.
Sandra por sua vez manteve a fachada de mulher injustiçada, reforçando junto do seu círculo a história que tinha criado. No entanto, como acontece com muitos narcisistas, a necessidade constante de manter essa imagem levou-a a repetir padrões com outras pessoas, e aos poucos, algumas máscaras começaram a cair. Mas para Paulo, a lição mais dura foi perceber que nem sempre a verdade se impõe por si só, e que a sobrevivência emocional depende, muitas vezes, da escolha consciente de não participar no jogo do agressor.
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Washington, DC: American Psychiatric Publishing. https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425596
Baskin-Sommers, A., Krusemark, E., & Ronningstam, E. (2014). Empathy in narcissistic personality disorder: From clinical and empirical perspectives. Personality Disorders: Theory, Research, and Treatment, 5(3), 323–333. https://doi.org/10.1037/per0000061
Caligor, E., Levy, K. N., & Yeomans, F. E. (2015). Narcissistic Personality Disorder: Diagnostic and Clinical Challenges. American Journal of Psychiatry, 172(5), 415–422. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2014.14060723
Durvasula, R. S. (2019). Don’t You Know Who I Am? How to stay sane in an era of narcissism, entitlement, and incivility. Post Hill Press.
Durvasula, R. S. (2017). Should I Stay or Should I Go? Post Hill Press.
Durvasula, R. S. (2024). It’s not you: Identifying and healing from narcissistic people. Penguin Random House.
Edershile, E. A., & Wright, A. G. C. (2021). Fluctuations in grandiose and vulnerable narcissistic states: A momentary perspective. Journal of Personality and Social Psychology, 120(6), 1617–1636. https://doi.org/10.1037/pspp0000370
Harsey, S. J., Zurbriggen, E. L., & Freyd, J. J. (2017). Perpetrator responses to victim confrontation: DARVO and victim self-blame. Journal of Aggression, Maltreatment & Trauma, 26(6), 644–663. https://doi.org/10.1080/10926771.2017.1320777
Krizan, Z., & Johar, O. (2015). Narcissistic rage revisited. Journal of Personality and Social Psychology, 108(5), 784–801. https://doi.org/10.1037/pspp0000013
MedCircle. (2022, May 16). MasterClass: Narcissism - What you MUST know [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=V87G95bGTTk
Miller, J. D., & Campbell, W. K. (2011). The Handbook of Narcissism and Narcissistic Personality Disorder: Theoretical Approaches, Empirical Findings, and Treatments. Wiley.
Nook, E. C., Jaroszewski, A. C., Finch, E. F., & Choi-Kain, L. W. (2022). A Cognitive-Behavioral Formulation of Narcissistic Self-Esteem Dysregulation. Focus (American Psychiatric Association), 20(4), 378–388. https://doi.org/10.1176/appi.focus.20220055
Pincus, A. L., & Lukowitsky, M. R. (2010). Pathological narcissism and narcissistic personality disorder. Annual Review of Clinical Psychology, 6, 421–446. https://doi.org/10.1146/annurev.clinpsy.121208.131215
Saraiva, C. B., & Cerejeira, J. (2024). Psiquiatria fundamental (2nd ed.). Lidel.
Strutzenberg, C., Wiersma-Mosley, J., Jozkowski, K. & Becnel, J. (2017). Love-bombing: A narcissistic approach to relationship formation. Discovery Journal.
Sweet, P. L. (2019). The sociology of gaslighting. American Sociological Review, 84(5), 851–875. https://doi.org/10.1177/0003122419874843
The Diary Of A CEO. (2024, February 29). The narcissism doctor: "1 in 6 people are narcissists!" How to spot them & can they change? [Video]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=hTkKXDvSJvo
Weinberg, I., & Ronningstam, E. (2022). Narcissistic personality disorder: Progress in understanding and treatment. Focus, 20(4), 368–377. https://doi.org/10.1176/appi.focus.20220052