A primeira e mais fundamental estratégia para lidar com indivíduos com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) é investir de forma consistente na própria educação sobre a condição. Compreender o que é o narcisismo patológico, como ele se manifesta e de que forma influencia as relações é um passo decisivo para que a vítima saia de um estado de confusão e autocrítica corrosiva, passando a ocupar uma posição mais lúcida, informada e, sobretudo, protetora de si própria.
Para muitas vítimas, os primeiros tempos numa relação com um narcisista, seja ela amorosa, familiar ou profissional, são um terreno fértil para dúvidas e interpretações erradas. As oscilações entre momentos de afeto intenso e períodos de frieza ou hostilidade são justificadas, durante muito tempo, com explicações aparentemente racionais: "ele estava cansado", "ela estava stressada", "foi um mal-entendido". Essas interpretações funcionam como tampões emocionais que impedem a perceção da verdadeira dimensão do abuso. Sem um conhecimento sólido sobre o que está realmente em jogo, a vítima tende a aceitar comportamentos nocivos como se fossem inevitáveis, ou até normais, entrando num ciclo onde a sua autoestima e a sua clareza mental se degradam lentamente.
A ausência de conhecimento psicológico é o maior aliado do abusador. Enquanto a vítima não reconhece o padrão, permanece mais vulnerável às manipulações subtis que mantêm a relação desequilibrada. O ciclo de idealização, desvalorização e descarte, uma das marcas do abuso narcisista, é mascarado por gestos intermitentes de afeto ou promessas de mudança, criando um efeito montanha-russa emocional que prende a vítima num estado de esperança intercalada com frustração e dor. Este mecanismo, conhecido como reforço intermitente, é amplamente documentado em estudos sobre dependência emocional e é comparável, em impacto, aos processos neuroquímicos observados em vícios como o jogo ou substâncias.
Investir na educação sobre a PPN significa procurar informação de fontes credíveis e com base científica. Isto implica evitar conteúdos sensacionalistas que, apesar de populares nas redes sociais, muitas vezes reduzem o narcisismo a caricaturas simplistas e ignoram os aspectos clínicos. O caminho mais sólido passa por consultar literatura académica, estudos de psicologia clínica e psiquiatria e manuais de diagnóstico como o DSM-5 ou o ICD-11. A leitura de obras de profissionais especializados em abuso psicológico é igualmente valiosa, não apenas para compreender a mecânica do comportamento narcisista, mas também para reconhecer o impacto profundo que este tem na vítima.
A compreensão clínica da PPN é uma das vertentes centrais deste processo educativo. Envolve familiarizar-se com a definição formal da perturbação e os critérios de diagnóstico, mas também explorar as variações dentro do espectro narcisista, como o subtipo grandioso, o vulnerável, o comunal e o maligno. É igualmente importante conhecer as comorbilidades frequentes com a PPN, como transtornos de personalidade borderline e antissocial, ou abuso de substâncias, pois estas combinações aumentam a complexidade e a intensidade do abuso.
Outro aspeto essencial é reconhecer os padrões de comportamento abusivo, que não se limitam a explosões de raiva ou insultos diretos. Muitas vezes, o abuso é conduzido através de estratégias discretas mas altamente corrosivas, como o gaslighting, que distorce a perceção da realidade da vítima, o "silent treatment", que a isola emocionalmente, ou a alternância calculada entre afeto e rejeição, que mantém viva a esperança de reconciliação. Também o uso de triangulação, comparações humilhantes, ou a apropriação de conquistas alheias fazem parte do arsenal narcisista. Quanto mais clara for a perceção destes comportamentos, mais rapidamente a vítima poderá identificar quando está a ser manipulada.
A educação sobre a PPN não se limita à compreensão do agressor, envolve igualmente uma reflexão profunda sobre os impactos do abuso. Estes não são apenas emocionais: a vítima pode desenvolver ansiedade crónica, depressão, sintomas de transtorno de stress pós-traumático (PTSD ou CPTSD), dificuldades na regulação emocional, lapsos de memória e problemas de concentração. A autoestima e a identidade podem ficar profundamente abaladas, existindo um risco real de normalização do abuso, o que leva à repetição de padrões em relações futuras.
Um dos efeitos mais transformadores deste processo educativo é a validação da experiência da vítima. Muitos sobreviventes relatam um momento de despertar ao lerem descrições clínicas que correspondem exatamente ao que vivem. É a súbita perceção de que "não estou louco(a)", e de que as suas reações emocionais têm fundamento. Esta tomada de consciência rompe o ciclo da narrativa manipuladora que o narcisista tenta impor, devolvendo à vítima um sentido de autonomia e legitimidade sobre o que sente.
Importa também reconhecer que este não é um processo pontual, mas contínuo. O narcisismo patológico é um fenómeno complexo e em constante estudo, e novas investigações oferecem perspetivas valiosas sobre as suas origens genéticas, a influência das experiências precoces de vida, os mecanismos de plasticidade cerebral e a eficácia de diferentes abordagens terapêuticas. Manter-se informado implica acompanhar a evolução do conhecimento científico, seguir investigadores e clínicos reconhecidos, participar em fóruns de apoio moderados por profissionais e, quando possível, frequentar workshops ou cursos online sobre abuso psicológico.
Um capítulo fundamental deste percurso é o autoconhecimento. Ao compreender a PPN, a vítima é convidada a olhar para dentro e identificar vulnerabilidades que possam ter contribuído para a ligação com o abusador. Isto não significa, de forma alguma, culpabilizar a vítima, mas sim oferecer-lhe ferramentas para se fortalecer internamente. Dificuldade em estabelecer e manter limites claros é um exemplo de um aspecto que pode ser explorado para prevenir relações abusivas no futuro.
Educar-se sobre a PPN é por isso mais do que acumular informação: é um ato de fortalecimento emocional e psicológico. É a base sobre a qual se constroem todas as restantes estratégias de coping e defesa, e o primeiro passo para que a vítima recupere a clareza mental, a autoestima e a capacidade de proteger a sua integridade emocional.
Francisca sempre se considerou uma mulher atenta e cuidadosa com as suas relações. Não se envolvia facilmente, mas quando conheceu Tomé, foi como se tivesse encontrado alguém que a compreendia de forma quase mágica. Desde os primeiros encontros, Tomé mostrava-se intenso, interessado em cada detalhe da sua vida e repleto de gestos de carinho e atenção. As conversas prolongavam-se pela noite dentro, e Francisca sentia que, finalmente, alguém a via, a ouvia e a valorizava.
Nos primeiros meses, Tomé parecia ser o parceiro ideal. Sabia exatamente o que dizer para a fazer sentir especial e segura. Aparecia de surpresa com flores, lembrava-se de datas importantes e dizia frases que tocavam o fundo da sua alma. Francisca sentia-se quase embriagada por aquele afeto constante e pela ideia de estar a viver uma história digna de um romance.
No entanto, lentamente, começaram a surgir pequenos episódios estranhos. Momentos em que Tomé, de forma subtil, colocava em dúvida as perceções dela sobre acontecimentos triviais. Se Francisca recordava uma conversa de forma diferente, ele reagia com um sorriso condescendente e dizia: "Estás a imaginar coisas, querida. Acho que estás a ficar um pouco confusa." Noutras vezes, quando ela se mostrava triste ou magoada com algum comentário seu, ele retraía-se completamente, passando dias sem falar com ela. Quando finalmente retomava o contacto, fazia-o como se nada tivesse acontecido, e se ela tentava abordar o assunto, ele reagia com irritação: "Estás sempre a dramatizar."
Aos poucos, Francisca começou a sentir-se insegura, duvidando da sua própria memória e interpretação dos factos. Tentava ajustar o seu comportamento para evitar discussões, esforçando-se por manter Tomé sempre satisfeito. Qualquer tentativa de expressar desagrado resultava num distanciamento dele, seguido de um breve período de reconciliação, em que voltava a ser atencioso e amoroso. Esse ciclo repetia-se vezes sem conta, deixando-a emocionalmente exausta.
Foi numa dessas fases mais duras que Francisca começou a procurar respostas. Uma amiga próxima, que notara a sua tristeza e confusão, sugeriu que lesse sobre relacionamentos abusivos e gaslighting. Inicialmente, Francisca resistiu à ideia. Custava-lhe acreditar que Tomé, o homem que tantas vezes lhe declarara amor, pudesse estar a abusar dela de forma consciente. Mas a curiosidade, misturada com o desespero de entender o que estava a acontecer, levou-a a pesquisar.
O que encontrou foi avassalador. Textos e testemunhos descreviam dinâmicas que correspondiam, palavra por palavra, ao que ela vivia. A expressão reforço intermitente parecia explicar o porquê de se sentir tão dependente emocionalmente de alguém que também a magoava profundamente. A descrição do ciclo de idealização, desvalorização e descarte era quase um espelho da sua relação. E, pela primeira vez, começou a ler sobre a Perturbação de Personalidade Narcisista, compreendendo que não se tratava de meras incompatibilidades ou problemas de comunicação, mas sim de um padrão profundamente enraizado no comportamento de Tomé.
O impacto dessa descoberta foi ambivalente. Por um lado, sentiu um enorme alívio, afinal, não estava a exagerar, não era demasiado sensível e não estava a inventar problemas. O que vivia tinha nome, tinha explicação e era reconhecido clinicamente. Por outro lado, a consciência do que significava lidar com um narcisista trouxe-lhe um peso: percebia que esperar uma mudança genuína de Tomé seria ilusório.
Determinada a compreender melhor, Francisca passou semanas a estudar. Leu artigos académicos, consultou manuais como o DSM-5 e seguiu canais e conferências de psicólogos especializados no tema. Descobriu que Tomé exibia traços típicos de um narcisista de tipo vulnerável: sensível à crítica, constantemente à procura de validação, mas incapaz de aceitar responsabilidade pelos próprios erros. A sua aparente vulnerabilidade era, muitas vezes, usada como ferramenta para manipular e inverter os papéis, colocando-a no lugar de cuidadora e culpada.
Quanto mais aprendia, mais começava a ver a relação sob uma nova luz. Recordava episódios que antes aceitara como momentos maus e percebia que, na verdade, faziam parte de um padrão consistente de abuso emocional. A frieza calculada nos períodos de silêncio, as pequenas humilhações disfarçadas de piadas, o controlo sobre as suas escolhas e até a forma como Tomé se posicionava como vítima quando ela tentava confrontá-lo, tudo isso deixava de ser um conjunto de incidentes isolados e passava a ser uma teia bem construída.
Essa educação trouxe-lhe também a consciência de que precisava de cuidar de si e reconstruir a sua autoestima. Começou a escrever num diário para registar os acontecimentos de forma objetiva, evitando cair na armadilha de duvidar de si mesma. Procurou terapia com um psicólogo especializado em trauma relacional e abuso narcisista. Nas sessões, aprendeu sobre mecanismos de defesa, sobre a importância de estabelecer limites e sobre estratégias para se distanciar emocionalmente de Tomé, mesmo antes de conseguir fazê-lo fisicamente.
A clareza que adquiriu não tornou a decisão de se afastar mais fácil, mas tornou-a inevitável. Francisca sabia que a presença de Tomé na sua vida a desgastava diariamente e que qualquer tentativa de salvar a relação acabaria por prolongar o seu sofrimento. O processo de saída foi gradual. Começou por reduzir o contacto, limitando as interações a momentos essenciais e evitando responder a provocações. Quando finalmente terminou a relação, Tomé reagiu com um misto de indignação e desprezo, alternando mensagens de raiva com tentativas de reconciliação que, antes, teriam feito Francisca ceder.
Desta vez, porém, ela estava preparada. O conhecimento que adquirira sobre a PPN permitiu-lhe reconhecer cada uma dessas tentativas como parte do mesmo ciclo e resistir ao impulso de voltar atrás. Embora a dor da separação fosse real, havia também um sentimento crescente de liberdade e de reencontro consigo mesma.
Ao olhar para trás, Francisca percebia que a educação sobre a condição não só lhe dera ferramentas para identificar e compreender o abuso, mas também funcionara como um farol, iluminando o caminho para fora da escuridão. Sabia que a recuperação não seria imediata, mas agora tinha algo que antes lhe faltava: a certeza de que não estava sozinha e de que havia vida, e paz, para além de Tomé.
Definir e impor limites com uma pessoa que apresenta Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) é, para a maioria das vítimas, uma das experiências mais árduas e emocionalmente desgastantes que podem enfrentar. Não se trata apenas de dizer "não" ou de estabelecer regras. Trata-se de navegar um território psicológico em que a noção de fronteiras pessoais é quase inexistente para o outro lado. Para o narcisista, um limite não é visto como uma delimitação saudável de espaço ou respeito mútuo, mas como um ataque à sua autoridade, um sinal de que está a perder poder sobre a vítima.
Enquanto pessoas emocionalmente equilibradas reconhecem e respeitam fronteiras quando estas são comunicadas de forma clara, um narcisista reage de forma completamente oposta. Para ele, um limite é como um desafio, um obstáculo que precisa ser derrubado. A sua tendência é testar, distorcer ou mesmo violar essa barreira de forma consciente, como se a cada quebra estivesse a reafirmar o seu domínio. Este comportamento transforma o processo de estabelecer limites num jogo psicológico constante, em que a vítima precisa não apenas de firmeza, mas também de vigilância permanente.
Estabelecer limites, nestas circunstâncias, não é um evento pontual, mas sim uma prática contínua que exige consistência, paciência e uma clara preparação para lidar com retaliações, que podem variar de ataques verbais diretos até manipulações subtis, como silêncios punitivos ou campanhas de desvalorização junto de terceiros. Estes limites, quando bem aplicados, funcionam como barreiras protetoras contra a invasão emocional, física, financeira ou psicológica. Mas para serem eficazes, precisam de ser claros, sustentados ao longo do tempo e acompanhados de consequências tangíveis e inevitáveis.
Limites são, em essência, linhas invisíveis que definem onde termina a sua responsabilidade e começa a do outro. São o contorno invisível que protege o seu espaço físico, o seu equilíbrio emocional, o seu tempo e os seus recursos. Funcionam como um sinal interno e externo de que a sua dignidade e autonomia não são negociáveis.
Numa relação com um narcisista, estas fronteiras assumem uma dimensão quase vital. Não são apenas mecanismos de organização da vida, mas verdadeiros dispositivos de sobrevivência psicológica. Por exemplo, declarar que não tolera gritos ou insultos durante uma conversa não é apenas um gesto de cortesia: é uma barreira contra a normalização do abuso verbal, uma forma de impedir que a agressão se infiltre na relação e se torne algo aceitável com o tempo.
O problema é que o narcisista não vê esta barreira como uma medida de respeito mútuo, mas como uma tentativa de lhe retirar poder. A reação habitual é minimizar a importância do limite, ridicularizá-lo ou até criar situações que forcem a vítima a quebrá-lo. E, quando isso acontece, ele utiliza a violação como munição, afirmando que o limite em causa não era assim tão importante ou que a vítima está a agir de forma incoerente.
O ato de definir limites com um narcisista exige uma precisão cirúrgica. Afirmações vagas ou excessivamente abertas à interpretação tornam-se terreno fértil para distorções. Pedir algo como "Quero que me respeites mais" não surte efeito, pois é subjetivo e passível de ser manipulado. Em vez disso, é necessário recorrer a enunciados objetivos e específicos, como: "Se levantares a voz comigo, vou terminar imediatamente a conversa e sair da sala".
O narcisista, sentindo a ameaça à sua liberdade de agir sem restrições, frequentemente testará a consistência do limite. Se percebe hesitação ou medo, tentará quebrá-lo de forma estratégica. Isto pode envolver criar situações de emergência fictícias para obrigar a vítima a responder fora de horas, ou utilizar crises emocionais súbitas como isco para obter atenção.
A comunicação destes limites deve ser direta, num tom calmo, sem justificações longas ou emocionais, quanto mais a vítima explica, mais material fornece para que o narcisista possa contestar ou distorcer. O objetivo não é convencê-lo da justeza do limite, mas afirmar e proteger o próprio espaço.
Passos para estabelecer e impor limites
Autoavaliação: Identificar áreas onde há invasão ou abuso recorrente. Reconhecer padrões de manipulação já experienciados.
Definição clara: Criar frases objetivas e curtas: "Não aceito ser insultado". Evitar justificações longas, que o narcisista pode tentar desconstruir.
Comunicação direta: Utilizar tom calmo mas firme. Comunicar o limite e a consequência de forma inequívoca.
Consistência: Cumprir a consequência sempre que o limite for violado. Inconsistência incentiva o narcisista a tentar novamente.
Preparar resistência: Esperar reações negativas: raiva, ridicularização, chantagem. Ter um plano para lidar com cada tentativa de violação.
Exemplos práticos de aplicação: a) no trabalho: "A nossa reunião termina às 17h, não vou prolongar para além disso." b) na família: "Não vou responder a mensagens quando estou de férias." c) num relacionamento: "Se me gritares, saio da sala imediatamente."
Transmitir o limite é apenas a primeira parte. O verdadeiro desafio surge na aplicação das consequências quando o limite é violado. Muitos recuam diante da pressão ou da retaliação, e esse recuo envia uma mensagem perigosa: a de que basta insistir ou punir para que a barreira desapareça.
O Papel das Consequências
Limites sem consequências são apenas sugestões, e com narcisistas, sugestões raramente funcionam. É por isso que cada limite precisa de estar associado a uma ação concreta que a vítima se compromete a executar. Se o limite for "Não aceito que mexas no meu telefone", a consequência pode ser guardá-lo num local seguro ou desligá-lo sempre que o narcisista tenta aceder-lhe. O importante é que a consequência seja exequível, proporcional e aplicada sempre que o limite é violado.
Este ponto é particularmente difícil, pois o narcisista reagirá com raiva, sarcasmo, chantagem emocional ou até campanhas de difamação para invalidar a legitimidade das suas ações. É preciso estar mentalmente preparado para estas táticas e lembrar-se de que a reação intensa é um sinal de que o limite está a tocar numa área onde o narcisista perde controlo.
Manter a Consistência
A consistência é o pilar da imposição de limites. Narcisistas prosperam em ambientes onde as regras são fluidas, porque isso lhes permite manipular de acordo com as circunstâncias. Se hoje um determinado comportamento for inaceitável, mas amanhã for tolerado porque está cansado de discutir, a mensagem que o narcisista recebe é clara: pode ignorar o limite desde que pressione o suficiente.
Para manter a consistência, é útil adotar uma postura quase profissional nas interações, evitando entrar em debates emocionais sobre a validade do limite. O objetivo não é convencer o narcisista de que está certo, mas proteger-se de forma objetiva. Repetir calmamente a regra e aplicar a consequência é mais eficaz do que tentar explicar, pela centésima vez, porque é que o seu limite é razoável.
Obstáculos comuns
O narcisista irá frequentemente recorrer à culpabilização para enfraquecer a vítima, lançando frases como "Estás a exagerar" ou "Se te importasses comigo, não farias isso". Pode usar gaslighting, negando que o limite tenha sido estabelecido, ou intensificar comportamentos abusivos para quebrar a resistência.
A vítima, por sua vez, pode cair na autossabotagem, cedendo para evitar problemas e enfraquecendo todo o processo. É fundamental compreender que manter um limite não é um ato de egoísmo, mas de autopreservação, e que ceder por culpa apenas alimenta o ciclo de abuso.
Definir e impor limites é um ato profundamente transformador, mas também emocionalmente desgastante. Existe um processo interno de luto, pois muitas vítimas ainda carregam a esperança de que o narcisista mude em resposta à nova postura. Quando percebem que as violações continuam, embora por vezes de forma mais subtil, podem sentir frustração e desânimo.
Nesses momentos, o apoio externo é vital, seja de amigos, familiares ou profissionais especializados. A manutenção consistente dos limites reduz a exposição ao abuso, fortalece a clareza emocional e reforça a autoestima. Com o tempo, também prepara o terreno para decisões mais drásticas, como o "low contact" ou o "no contact", permitindo que a vítima recupere não apenas o espaço, mas também a liberdade interior que o narcisista procurou minar.
Débora, uma gestora de marketing de 38 anos, trabalhava numa empresa conhecida pela sua imagem inovadora e pela agressividade nas campanhas publicitárias. Apesar de a fachada corporativa transmitir dinamismo e espírito de equipa, o ambiente interno era muito diferente, especialmente para quem estava diretamente sob a supervisão de Alexandre, o diretor de marketing. Alexandre era um homem carismático, com uma presença forte em reuniões com clientes e parceiros externos. Tinha um discurso fluído, sorriso fácil e uma habilidade quase hipnótica para fazer as pessoas acreditarem que estavam diante de um líder visionário. No entanto, quando as portas se fechavam e a atenção deixava de estar virada para o exterior, revelava-se uma faceta completamente distinta.
No dia a dia, Alexandre exercia um controlo sufocante sobre a equipa. Nada escapava ao seu olhar crítico: prazos, formatos, linguagem utilizada nos e-mails e até o tom das respostas em mensagens internas. Exigia disponibilidade absoluta e imediata, enviando instruções e pedidos a qualquer hora do dia ou da noite, muitas vezes sem qualquer urgência real. Era comum Débora receber mensagens no seu telemóvel às 23h45, ou até de madrugada, com pequenas alterações em campanhas ou pedidos de opinião sobre detalhes irrelevantes para aquele momento. A expectativa era clara: responder no momento, sem questionar, e com entusiasmo.
Nos primeiros meses, Débora esforçou-se para corresponder. Estava determinada a mostrar competência, dedicação e espírito de equipa. Temia que qualquer demora ou falha fosse interpretada como desinteresse ou falta de profissionalismo. Quando não respondia de imediato, Alexandre podia permanecer em silêncio durante dias, ignorando-a nas reuniões e evitando qualquer interação direta, o que Débora, mais tarde, viria a reconhecer como uma forma de punição silenciosa. Quando não aplicava este silêncio estratégico, optava por críticas subtis mas cortantes, feitas em público para minar a confiança de quem o contrariava.
Com o tempo, este ritmo tornou-se insustentável. Débora começou a sentir ansiedade constante, mesmo fora do trabalho. A simples vibração do telemóvel fazia-lhe acelerar o coração. As noites passaram a ser interrompidas por despertares súbitos, antecipando mensagens que podiam chegar a qualquer momento. Sentia-se constantemente em alerta, como se estivesse sempre prestes a falhar. A irritabilidade aumentou, afetando até a sua vida pessoal. Amigos começaram a notar que ela parecia distante e sempre cansada. O tempo que deveria ser de descanso já não lhe pertencia. O trabalho, mediado pela presença invasiva de Alexandre, infiltrara-se em todos os aspetos da sua vida.
Foi numa conversa com uma amiga que trabalhava em recursos humanos que Débora começou a perceber a gravidade da situação. A amiga ouviu atentamente o relato, reconhecendo padrões de comportamento abusivo e explicando que muitos líderes narcisistas manipulavam a disponibilidade e os limites das suas equipas para manter o controlo. Sugeriu que Débora refletisse sobre o que mais a desgastava e identificasse formas de estabelecer fronteiras claras.
Débora passou alguns dias a analisar o que lhe causava mais desgaste. Embora a pressão durante o horário laboral fosse intensa, percebeu que era a invasão constante do seu tempo pessoal que mais a estava a destruir. Aqueles momentos depois das 18h30, que deveriam ser para descansar, jantar calmamente ou simplesmente desligar, eram sistematicamente sequestrados por mensagens, chamadas e notificações vindas de Alexandre. Percebeu também que, ao responder sempre de imediato, reforçava o comportamento dele, ensinando-lhe que a qualquer hora teria a sua atenção.
Decidida a mudar esta dinâmica, preparou-se cuidadosamente para falar com Alexandre. Escolheu um momento em que ele estava relativamente bem-disposto, logo após uma reunião bem-sucedida com um cliente importante. Manteve um tom profissional, firme mas respeitoso. "Alexandre, para garantir que consigo manter o meu desempenho e a qualidade do trabalho, preciso de não receber ou responder a mensagens fora do horário laboral, exceto em casos de verdadeira urgência. A partir das 18h30, estarei offline e retomarei a comunicação no dia seguinte."
A reação foi quase instantânea. Alexandre inclinou-se na cadeira, cruzou os braços e revirou os olhos com um ar de desaprovação silenciosa. Depois, com um tom levemente irónico, disse que o mercado é competitivo e que quem está sempre disponível tem mais hipóteses de crescer. Insinuou que Débora não tinha verdadeiro espírito de equipa e que, ao colocar limites, demonstrava falta de compromisso com o projeto. O subtexto era claro: ela deveria sentir-se culpada por priorizar o próprio bem-estar. Mas Débora manteve-se firme. Repetiu, com a mesma calma, que essa mudança era necessária para garantir a sua produtividade e saúde mental a longo prazo. Não entrou em justificações adicionais, não cedeu ao silêncio constrangedor que se seguiu.
Nos dias seguintes, Alexandre começou a testar o limite. Mandava mensagens fora de horas, aparentemente para esquecer que tinham falado sobre o assunto. Quando ela não respondia, comentava em público que "algumas pessoas desligam o telemóvel cedo demais", com um sorriso que disfarçava mal a provocação. Débora, no entanto, já tinha antecipado essa reação. Continuou a não responder fora do horário e, sempre que era confrontada, reiterava de forma breve que tinha estabelecido um compromisso consigo própria e que o cumpriria. O jogo de resistência durou algumas semanas. Aos poucos, Alexandre percebeu que as tentativas de quebrar o limite não surtiriam efeito. As mensagens fora de horas tornaram-se menos frequentes. Embora a relação profissional continuasse tensa e distante, o comportamento dele nesse aspeto específico mudou.
Débora começou a sentir um alívio físico. Voltou a dormir melhor, recuperou energia e passou a desfrutar novamente do tempo livre. Mais do que isso, ganhou uma nova perceção sobre a importância de manter fronteiras claras com pessoas que testam constantemente a disponibilidade alheia. A experiência mostrou-lhe que clareza, consistência e aplicação de consequências são as chaves para fazer um limite ser respeitado, mesmo quando a outra parte resiste. Sobretudo, aprendeu que preservar a integridade emocional não exige confrontos dramáticos, mas sim firmeza silenciosa e persistente.
O contacto com uma pessoa com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN) é frequentemente marcado por um padrão de manipulação, controlo e desgaste emocional. Quando cortar completamente o contacto ("no contact") não é possível ou não é viável no imediato, surgem estratégias de interação que visam reduzir o impacto emocional e limitar o espaço para a manipulação. Entre estas duas técnicas ganharam destaque: o Gray Rock Method e o Yellow Rock Method.
O método "Gray Rock" (método da "rocha cinzenta") consiste em adotar deliberadamente uma postura neutra, previsível e pouco estimulante durante as interações com o narcisista. A metáfora é simples: tal como uma pedra cinzenta na berma da estrada, a sua presença não desperta interesse. A pessoa visada reduz expressões emocionais, limita detalhes nas respostas e evita oferecer qualquer material que possa ser usado para provocar ou manipular. Não se trata de ser hostil, mas sim de ser desinteressante. Por exemplo, se o narcisista fizer uma pergunta pessoal, a resposta poderá ser curta e factual: "Sim, está tudo bem" ou "Foi um dia normal", sem acrescentar pormenores. Ao não oferecer drama nem reação, o alvo retira ao narcisista o "combustível emocional" de que este se alimenta.
Esta técnica exige mais do que simples contenção verbal pois requer autocontrolo emocional profundo. O narcisista tentará, consciente ou inconscientemente, testar fissuras: fará comentários depreciativos, levantará suspeitas ou criará pequenos conflitos para provocar irritação. A vítima, ao aplicar o Gray Rock, precisa de resistir à tentação de corrigir, defender ou atacar de volta. Isso implica um treino mental quase constante, em que se internaliza a noção de que cada reação dada é um presente entregue ao abusador.
Com o tempo, e se mantida de forma consistente, esta abordagem tende a levar a um afastamento natural. O narcisista, privado do combustível emocional, começa a procurar outras fontes mais reativas. Contudo, há armadilhas: a frieza pode ser mal interpretada por terceiros que desconheçam a dinâmica abusiva, e em contextos onde é preciso manter algum grau de cordialidade, como numa co-parentalidade, a postura de pedra pode ser usada contra a própria vítima como prova de que é insensível ou cooperativa apenas de forma mínima.
Na implementação deste método dever-se-á: a) Evitar discutir ou justificar-se. b) Limitar respostas a "sim", "não", “"talvez" ou "entendo". c) Não partilhar sentimentos, planos ou opiniões. d) Usar linguagem corporal neutra, evitando expressões faciais marcadas. e) Evitar qualquer sinal de irritação, frustração ou tristeza uma vez que estes são gatilhos para o narcisista.
Vantagens: Reduz drasticamente o potencial de manipulação. Pode ser aplicado em ambientes inevitáveis (trabalho, família). Gera, a médio prazo, um afastamento natural do narcisista.
Desvantagens: Difícil de manter em interações prolongadas. Pode ser interpretado como frieza excessiva por terceiros. Não é adequado em situações onde é necessário manter algum grau de empatia aparente (e.g. co-parentalidade).
O método "Yellow Rock" (método da "rocha amarela") é uma variação que mantém a firmeza do Gray Rock mas acrescenta uma camada de cordialidade superficial. O termo foi popularizado por Tina Swithin, especialista em relações abusivas, e parte do princípio de que, em certos contextos, como a co-parentalidade ou relações profissionais, a frieza total do Gray Rock pode ser interpretada como hostilidade e usada contra a vítima (e.g. em tribunal). Assim, o Yellow Rock equilibra a neutralidade emocional com uma comunicação polida e cortês. É como oferecer uma pedra… mas pintada de amarelo: firme, imutável, mas aparentemente calorosa. Numa interação, isto pode traduzir-se em respostas curtas, objetivas, mas com uma saudação ou um "obrigado" no final. Por exemplo: "Obrigado pela informação. Confirmo que recebi o documento."
Na implementação deste método dever-se-á: a) Responder com cortesia, mas de forma breve e objetiva. b) Reconhecer o que o outro diz sem se comprometer emocionalmente. c) Usar frases neutras como "Agradeço a atualização" ou "Entendi a sua posição". e) Evitar temas pessoais ou emocionais, mantendo a conversa no estritamente necessário.
Vantagens: Útil em relações que exigem comunicação contínua (e.g. co-parentalidade, negócios). Mantém a imagem de cordialidade, dificultando acusações de frieza ou hostilidade. Evita escaladas de conflito enquanto preserva a segurança emocional.
Desvantagens: Pode ser exaustivo manter a fachada de cortesia. Risco de o narcisista tentar testar os limites com insistência. Menos eficaz se o abusador procura interações mais prolongadas.
A escolha entre Gray Rock e Yellow Rock depende de fatores como:
Natureza da relação: se é estritamente pessoal e não há obrigações legais ou de contacto, o Gray Rock tende a ser mais seguro. Em contextos que exigem interações obrigatórias, o Yellow Rock evita acusações de má-fé.
Intensidade do comportamento abusivo: se o narcisista procura constantemente reações emocionais, o Gray Rock pode ser mais eficaz. Se recorre a ataques indiretos ou manipulação institucional, o Yellow Rock oferece uma proteção adicional.
Objetivo da interação: Se o propósito é apenas sobreviver ao encontro, Gray Rock. Se é necessário manter um registo de comunicação funcional que possa ser usado como prova, Yellow Rock.
Em suma, o Gray Rock é mais indicado para situações em que se deseja o afastamento progressivo e em que a interação é inevitável mas pouco frequente. O Yellow Rock é preferível quando a comunicação é obrigatória por razões legais, familiares ou profissionais, e onde manter uma aparência de civilidade é benéfico para a imagem da vítima.
Importa sublinhar que ambas as técnicas exigem treino e consistência. A vítima precisa de aprender a gerir as próprias reações internas, algo que não se alcança apenas atuando como uma "rocha". O trabalho interno inclui reconhecer gatilhos, manter um registo mental ou escrito das interações e desenvolver uma consciência constante de que o narcisista poderá estar a testar limites. Este processo também pode implicar lidar com desconforto, uma vez que o silêncio emocional vai contra a resposta humana natural de se explicar ou defender.
Erros comuns na aplicação destes métodos incluem responder com sarcasmo pois abre porta para conflito, usar Gray Rock mas ceder ao reagir emocionalmente em determinados momentos, confundir no Yellow Rock cortesia com disponibilidade acabando por fornecer informação pessoal, e falar demais para preencher silêncios, o que pode alimentar o narcisista.
Muitos sobreviventes relatam que no início a aplicação do Gray Rock ou Yellow Rock pode aumentar temporariamente as tentativas de provocação. Isto acontece porque o narcisista percebe que o seu fornecimento emocional está em risco e intensifica os esforços para o recuperar, um fenómeno conhecido como "extinction burst". É essencial manter a estratégia mesmo perante esta escalada, pois a consistência é a chave para que a técnica funcione a médio prazo.
Tanto no Gray como no Yellow Rock, as mensagens centrais são: não alimentar o conflito reduzindo as reações emocionais de forma a impedir que a interação se transforme num drama, manter o controlo emocional focando-se em factos e evitando justificações ou discussões, e proteger a própria energia pois não se trata de convencer o narcisista, mas de preservar a estabilidade interna.
Marta sempre foi conhecida pelos amigos como alguém generosa, paciente e disposta a ajudar. No início do seu relacionamento com André, sentiu que tinha finalmente encontrado alguém que apreciava essas qualidades. Ele parecia atencioso, interessado e constantemente a elogiava por ser a pessoa mais compreensiva que já conhecera. Contudo, à medida que os meses passavam, Marta começou a notar pequenos comportamentos que a deixavam desconfortável: decisões tomadas sem a sua opinião, comentários depreciativos disfarçados de brincadeira, e uma insistência para que ela mudasse diversos aspetos da sua rotina para o bem do relacionamento.
A primeira vez que Marta tentou impor um limite foi quando pediu ao André para ajudar nas lides da casa que ambos partilhavam mas paga e mantida inteiramente por Marta. Quando lhe propôs que seria importante ambos participarem na arrumação e limpeza da casa, André reagiu com uma mistura de incredulidade e raiva. Chamou-a de "controladora" e argumentou que se a casa estava arrendada por ela, seria ela a responsável por a manter. Esta reação fez Marta duvidar de si própria e questionar se não estaria a ser demasiado exigente.
Este padrão repetiu-se noutras situações. Quando Marta tentava impor limites sobre conversas que a faziam sentir-se desconfortável, André reagia com manipulação emocional, seja minimizando os sentimentos dela, seja fazendo-se de vítima. Ao não conseguir manter os limites, Marta começou a sentir-se cada vez mais controlada e emocionalmente exausta. A ausência de fronteiras claras deu a André espaço para invadir todas as áreas da vida dela: amizades, família, carreira e até os seus momentos de lazer.
O ponto de viragem surgiu quando, após mais uma discussão, Marta percebeu que passara o fim de semana inteiro a tentar acalmar André em vez de descansar e cuidar de si. Sentia-se drenada, com insónias e ansiedade crescente. Foi então que, numa conversa com uma amiga de infância, ouviu pela primeira vez a expressão "manter limites não é egoísmo, é autopreservação". Essa frase marcou-a profundamente e levou-a a procurar mais informação sobre o tema. Ao ler sobre relacionamentos abusivos e dinâmicas de poder, reconheceu vários padrões que se encaixavam no comportamento de André.
Com este novo entendimento, Marta decidiu começar a reconstruir as suas fronteiras pessoais. Em vez de tentar justificar cada limite que estabelecia, passou a afirmar de forma calma e direta aquilo que estava disposta a aceitar e aquilo que não estava. Por exemplo, disse a André: "Se partilhamos a mesma habitação é justo que ambos participemos no seu pagamento e manutenção" Esta abordagem simples, mas firme, fez com que as primeiras tentativas de impor limites fossem difíceis e tensas uma vez que André reagiu com acusações, silêncios prolongados e críticas veladas.
Contudo, Marta aprendeu a não ceder apenas para evitar conflitos. Descobriu que cada vez que mantinha um limite, fortalecia a sua autoconfiança e diminuía o espaço para que André controlasse a sua vida. Ao mesmo tempo, procurou criar um plano de apoio com pessoas de confiança, partilhando as dificuldades que enfrentava e pedindo que a ajudassem a manter-se firme. Este círculo de suporte não só lhe deu coragem, como também funcionou como um lembrete de que impor limites não é uma forma de afastar pessoas, mas sim de manter relações mais equilibradas.
O processo não foi linear. Houve recaídas, momentos de dúvida e conversas carregadas de tensão. Mas Marta percebeu que impor limites não é um evento único, é um processo contínuo que requer consistência. Com o tempo, e perante a resistência persistente de André, começou a considerar se a relação era compatível com o seu bem-estar emocional. Ao reconhecer que a imposição de limites tinha como objetivo proteger a sua saúde mental, e não mudar o comportamento dele, conseguiu tomar decisões mais conscientes sobre o seu futuro.
A história de Marta ilustra como a ausência de limites claros pode permitir que um relacionamento se torne sufocante e prejudicial, e como o ato de estabelecê-los exige coragem, paciência e autoconhecimento. Mais importante ainda, mostra que a imposição de fronteiras não é um gesto de frieza, mas sim um passo essencial para preservar a integridade pessoal e criar um espaço onde o respeito possa existir.
Quando um indivíduo permanece, durante um período prolongado, numa relação com alguém com PPN, aprende frequentemente, pela experiência direta, que reagir com emoção é, muitas vezes, fornecer ao agressor exatamente o que este procura: validação, controlo e material para manipulação.
A técnica DEEP foi criada pela Dra. Ramani Durvasula, uma das maiores especialistas mundiais em narcisismo, como uma ferramenta estratégica para ajudar as pessoas a protegerem-se em interações com indivíduos que exibem traços narcisistas ou de alta conflitualidade. Consiste em quatro princípios centrais:
Don’t Defend: Não defender
Don’t Engage: Não envolver
Don’t Explain: Não explicar
Don’t Personalize: Não personalizar
O objetivo desta abordagem não é induzir frieza ou simular indiferença. Trata-se, antes, de uma estratégia de autopreservação. Isto é, um método deliberado e treinável que estabelece uma barreira entre a experiência interna (o que se sente) e a resposta externa (o que se diz ou faz). Ao reduzir a resposta a provocações, diminuem-se as oportunidades do narcisista para criar conflito, ao mesmo tempo que se amplia o espaço mental necessário para pensar, decidir e proteger-se.
Este princípio tem como objectivo interromper o impulso de se justificar perante um ataque. Explicar em detalhe por que razão se agiu de determinada forma, ou como se interpretou um evento, fornece ao narcisista novos elementos para exploração hostil. O objetivo do agressor raramente é a verdade mas sim a reação. A defesa prolongada converte-se em matéria-prima para manipulação: frases retiradas de contexto, emoções transformadas em provas de instabilidade ou contradições fabricadas. Este ciclo cessa quando a vítima aprende a não se justificar em cenários onde tal é inútil. Importa sublinhar que "não defender" não significa omitir verdades relevantes em contextos adequados, mas sim preservar energia quando a defesa é ineficaz ou contraproducente.
Aplicar esta tática exige, em primeiro lugar, identificar os próprios gatilhos emocionais. Narcisistas tendem a arrastar a vítima para discussões prolongadas, interrupções constantes e trocas acesas de acusações. Participar nesses confrontos conduz inevitavelmente à perda de tempo, energia e clareza. Não agir, neste contexto, não significa abdicar da palavra, mas sim temporizar. Uma resposta breve e neutra, como "não estamos a construir nada com esta conversa neste momento", ou a retirada consciente do diálogo constituem atos assertivos. Ao recusar-se a integrar o teatro emocional, corta-se a principal fonte de abastecimento do narcisista: a reação da vítima. Não se trata de inação passiva, mas de um gesto consciente de proteção.
Este princípio complementa os anteriores. Ao fornecer explicações, a vítima oferece ao narcisista uma narrativa, que será fragmentada e distorcida para servir os interesses do agressor. Explicar neste contexto é, em essência, tentar persuadir alguém que não deseja ser persuadido. Abster-se de explicações significa preservar a versão dos factos para si e para pessoas ou instâncias que sejam verdadeiramente de confiança. Em contextos profissionais, tal pode traduzir-se em "documentei o processo e envio por escrito" em vez de "eu fiz assim porque…". Em relações íntimas, pode significar "não tenho nada a acrescentar" em vez de entrar em justificações emocionais que prolongam o ciclo abusivo.
Ataques narcisistas frequentemente assumem caráter pessoal, pois o agressor conhece quais são os pontos mais sensíveis da vítima. Aprender a não personalizar requer treino mental para reconhecer que insultos e críticas dizem mais sobre a fragilidade e insegurança do emissor do que sobre o valor ou identidade do destinatário. O impacto diminui quando tais ataques são compreendidos como projeções, estratégias de controlo ou mecanismos defensivos do outro. Não personalizar não significa negar a dor causada, mas sim reduzir o sofrimento secundário resultante da ruminação e da internalização.
Na aplicação prática, a utilização da técnica DEEP não é um processo linear ou automático. Requer treino consistente e o desenvolvimento gradual de micro-hábitos. O primeiro passo consiste na observação consciente: quando o interlocutor profere uma afirmação que, em circunstâncias normais, provocaria uma reação emocional intensa, deve-se interromper o impulso inicial, realizar três respirações profundas, criar mentalmente uma pausa de alguns segundos e apenas então selecionar a resposta mais adequada. É natural que, nas primeiras tentativas, surjam sinais de desconforto físico ou emocional, mas, com a repetição, a intensidade da reação tende a diminuir.
Entre os principais obstáculos à aplicação do método destaca-se a necessidade de abdicar da última palavra ou da defesa imediata da própria reputação. Contudo, ao longo do tempo, o benefício mais evidente é a preservação da energia emocional e o aumento da clareza mental para avaliar riscos e planear ações, incluindo eventuais estratégias de afastamento.
A técnica mostra-se especialmente eficaz em contextos de elevada carga emocional, como interações com ex-parceiros que procuram reativar conflitos para provocar reações, reuniões de trabalho com superiores hierárquicos que desvalorizam sistematicamente contribuições, ou encontros familiares em que a figura narcisista tenta monopolizar a narrativa. Nestas situações, o DEEP atua como um escudo temporário, minimizando danos emocionais, preservando a reputação, evitando envolvimento em confrontos públicos, e proporcionando espaço para documentar factos, procurar apoio externo e agir de forma calculada.
É, contudo, fundamental reconhecer que o DEEP tem limitações. A sua utilização prolongada, como única estratégia em relações íntimas marcadas por abuso intenso, pode levar a um estado de anestesia afetiva, no qual a vítima perde gradualmente a conexão com as próprias necessidades emocionais. Por esta razão, o método deve ser complementado com outras intervenções, como a definição clara de limites, o acompanhamento terapêutico, o planeamento de saída da relação e, quando necessário, a implementação de medidas legais ou de segurança. Importa também criar espaços seguros para a expressão emocional saudável, de forma a evitar que o desapego se confunda com repressão de sentimentos legítimos.
O treino do DEEP implica práticas deliberadas e consistentes. Entre estas, incluem-se o ensaio de respostas neutras, a elaboração de frases curtas que possam ser utilizadas em momentos de vulnerabilidade, o registo sistemático de interações para identificação de padrões e a utilização de técnicas de mindfulness ou respiração controlada para interromper impulsos reativos. Um exercício útil consiste em adotar a perspetiva de observador técnico, considerando o comportamento do outro como um mecanismo previsível, reduzindo assim a carga emocional do episódio. Da mesma forma, a criação de um repertório mental de respostas seguras como "Não pretendo discutir este assunto neste momento", "Podemos falar mais tarde por escrito" ou "Não tenho nada a acrescentar", fornece ferramentas práticas para manter o controlo da interação.
É igualmente importante salientar que, em fases iniciais, a aplicação do DEEP pode desencadear uma escalada no comportamento da pessoa narcisista. A redução da fonte de abastecimento emocional conduz frequentemente ao que se designa por "extinction burst", isto é, uma intensificação temporária das provocações, crises ou ameaças com o intuito de recuperar o controlo. Prever esta reação e manter a postura é essencial para o sucesso da técnica. A elaboração prévia de um plano de segurança emocional, como contactar uma pessoa de confiança após uma interação difícil, pode ser determinante para evitar recaídas.
Em síntese, o DEEP constitui uma ferramenta de autogestão emocional e autoproteção, capaz de reduzir o impacto da manipulação e criar um espaço mental mais seguro para decisões racionais. Não deve ser entendido como um objetivo final, mas como parte integrante de um conjunto de estratégias mais abrangentes que visam preservar a saúde psicológica, promover a autonomia e, sempre que possível, facilitar uma saída segura de contextos abusivos.
Beatriz conheceu o Rui numa conferência de tecnologia. A atracção foi imediata: ele era eloquente, ria das coisas certas, parecia genuinamente interessado nas suas ideias. Durante os primeiros meses, Rui mostrava um lado que Beatriz descrevia depois como luminoso: mensagens atenciosas, elogios públicos e convites para projetos partilhados. Mas, gradualmente, quando a relação deixou a arena pública e ficou com mais intimidade, Rui mudou. Comentários sarcásticos sobre as roupas dela, pequenas humilhações em privado e exigências subtis sobre a disponibilidade de Beatriz tornaram-se normais. Quando ela reagia, Rui voltava a encantar, a chorar e a prometer que nunca mais voltaria a agir assim. Esses ciclos repetiam-se com uma regularidade que, passados dois anos, já tinha corroído a confiança de Beatriz.
No trabalho, Rui era um engenheiro com capacidade para se mostrar grandioso. Quando Beatriz quis apresentar uma proposta conjunta, ele disse sim à frente de todos, mas nas reuniões subsequentes propunha outra direção e insinuava à equipa que ela não tinha pensado naquela vertente. Beatriz sentia a raiva subir, e por isso explicava e justificava o seu raciocínio, acabando exausta. Em casa, as coisas não eram melhores: Rui tinha o hábito de comentar com ironia pequenas falhas dela e usar frequentemente mensagens passivo-agressivas.
Um dia, perante um comentário particularmente cruel sobre uma decisão profissional que ela tinha tomado, Beatriz sentiu algo diferente: exaustão e o desejo sincero de não se perder numa discussão interminável. Foi nessa semana que começou a ler sobre dinâmicas abusivas. Encontrou a técnica DEEP e decidiu aplicá-la pela primeira vez, com um objectivo modesto: não transformar aquela noite numa batalha.
Quando Rui começou com as insinuações, Beatriz conteve o impulso de rebater. Em vez de se defender, respirou profundamente e respondeu com a frase que tinha treinado: "Não vou discutir isso agora". Rui, surpreso, empurrou mais: "Então vais ficar calada quando eu te critico?" Em vez de explicar, Beatriz limitou-se a repetir calmamente: "Não vou discutir isso agora". Ele aumentou o tom, tentou envolvê-la com acusações sobre quem era e o que ela devia sentir. Beatriz podia sentir a antiga urgência de contar toda a sua história, de justificar cada passo. Mas não explicou. Não defendeu. Não personalizou. Ouviu o eco das palavras duras e cruéis do Rui, não como verdades sobre ela, mas como sinais de frustração dele. No fim, ela levantou-se, foi para outro quarto e telefonou a uma amiga. No silêncio entre ambos ficou uma sensação nova: o ataque não tinha provocado a tempestade interna habitual.
Ao longo das semanas seguintes, praticou novamente. Houve noites piores, em que Rui mostrou maior fúria fria e tentou quebrar a sua estratégia com chantagens emocionais, choros e acusações públicas. Numa dessas ocasiões, Rui começou a chorar e disse que tudo tinha sido por causa do trabalho dela, que se ela amasse mais a família isto não aconteceria. Foi tentador persuadir-o de que o contrário era verdade. Beatriz, treinada, limitou-se a uma frase curta: "Percebo a tua tristeza" e retirou-se. Porque não tinha de provar-lhe o amor. Porque sabia agora que as lágrimas dele eram muitas vezes mecanismo para reaver controlo e que envolver-se emocionalmente apenas prolongaria a relação tóxica.
Com o tempo, a frequência dos confrontos intensos diminuiu. Rui percebeu que não tinha a mesma fonte de reação em Beatriz. A redução progressiva das tentativas de manipulação do Rui não foi sinal de recuperação ética deste, mas a confirmação de que a estratégia de Beatriz funcionava para reduzir a toxicidade imediata.
Contudo a utilização da abordagem DEEP trouxe também consequências internas para Beatriz. No início sentiu-se entorpecida, culpada por não falar até ao fim, e com a sensação de um distanciamento afetivo. Foi aí que entendeu que DEEP não era suficiente. Precisava de terapia, de redes de apoio, e de alternativas práticas. Começou a planear um futuro em que o seu bem-estar fosse prioridade. Documentou episódios, guardou mensagens, procurou aconselhamento legal sobre partilha de bens e, mais importante, reestabeleceu a ligação com amigas que a ajudaram a validar as suas experiências.
Meses depois, quando houve uma discussão em que Rui demonstrou claramente comportamento manipulador perante outras pessoas, Beatriz, com serenidade, levantou-se, pegou nas suas coisas e foi embora. Não foi um acto de frieza, foi um acto de clareza. Depois de romper, percebeu que DEEP lhe tinha dado precisamente isso: a energia e a lucidez para pôr em prática uma decisão pensada. Nos meses seguintes, a recuperação foi lenta, surgindo momentos de dúvida, mas também uma sensação de recuperação da própria voz.
A história de Beatriz ilustra como DEEP pode reduzir danos imediatos e criar a base para uma ação estratégica. Mostra também que DEEP não substitui apoio profissional nem planos de segurança. É antes uma técnica que devolve poder à pessoa que foi habituada a dá-lo.
Gerir expectativas é uma das competências mais cruciais para quem lida com uma pessoa com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). É também, paradoxalmente, uma das áreas em que as vítimas mais sentem frustração, porque o seu instinto inicial é acreditar que, se se comunicarem com clareza, demonstrarem boa-fé e apresentarem provas ou argumentos racionais, o narcisista acabará por compreender o ponto de vista e agir de forma justa. Na realidade, esse raciocínio parte de uma premissa errada: que o narcisista valoriza reciprocidade, lógica ou empatia de forma semelhante à de uma pessoa saudável. Por essa razão é necessário reconhecer que o comportamento do narcisista não é resultado de mal-entendidos ocasionais ou de dias maus, mas sim de um padrão consistente e profundamente enraizado. Este padrão caracteriza-se pela falta de empatia, pela manipulação, pela exploração emocional e pela necessidade constante de controlar a narrativa. Quando a vítima espera que o narcisista reaja de forma sensível, reconheça erros, ou ofereça apoio genuíno, está a criar um terreno fértil para a frustração e para a perpetuação do ciclo de abuso.
O primeiro passo para gerir expectativas é compreender que as interações com um narcisista raramente resultam numa mudança genuína e duradoura de comportamento. Se ocorrerem momentos de aparente compreensão ou de boa conduta, estes tendem a ser temporários e frequentemente motivados por interesse próprio, seja para evitar consequências, obter algo ou manipular a percepção que os outros têm da relação. Uma das dificuldades mais comuns neste processo é a presença da "memória seletiva afetiva", momentos em que a vítima recorda episódios raros de afeto ou generosidade do narcisista e, a partir deles, alimenta a esperança de que tal comportamento possa tornar-se constante. No entanto, esses episódios tendem a ser estratégicos, surgindo em momentos de risco para o narcisista, como quando sente que está a perder o controlo sobre a vítima, ou quando precisa de manter uma determinada imagem social. Reconhecer este padrão ajuda a desmontar a ilusão de que tais momentos representam uma mudança real. Um exemplo clássico: após um período de abuso verbal intenso, o narcisista pode demonstrar um súbito comportamento atencioso, como cozinhar um jantar ou fazer um elogio, criando a ilusão de progresso. Este comportamento não é necessariamente sinal de mudança real, mas sim parte de um ciclo que mantém a vítima emocionalmente investida.
Gerir expectativas implica ajustar o seu ponto de referência emocional e mental. Em vez de esperar consistência, deve preparar-se para imprevisibilidade. Isto não significa resignar-se a maus-tratos, mas sim proteger-se emocionalmente ao deixar de esperar que o outro corresponda de forma equilibrada ou madura. É como ajustar a forma como se segura um copo rachado: sabe que ele pode partir-se a qualquer momento, por isso não o segura com a mesma confiança que teria com um copo intacto.
Outro elemento essencial é definir internamente o que é aceitável para si, em vez de deixar que o narcisista dite os termos. Muitas vítimas caem na armadilha de medir o sucesso da relação pela ausência temporária de abuso, aceitando um padrão mínimo apenas porque é melhor do que o pior cenário vivido anteriormente. Esta "normalização do mínimo" enfraquece a perceção daquilo que merecem. Ao gerir expectativas, é necessário manter presente que a ausência de abuso não é sinónimo de saúde relacional, e que o objetivo deve ser sempre preservar a sua integridade emocional. Um exemplo prático: imagine que está a lidar com um colega narcisista num projeto de trabalho. Sempre que se aproxima a data de entrega, ele tende a desaparecer, deixando a responsabilidade para si, mas ocasionalmente oferece ajuda de última hora. Se mantiver a expectativa de que um dia ele se tornará um parceiro de equipa consistente, ficará repetidamente frustrado. Em vez disso, se assumir que ele provavelmente não mudará e preparar um plano alternativo para concluir o trabalho sem depender dele, ganhará autonomia e reduzirá o impacto emocional da sua conduta.
Gerir expectativas também implica preparar-se para a reação do narcisista quando percebe que já não consegue manipular tão facilmente. É comum que, perante a perda de controlo, surjam tentativas de intensificar o drama, gerar culpa ou criar conflitos com terceiros para o isolar. Ao estar consciente desta possibilidade, é mais fácil não ser apanhado de surpresa.
Gerir expectativas envolve também aceitar que não haverá reciprocidade emocional no sentido tradicional. Enquanto numa relação saudável o cuidado, o respeito e o apoio são mútuos, na relação com um narcisista a vítima é frequentemente levada a investir emocionalmente sem receber proporcionalmente de volta. Esta assimetria torna essencial definir metas realistas para cada interação. Por exemplo, se a vítima precisa comunicar um limite, a expectativa não deve ser que o narcisista o aceite ou respeite de imediato, mas sim que a mensagem seja transmitida de forma clara, como parte de um processo de autoafirmação, independentemente da reação recebida.
Outro ponto crucial é compreender que gerir expectativas é um exercício contínuo e dinâmico. As circunstâncias mudam, e a forma como o narcisista interage pode variar consoante a sua percepção de poder e controlo no momento. A vítima precisa de estar preparada para ajustar as suas expectativas em tempo real, sem se deixar prender pelo desejo de estabilidade emocional que o narcisista raramente oferece.
Em suma, gerir expectativas é aprender a alinhar as próprias esperanças com a realidade observada, de forma a reduzir a exposição à frustração e ao desgaste emocional. Trata-se de um ato de maturidade emocional e de autocuidado, que permite à vítima preservar energia e investir em áreas da vida que estejam fora do alcance do controlo do narcisista. No fundo, gerir expectativas é aprender a viver com clareza: saber que não pode mudar o outro, mas pode mudar a forma como responde e se posiciona. Isso requer disciplina emocional, autoconhecimento e, muitas vezes, o apoio de pessoas externas à relação que possam validar a sua experiência e reforçar os seus limites. Assim, gerir expectativas significa ajustar a visão que se tem da relação para que esta seja baseada na realidade observada e não na esperança ou na fantasia de uma mudança significativa.
Ana, uma profissional dedicada de 38 anos, trabalhava numa empresa de marketing onde o seu chefe, Miguel, era reconhecido pela sua presença carismática e aparente competência. Com o tempo, Ana começou a perceber que Miguel tinha um padrão peculiar de lidar com a equipa: elogiava publicamente apenas quando queria reforçar a sua própria imagem, mas ignorava ou desvalorizava os esforços nos momentos em que não tinha nada a ganhar com isso.
Num projeto particularmente importante para um cliente de grande visibilidade, Ana trabalhou durante semanas com dedicação, sacrificando fins de semana e horas de descanso. Miguel, durante esse período, prometeu-lhe várias vezes que iria reconhecer o seu trabalho junto da direção e que isso abriria portas para uma promoção. As palavras dele eram sempre calorosas e convincentes, ditas num tom que fazia parecer que a promoção era inevitável.
O projeto terminou com grande sucesso, o cliente elogiou a apresentação e até enviou um email formal de agradecimento. Ana, sentindo que finalmente iria ver o seu esforço reconhecido, aguardou ansiosamente a reunião da equipa. No entanto, Miguel apresentou os resultados como fruto do trabalho conjunto liderado por ele, omitindo por completo o papel central de Ana. Não houve menção à promoção e, quando ela tentou abordar o assunto, Miguel respondeu com um sorriso enigmático: "Tudo a seu tempo, Ana. Preciso que continues a dar o teu melhor. As boas oportunidades chegam para quem sabe esperar."
Esta situação repetiu-se noutros contextos. Sempre que Ana cumpria ou excedia expectativas, surgia uma nova desculpa para adiar qualquer reconhecimento formal. Por vezes, Miguel usava justificações externas, como "a empresa está em reestruturação", e noutras vezes recorria a insinuações subtis, sugerindo que ela ainda não tinha provado ser suficientemente leal. Em alguns momentos, para evitar que Ana perdesse completamente a motivação, oferecia-lhe pequenas atenções: um elogio privado, um almoço pago ou a oportunidade de liderar uma reunião. Esses gestos, porém, nunca se traduziam em mudanças reais.
Durante meses, Ana viveu num estado de expectativa constante, oscilando entre esperança e frustração. Cada nova promessa parecia ser o início de uma viragem, mas acabava por ser apenas mais um elo na corrente do adiamento. O desgaste emocional acumulou-se, levando-a a questionar as suas próprias competências e a sentir-se cada vez mais presa à necessidade de provar o seu valor.
O momento de viragem deu-se quando, numa conversa informal com um ex-colega, Ana descobriu que Miguel tinha um histórico de prometer promoções e oportunidades que nunca se concretizavam. Este padrão não era exceção, mas sim a forma habitual de manter subordinados motivados sem ter de ceder poder ou recursos.
Ao perceber isto, Ana começou a reajustar as suas expectativas. Em vez de esperar que Miguel fosse cumprir as promessas, passou a encarar cada interação como uma negociação estratégica, onde o objetivo era garantir condições concretas e mensuráveis antes de investir esforço extra. Paralelamente, começou a procurar reconhecimento fora do círculo imediato de Miguel, apresentando o seu trabalho diretamente à direção sempre que possível e fortalecendo a sua rede profissional.
Ao longo do tempo, este novo posicionamento permitiu-lhe reduzir a frustração, preservar a autoestima e, eventualmente, encontrar uma oportunidade noutra empresa que valorizava de forma real e consistente o seu contributo.
O caso de Ana mostra que gerir expectativas não é um ato de desistência, mas sim de realinhamento com a realidade. Ao deixar de esperar que Miguel fosse alguém que não era, ela recuperou o controlo sobre as suas decisões e direcionou a sua energia para espaços onde poderia crescer sem estar dependente de falsas promessas.
Num contexto de interação com uma pessoa com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), a capacidade de manter registos precisos e organizados é mais do que uma simples questão de prudência, é uma estratégia de autoproteção fundamental. Muitos sobreviventes relatam que, após um período prolongado de abuso psicológico, as suas próprias memórias começam a ser corroídas pelo gaslighting sistemático. Situações concretas e acontecimentos objetivos acabam distorcidos, não apenas na mente do abusador, mas também na da própria vítima, que começa a duvidar da sua perceção da realidade. É aqui que a documentação consistente se torna vital: serve como âncora factual num mar de manipulação.
O manter de evidências não se resume a apenas a registar grandes incidentes de abuso ou momentos de conflito aberto. A manipulação narcisista é frequentemente subtil, manifestando-se em pequenas interações diárias, como mudanças repentinas de tom, promessas feitas e quebradas, insinuações depreciativas, ou alterações seletivas na história contada pelo abusador. Quando registadas de forma sistemática e objetiva, essas pequenas peças formam um padrão visível que seria difícil de demonstrar se dependesse apenas da memória.
A documentação deve ser factual e desprovida de interpretações emocionais. Em vez de escrever "Ele estava furioso comigo sem razão", é mais útil registar algo como "Às 19h10, quando lhe perguntei sobre a fatura de eletricidade, respondeu com voz elevada: 'Estás sempre a inventar problemas' e saiu da sala batendo a porta". Este tipo de relato é objetivo, descrevendo o que foi dito e feito, sem acrescentar julgamentos que possam ser contestados.
Existem várias formas de manter estes registos. Um diário escrito à mão pode ser eficaz, desde que guardado num local seguro e inacessível à pessoa abusiva. No entanto, registos digitais encriptados, aplicações seguras de notas, ou mesmo e-mails enviados para uma conta pessoal privada, podem oferecer vantagens adicionais, como a possibilidade de adicionar anexos (e.g. fotografias, gravações de áudio, capturas de ecrã). É importante também fazer cópias de segurança em locais independentes, por exemplo, numa pen drive guardada na casa de um amigo de confiança, para prevenir que as provas sejam destruídas.
A documentação não se limita a palavras. Mensagens de texto, e-mails, registos de chamadas, capturas de ecrã de interações em redes sociais, e até fotografias de objetos danificados ou de ferimentos, quando relevantes, podem ser cruciais. Em casos de abuso financeiro, guardar recibos, extratos bancários, comprovativos de transferências e faturas é igualmente importante. Tudo isto cria uma linha temporal objetiva que poderá ser útil não apenas para clarificar a realidade para si próprio, mas também para profissionais de saúde mental, advogados ou autoridades policiais.
Além do valor jurídico e de proteção, manter registos ajuda psicologicamente. Ao rever entradas anteriores, a vítima consegue perceber padrões que talvez não fossem óbvios no momento em que cada incidente ocorreu. Por exemplo, pode notar que certos episódios de raiva surgem sempre após receber boas notícias profissionais, ou que as críticas aumentam antes de reuniões familiares. Esta consciência pode ajudar a preparar-se emocionalmente e a antecipar estratégias defensivas.
É fundamental, no entanto, que este processo seja feito com segurança. Uma das táticas mais comuns do narcisista é reverter a acusação, apresentando-se como vítima e alegando que o outro está a espionar ou a inventar histórias. Por isso, os registos devem estar fora do alcance da pessoa abusiva. Nunca deve confrontar o narcisista diretamente com esses documentos, a menos que esteja a fazê-lo com apoio legal e num contexto seguro.
No fim, a documentação é um ato silencioso de resistência. Enquanto o narcisista procura reescrever a história a seu favor, a vítima, ao registar cuidadosamente cada passo, preserva a sua verdade. E, em situações em que a sua palavra possa ser posta em causa, esses registos tornam-se não apenas uma defesa, mas também uma ferramenta poderosa para recuperar o controlo sobre a narrativa da própria vida.
Helena, professora de 42 anos, vivia com Miguel há mais de uma década. O relacionamento começara com paixão intensa e promessas de uma vida a dois repleta de apoio e cumplicidade. No entanto, com o passar dos anos, o encanto deu lugar a manipulação subtil, críticas constantes e um controlo emocional cada vez mais sufocante. Miguel tinha o hábito de negar acontecimentos passados ou de distorcê-los de forma tão convincente que Helena, por vezes, se via a pedir desculpa por coisas que não tinha feito.
O ponto de viragem ocorreu numa noite de inverno, após uma discussão sobre as finanças domésticas. Helena tinha mencionado que a conta da eletricidade estava elevada, e Miguel reagiu acusando-a de gastar demasiado dinheiro em futilidades, apesar de ser ele quem comprara recentemente uma televisão nova de grande valor. Quando, dias depois, ela mencionou o incidente, Miguel riu-se e disse que nunca tinha dito aquilo, que ela estava a inventar dramas e que precisava de ajuda psicológica para deixar de ser tão paranoica.
Helena começou a duvidar de si mesma, mas algo dentro dela dizia que não estava errada. Decidiu então criar um "arquivo invisível". Comprou um caderno simples, que guardava no fundo da gaveta da secretária na escola onde trabalhava. Começou a registar cada interação problemática, anotando data, hora, local e as palavras exatas que eram ditas. Incluía detalhes sobre o tom de voz, expressões faciais e reações físicas (como portas batidas ou objetos atirados).
Com o tempo, percebeu que precisava de registar também provas mais concretas. Criou um endereço de e-mail que Miguel desconhecia e começou a enviar para lá fotografias de mensagens de texto, capturas de ecrã de conversas e até fotografias de objetos que ele danificava durante acessos de raiva. Para manter a segurança, guardava cópias numa pen drive escondida na casa de uma colega de confiança.
O padrão tornou-se claro: Miguel tinha explosões de raiva sobretudo quando ela tinha conquistas pessoais ou sociais, uma boa avaliação no trabalho, um jantar com amigas, ou elogios recebidos por familiares. Nessas alturas, surgiam discussões aparentemente do nada, que terminavam com insultos dele ou silêncio punitivo durante dias. Outras vezes, ele prometia fazer algo importante (como ajudar a organizar a festa de aniversário da filha) e, no último momento, cancelava, culpando Helena por não o motivar.
O arquivo cresceu ao ponto de Helena ter mais de duzentos registos em menos de um ano. Quando finalmente decidiu procurar apoio legal para pedir o divórcio, apresentou ao advogado o conjunto de provas. Ele ficou impressionado: não se tratava apenas de descrições vagas, mas de um histórico consistente e bem documentado, com datas, horários, citações literais e anexos digitais.
Durante o processo, Miguel tentou acusá-la de ser instável e inventar histórias, mas as provas foram inequívocas. As mensagens, áudios e descrições detalhadas mostravam um padrão de abuso psicológico coerente e repetido. Mais do que convencer o tribunal, os registos ajudaram Helena a reconquistar algo que tinha perdido há muito: a confiança na sua própria perceção.
Hoje, Helena diz que o "arquivo invisível" foi o que lhe salvou a sanidade. Mais do que um conjunto de provas, foi uma ferramenta que a impediu de se perder na narrativa distorcida de Miguel. Ao folhear aquelas páginas, via-se a si própria como realmente era, alguém que dizia a verdade, que tinha vivenciado abuso, e que finalmente tinha uma história sólida para apresentar ao mundo.
Quando alguém percebe que está envolvido numa relação com uma pessoa narcisista, seja ela romântica, familiar, profissional ou de amizade, uma das decisões mais difíceis é definir até que ponto irá manter contacto com essa pessoa. Esta escolha raramente é simples, pois envolve um equilíbrio delicado entre autoproteção, obrigações práticas e, muitas vezes, um peso emocional que não se desfaz de um dia para o outro.
As estratégias mais conhecidas nesta gestão de distância são o "No Contact" (nenhum contacto) e o "Low Contact" (contacto reduzido). Embora pareçam à primeira vista apenas níveis diferentes de comunicação, na prática são estratégias profundamente distintas, com impactos emocionais e logísticos próprios. A compreensão clara destas duas abordagens é essencial para qualquer pessoa que queira proteger-se do ciclo de abuso e manipulação característico do narcisista.
O "No Contact" é, em essência, a decisão de eliminar completamente qualquer forma de interação com o narcisista. Isso significa não atender telefonemas, não responder a mensagens, não manter conversas em redes sociais e evitar, tanto quanto possível, encontros presenciais. O objetivo é quebrar o ciclo de reforço intermitente e privar o narcisista do acesso ao que ele mais deseja: a atenção e a reação da vítima. É uma barreira física, mas sobretudo emocional. "No Contact" não é somente "não falar", é recusar participar no jogo de manipulação.
Esta abordagem é indicada quando, em relações exclusivamente abusivas, sem laços legais ou familiares obrigatórios, em situações de risco elevado para a integridade física ou psicológica, e em casos em que o narcisista já demonstrou comportamentos perigosos ou perseguição.
Por exemplo, uma mulher chamada Ana, que esteve durante anos num relacionamento com Miguel, um narcisista grandioso. Miguel alternava períodos de aparente doçura e cuidado com explosões de raiva, manipulações subtis e gaslighting constante. Cada vez que Ana tentava impor limites, Miguel encontrava formas de a culpar pelos problemas. Quando Ana finalmente decidiu sair, percebeu que qualquer contacto, mesmo que fosse para resolver assuntos pendentes, acabava por reativar a dinâmica abusiva. Por essa razão, adotou o "No Contact": bloqueou números, restringiu o acesso às suas redes sociais e pediu a amigos que não lhe transmitissem mensagens indiretas de Miguel. No início, esta decisão trouxe-lhe um misto de alívio e ansiedade. Alívio porque finalmente tinha paz no dia a dia, ansiedade porque a ausência de contacto também significava enfrentar o vazio emocional e quebrar um hábito que, embora doloroso, lhe era familiar. Mas, com o tempo, Ana percebeu que o corte total foi a única forma eficaz de reconstruir a sua autonomia emocional.
O "No Contact", porém, exige planeamento. Quando há filhos em comum, obrigações legais ou questões profissionais inevitáveis, este corte absoluto pode ser inviável. E é aí que entra a alternativa.
O "Low Contact" é a opção para quem não pode cortar totalmente o contacto, mas quer reduzir a exposição ao abuso. Aqui, a interação é limitada ao estritamente necessário, de forma objetiva e sem abrir espaço para manipulação emocional. No "Low Contact", cada troca de palavras é pensada como se fosse uma transação administrativa: curta, factual, e sem conteúdo emocional. O objetivo é minimizar os pontos de entrada para o narcisista explorar fragilidades.
Esta abordagem é indicada quando ocorre a presença inevitável do(a) narcisista na vida da vítima (e.g. coparentalidade), situações em que o corte total é impraticável ou arriscado, e casos em que a vítima ainda está a planear a saída e precisa manter alguma interação estratégica.
Por exemplo, João, divorciado e com dois filhos, mantém um regime de custódia partilhada com Carla, a sua ex-mulher narcisista. João sabe que Carla procura provocar discussões para o desestabilizar e recolher material que possa usar contra ele. Para se proteger, João adota o "Low Contact": só fala com Carla sobre assuntos relacionados com os filhos, mantém as mensagens escritas de forma simples ("A entrega será às 18h na escola"), e nunca responde a provocações ou comentários pessoais.
O objectivo do "Low Contact" é não alimentar a narrativa do narcisista. Qualquer resposta emocional, mesmo que seja para se defender ou corrigir uma mentira, pode ser usada contra si. Por isso, a comunicação é quase robótica, usando frases curtas e neutras, evitando justificações ou explicações adicionais.
A decisão entre "No Contact" e "Low Contact" raramente é definitiva desde o início. Muitas pessoas começam pelo "Low Contact", como medida de transição, até estarem preparadas para o "No Contact". Outras, por circunstâncias legais ou familiares, terão de manter-se no "Low Contact" indefinidamente, mas podem reforçar a sua proteção emocional através de técnicas como o método DEEP.
De salientar que o "No Contact" exige preparação emocional, planeamento prático e uma rede de apoio sólida. É uma decisão que pode trazer reações agressivas ou manipulações intensificadas por parte do narcisista, e por isso deve ser tomada com plena consciência e suporte. Seja qual for a escolha, o mais importante é que a estratégia sirva para preservar a integridade emocional e não para manter a esperança de que o narcisista mude. A distância, seja ela total ou controlada, é uma ferramenta de sobrevivência, não uma punição.
Quer se escolha "No Contact" ou "Low Contact", a maior dificuldade não é apenas logística, mas emocional. O narcisista, ao sentir que perde o controlo, pode recorrer a táticas como o hoovering: tentativas súbitas de reaproximação usando promessas, dramatizações ou falsas crises. No caso do "No Contact", isto pode surgir como e-mails inesperados, mensagens através de amigos em comum, ou até aparições aparentemente por acaso em locais que a vítima frequenta. Já no "Low Contact", a manipulação tende a infiltrar-se nas conversas inevitáveis, com comentários que visam despertar culpa, raiva ou nostalgia. Quem implementa estas estratégias precisa de estar preparado para resistir a estas investidas. É útil lembrar-se de que o objetivo do narcisista não é reconciliação genuína, mas reativação do controlo.
Ana tinha 42 anos quando percebeu que a relação com a sua mãe, Teresa, não era simplesmente difícil, era profundamente desgastante e emocionalmente perigosa. Durante anos, Ana tinha racionalizado o comportamento da mãe como sendo difícil de lidar ou muito exigente, mas sem reconhecer que estava perante padrões consistentes de abuso emocional ligados a traços narcisistas.
Desde pequena, a vida de Ana tinha sido marcada por uma constante vigilância emocional. Se tirasse uma boa nota na escola, Teresa encontrava forma de desvalorizar: "Se tivesses estudado mais, talvez tivesses conseguido ainda melhor. Mas pronto, não é mau". Se Ana expressava tristeza ou cansaço, ouvia: "Estás a dramatizar. Tanta gente com problemas piores e tu aqui a fazer-te de vítima". Na vida adulta, as dinâmicas não mudaram, apenas se sofisticaram. Teresa ligava várias vezes por dia, muitas vezes apenas para criticar escolhas da filha: o emprego, as amizades, a forma como criava os filhos. Qualquer tentativa de impor limites resultava numa explosão emocional ou num silencioso e gélido tratamento do silêncio (silent treatment) que podia durar dias. No fundo, Ana sentia-se como uma marioneta cuja vida estava constantemente a ser puxada por cordas invisíveis.
O momento decisivo aconteceu numa reunião familiar. Ana tinha decidido que não poderia emprestar mais dinheiro à mãe, após anos de pequenos empréstimos que nunca eram devolvidos. Quando comunicou a sua decisão, Teresa reagiu com fúria: "Tu és igual ao teu pai, ingrata e fria! Depois não venhas chorar quando ficares sozinha!". A sala encheu-se de um silêncio pesado. Ana percebeu que nada do que dissesse iria ser ouvido. Essa noite, chorou até tarde, sentindo uma mistura de culpa e libertação. No dia seguinte, começou a pesquisar sobre "No Contac"t (sem contacto) e "Low Contact" (contacto reduzido). Percebeu que ambas as estratégias eram usadas para proteger a saúde mental quando a relação com uma pessoa narcisista se tornava prejudicial, mas tinham implicações e dificuldades diferentes.
Ana decidiu tentar primeiro o "Low Contact". Reduziu o número de chamadas atendidas, limitou visitas a encontros breves e em locais neutros, e passou a responder a mensagens apenas com a informação essencial. Descobriu que, ao criar estas barreiras, ganhava espaço mental para respirar. No entanto, Teresa não aceitava a perda de controlo. Passou a ligar para familiares em comum, dizendo que Ana estava a afastar-se da família e a cair sob influência de más companhias. Tentava criar culpa e isolar Ana socialmente, uma estratégia típica para forçar a vítima a voltar à dinâmica anterior. Apesar disso, o "Low Contact" permitiu a Ana testar os seus limites, aprender a lidar com as manipulações e avaliar até que ponto conseguiria manter algum tipo de relação minimamente funcional sem se sentir emocionalmente destruída.
Com o passar dos meses, Ana percebeu que cada pequena brecha de contacto se tornava uma oportunidade para Teresa reiniciar o ciclo de abuso. Mensagens passivo-agressivas, exigências disfarçadas de conselhos e até visitas surpresa mostravam que o "Low Contact" não estava a proteger Ana de forma suficiente. Após uma sessão particularmente difícil, em que Teresa apareceu inesperadamente à porta do trabalho para falar urgentemente e acabou por humilhar Ana em frente a colegas, a decisão tornou-se inevitável: era hora de cortar totalmente o contacto. O "No Contact" foi implementado com medidas concretas através do bloqueio de números de telefone e redes sociais, do envio de uma carta curta e objetiva a explicar que não iria manter contacto por tempo indeterminado para preservar a sua saúde mental, da informação de familiares de confiança para não servirem de intermediários, da preparação para o contra-ataque emocional e tentativas de violação do limite que sabia que iriam surgir.
Como previsto nos primeiros meses, Teresa tentou de tudo para quebrar o "No Contact" enviando cartas acusatórias, que Ana decidiu não abrir, pedindo a terceiros que passassem recados, tentando criar culpa, e inventando histórias sobre Ana para a comunidade local.
Foi um período de grande ansiedade. A cada tentativa de contacto, Ana sentia o impulso de responder e corrigir a narrativa, mas lembrou-se do que aprendera: responder seria reentrar no jogo. A prática de não personalizar e não justificar (elementos do método DEEP, que Ana já vinha aplicando) foi essencial para resistir.
Ao longo do primeiro ano de "No Contact", Ana começou a sentir uma mudança profunda. O silêncio, que antes parecia ameaçador, passou a ser um espaço de paz. Voltou a dedicar-se a hobbies esquecidos, aprofundou amizades genuínas e, pela primeira vez, sentiu que a sua identidade não estava constantemente sob ataque. O mais difícil não foi cortar o contacto, mas sim manter a decisão perante a pressão social e familiar. Houve momentos de solidão intensa, especialmente em datas festivas, mas Ana aprendeu a criar novas tradições com pessoas que respeitavam os seus limites.
Reconhecer manipulação em tempo real é uma das habilidades mais desafiantes, e mais libertadoras, para quem lida com um indivíduo com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN). Trata-se de estar consciente, no momento exato em que a interação ocorre, das estratégias psicológicas e emocionais que o outro está a empregar para controlar, intimidar ou confundir. A dificuldade está no facto de estas técnicas serem muitas vezes subtis, envoltas em elogios, justificações plausíveis ou supostas brincadeiras inocentes, o que exige treino para perceber o que realmente se está a passar.
Uma das chaves para este reconhecimento é compreender que a manipulação raramente se apresenta como um ataque frontal. Pelo contrário, surge mascarada como preocupação genuína ("Eu só quero o melhor para ti"), como lógica irrefutável ("Se pensares bem, vais ver que não tens razão para estar chateado") ou como obrigação moral ("Se realmente te importasses, fazias isto por mim"). Estas frases não são, por si só, evidência de manipulação. O que as denuncia é o padrão e o contexto. Num relacionamento abusivo, surgem de forma recorrente e com a função clara de minar a autonomia do outro.
Imagine-se que Luís decidiu não emprestar mais dinheiro ao amigo Rui, após várias experiências negativas no passado. Numa sexta-feira à noite, Rui envia-lhe uma mensagem: "Eu sei que estás numa fase de controlar melhor as tuas finanças e respeito isso. Mas é só um valor pequeno, e sabes que se eu não pagar a renda este mês, posso acabar na rua. Tu sempre foste a única pessoa em quem eu podia confiar nestes momentos."
À primeira vista, parece um pedido genuíno e um apelo à amizade. No entanto, ao analisar com atenção, percebe-se que Rui está a apelar à culpa e ao sentido de responsabilidade de Luís para o levar a quebrar um limite previamente estabelecido. Esta combinação de dramatização das consequências com elogios estratégicos é um padrão clássico de manipulação emocional.
Outro ponto fundamental para reconhecer manipulação em tempo real é prestar atenção às reações internas imediatas. Muitas vítimas descrevem sentir, no instante da interação, um aperto no estômago, uma súbita sensação de confusão ou até culpa inexplicável. Estes sinais fisiológicos são pistas valiosas: o corpo muitas vezes deteta incoerências emocionais antes de a mente as processar. Ao treinar-se para pausar e refletir nesses momentos, é possível ganhar segundos preciosos para avaliar a situação em vez de reagir automaticamente.
Entre as estratégias mais comuns de manipulação que importa reconhecer em tempo real destacam-se:
Gaslighting imediato: o manipulador nega algo que disse ou realizou, distorcendo a perceção da realidade no momento presente.
Mudança súbita de assunto: frequentemente utilizada para evitar assumir responsabilidades, desviando a conversa quando o tema expõe incoerências ou falta de argumentos lógicos.
Elogio condicionado: um aparente reconhecimento positivo, mas dependente de a vítima agir segundo os interesses do manipulador ("És tão inteligente quando segues o meu conselho").
Criação de urgência artificial: pressão para uma decisão imediata, bloqueando a reflexão crítica ("Se não responderes agora, a oportunidade perde-se").
Inversão instantânea de culpa: qualquer objeção ou frustração da vítima é transformada num ataque contra o próprio manipulador ("Não posso acreditar que me acuses de algo assim, depois de tudo o que faço por ti").
Aprender a reconhecer estas manobras enquanto acontecem requer prática. Um exercício útil é, após cada interação com o manipulador, escrever rapidamente o que foi dito, o tom, a sequência dos acontecimentos e as emoções sentidas. Ao reler estas notas, começam a emergir padrões. Com o tempo, a identificação deixa de ser retrospetiva e passa a ser quase imediata, permitindo à vítima manter-se centrada e responder de forma mais estratégica.
Também é essencial compreender que o objetivo não é apanhar o manipulador no ato para o confrontar de imediato, uma vez que tal pode aumentar o risco de retaliação. O reconhecimento em tempo real serve sobretudo para ativar defesas internas, manter limites e, se necessário, adiar a resposta até que se possa agir de forma segura e ponderada.
Edgar nunca tinha pensado muito sobre manipulação. Achava que essas coisas eram mais comuns em filmes ou em relações muito tóxicas que ele nunca imaginou viver. Mas Irina entrou na sua vida com uma suavidade quase cinematográfica, envolta num charme natural, um sorriso fácil e um olhar que transmitia compreensão. Nos primeiros meses, parecia que o entendia melhor do que ele próprio. Era atenta, cuidadosa e sempre pronta para ouvir. E, acima de tudo, fazia-o sentir-se especial, como se tivesse encontrado alguém que o valorizava de forma única.
Com o tempo, no entanto, Edgar começou a sentir algo estranho, difícil de descrever. Pequenos episódios que, isolados, não pareciam graves, mas que, juntos, formavam um padrão inquietante. O que ele não sabia, naquela altura, era que Irina possuía um talento refinado para manipular as emoções dos outros em tempo real. E fazia-o com uma mestria tão subtil que, por muito tempo, ele não percebeu que estava a ser controlado.
O primeiro momento em que Edgar se deu conta de algo fora do lugar aconteceu numa noite de sábado. Tinham combinado jantar em casa dele, mas ele estava exausto após uma semana de trabalho intensa e decidiu cancelar. Quando ligou para lhe explicar, Irina manteve um tom calmo e doce. Disse que entendia, que ele precisava descansar. Mas, no final da chamada, acrescentou: "Só fico a pensar que, se realmente estivesses tão interessado como dizes, talvez arranjasses forças para me ver... mas pronto, percebo que cada um tem as suas prioridades." A frase ficou a ecoar na mente de Edgar. Não era propriamente uma crítica direta, mas o peso implícito era claro: estava a desapontá-la. E, de repente, ele sentiu culpa, quase sem perceber porquê.
Esse padrão repetiu-se em várias ocasiões. Irina raramente fazia exigências frontais. Em vez disso, mascarava-as de preocupação genuína ou de lógica aparentemente irrefutável. "Eu só quero o melhor para ti" tornou-se uma das frases mais recorrentes, normalmente seguida de uma sugestão que, curiosamente, coincidia com os interesses dela. Quando Edgar hesitava, surgia a lógica implacável: "Se pensares bem, vais ver que não tens razão para estar chateado." E, por vezes, apelava à moralidade: "Se realmente te importasses, fazias isto por mim." O problema não estava nas frases em si, mas no contexto, repetiam-se em momentos estratégicos, sempre que ele tentava estabelecer um limite.
Uma vez, Edgar disse-lhe que não podia ir a um evento beneficente que ela estava a organizar, pois já tinha planeado passar o fim de semana com a família. A reação dela foi quase imediata: "Eu sei que a tua família é importante, e respeito isso. Mas este evento é para uma causa que salva vidas. Não consigo acreditar que, podendo ajudar, escolhas simplesmente não aparecer." A frase fez com que Edgar se sentisse egoísta, mesmo sabendo que não havia nada de errado em manter o seu plano inicial.
Irina sabia exatamente como criar urgência artificial. Se queria que ele tomasse uma decisão rápida, recorria a frases como "Se não responderes agora, a oportunidade perde-se." Era uma forma eficaz de o impedir de pensar com clareza. Noutros momentos, aplicava o gaslighting de imediato, negando algo que tinha acabado de dizer ou reinterpretando a conversa para o confundir. Houve um dia em que Edgar lhe recordou uma promessa que ela tinha feito e não cumpriu. Ela sorriu, como se estivesse a lidar com uma criança confusa, e disse: "Nunca disse isso, amor. Acho que estás a lembrar-te mal."
O que tornava a manipulação ainda mais difícil de reconhecer era a mistura calculada de críticas veladas com elogios condicionados. Quando ele seguia o que ela queria, ouvia frases como "És tão inteligente quando segues o meu conselho." Mas se discordava, o elogio desaparecia e era substituído por um silêncio frio ou por um comentário que o fazia sentir incompetente.
Edgar começou a notar que, nas conversas com Irina, surgia frequentemente uma sensação física: um aperto no estômago, um calor súbito no rosto ou uma confusão mental estranha. Eram sinais subtis, mas constantes, que ele não sabia interpretar. Só mais tarde compreenderia que o corpo reagia antes da mente, captando incoerências e ameaças emocionais que ainda não tinham sido processadas racionalmente.
Certa noite, após mais uma discussão em que acabou a pedir desculpa sem ter a certeza de que tinha feito algo errado, Edgar decidiu escrever o que se tinha passado. Registou as frases dela, o tom, a sequência e o que sentiu. Ao reler, percebeu um padrão: sempre que tentava dizer não a algo, ela respondia com uma mistura de dramatização, inversão de culpa e um apelo ao afeto. Começou a fazer este exercício regularmente. O resultado foi surpreendente: a clareza aumentou e as incoerências tornaram-se mais óbvias.
Mas reconhecer a manipulação em tempo real era outra história. Mesmo com esta consciência crescente, durante as interações, Edgar sentia-se arrastado pelo carisma e pela confiança de Irina. Confrontá-la diretamente parecia perigoso. Cada vez que ousava questionar o que ela dizia, a resposta era imediata: "Não posso acreditar que me acuses de algo assim, depois de tudo o que faço por ti." A inversão instantânea de culpa era tão eficaz que o deixava a sentir-se ingrato e injusto.
A gota de água chegou numa tarde de domingo. Estavam num café quando Irina lhe pediu que cancelasse uma viagem de trabalho importante para a acompanhar num compromisso social. Ele explicou que não podia, que aquela viagem era crucial para um projeto no qual vinha a trabalhar há meses. Ela sorriu, pousou a mão sobre a dele e disse: "Eu entendo... só me pergunto se, quando eu precisar mesmo de ti, vais estar lá. Porque, para mim, um relacionamento é estar presente nos momentos que importam." O tom era suave, mas o significado estava carregado de condicionamento. Edgar sentiu o familiar aperto no estômago. Desta vez, respirou fundo e, em vez de responder, ficou em silêncio, observando a expressão dela. E foi nesse instante que percebeu: estava a ver a manipulação acontecer, ali, diante dos seus olhos.
Ele não a confrontou. Limitou-se a manter a decisão, sem dar espaço para mais pressão. Quando regressou a casa, escreveu o episódio com todos os detalhes. Não foi uma vitória absoluta, mas foi a primeira vez que se manteve firme sem ceder à urgência ou à culpa que ela tentava impor. A partir daí, começou a usar este reconhecimento em tempo real como um escudo. Não se tratava de "apanhar" Irina no ato para a expor, mas sim de preservar a própria autonomia e manter os limites, ganhando tempo para decidir quando e como responder.
Com o passar dos meses, Edgar percebeu que a manipulação não desaparecia, mas a sua vulnerabilidade a ela diminuía. Reconhecer, no exato momento, as manobras emocionais de Irina não era apenas um exercício de atenção, era um ato de libertação. E, lentamente, aprendeu que a clareza e o autocontrolo eram as suas melhores armas contra aquele jogo silencioso que ela jogava tão bem.
Sair de um relacionamento com uma pessoa com Perturbação de Personalidade Narcisista (PPN), ou aprender a lidar com essa realidade, exige mais do que simples força de vontade. É um processo que coloca à prova o corpo, a mente e as emoções. Muitas vítimas relatam que, no início, acreditavam conseguir enfrentar a situação sozinhas, apenas com força interior e autodisciplina. Porém, a solidão emocional e a falta de validação externa funcionam como terreno fértil para que as dúvidas, a autoculpabilização e até o isolamento, muitas vezes impostos pelo próprio narcisista, se instalem. É aqui que a construção de um sistema de apoio sólido se torna vital.
Um sistema de apoio não é somente um conjunto de pessoas para ouvir desabafos, é uma rede estratégica de recursos emocionais, práticos e, por vezes, até legais, que ajudam a manter a clareza mental, a segurança e o equilíbrio. Essa rede pode incluir amigos de confiança, familiares empáticos, terapeutas especializados em abuso psicológico, grupos de apoio presenciais ou online, e até instituições que oferecem aconselhamento jurídico ou medidas de proteção.
O isolamento é uma das ferramentas mais eficazes que o narcisista utiliza para manter o controlo. Ele pode ser explícito, como proibir ou criticar as relações da vítima, ou subtil, como desvalorizar continuamente as amizades, insinuar que "ninguém gosta de ti" ou que "as pessoas falam mal de ti pelas costas". Aos poucos, a vítima começa a evitar o contacto com os outros, seja por vergonha, medo de julgamento ou simples desgaste emocional.
Quebrar este ciclo significa reabrir canais de comunicação, mesmo que inicialmente pareçam frágeis ou distantes. Um telefonema para um amigo de infância, uma mensagem para um colega de trabalho simpático, ou a inscrição num fórum de apoio online podem ser o primeiro passo para recuperar a sensação de pertença.
Um erro comum é depender exclusivamente de uma única pessoa para todo o suporte emocional. Isso coloca um peso excessivo nessa relação e pode criar vulnerabilidades, caso essa pessoa não esteja sempre disponível. O ideal é construir uma rede diversificada, com diferentes funções:
Suporte emocional: Amigos ou familiares que ouvem sem julgar e oferecem validação.
Orientação profissional: Psicólogos ou terapeutas especializados em abuso narcisista.
Apoio prático: Pessoas que ajudam com tarefas concretas como cuidar dos filhos, acompanhar a consultas, ajudar em mudanças.
Proteção e aconselhamento legal: Advogados, serviços sociais.
Comunidades de pares: Grupos de apoio presenciais ou online, onde há partilha de experiências semelhantes.
Muitas vítimas de abuso narcisista sofrem com a chamada gaslighting prolongada, que distorce a perceção da realidade. Um sistema de apoio robusto atua como espelho saudável: confirma que os abusos realmente aconteceram, que não são normais, e que a vítima tem direito a sentir-se magoada e a procurar proteção.
Por exemplo, imagine que uma pessoa está prestes a voltar atrás na decisão de cortar contacto com o narcisista porque este enviou uma mensagem nostálgica ou de arrependimento. Uma conversa com um amigo informado ou com um terapeuta pode ajudar a recordar o padrão de manipulação e impedir que a vítima seja sugada ("hoovering") novamente para o ciclo abusivo.
Um sistema de apoio não se constrói apenas num momento de crise, precisa de ser cultivado. Isso significa manter o contacto regular, mesmo quando a vida parece mais tranquila. Pequenos gestos, como enviar uma mensagem, partilhar um café ou participar em reuniões de grupo, mantêm os laços fortes e prontos para oferecer suporte quando necessário.
Também é importante que a vítima aprenda a equilibrar a reciprocidade: embora possa estar a atravessar um período mais carente, também deve, na medida do possível, estar presente para os outros. Esse equilíbrio fortalece os laços e reduz a sensação de ser um peso para a rede.
Marta, de 38 anos, viveu durante doze anos com um parceiro narcisista que, subtil e progressivamente, a isolou do seu círculo social e familiar. No início da relação, ele mostrava-se encantador e atencioso, incentivando-a a estar com os amigos e a manter contacto com a família. Contudo, à medida que o tempo passava, começaram a surgir comentários depreciativos sobre essas pessoas: "Eles têm inveja de nós", "Não percebem a nossa relação", "Estão sempre a encher-te a cabeça com ideias erradas". A situação evoluiu até que as visitas e encontros começaram a rarear.
O isolamento não se deu de forma abrupta, mas sim por um processo lento e calculado. Sempre que Marta planeava sair com uma amiga, surgia um problema urgente em casa, ou o parceiro ficava subitamente adoentado, necessitando da sua presença. Por vezes, fazia cenas de ciúmes ou acusava-a de não se importar com ele. Estas situações geravam culpa e Marta acabava por cancelar os encontros. Ao longo dos anos, ela foi reduzindo as interações sociais, até se aperceber que já não recebia convites, não porque as pessoas não se importassem, mas porque já tinham desistido de tentar.
Quando finalmente decidiu pôr fim à relação, Marta deparou-se com uma realidade dura: não tinha um círculo próximo de apoio. Alguns familiares ainda estavam presentes, mas havia um distanciamento emocional causado por anos de ausência. Amigos de longa data tinham seguido as suas vidas, construído famílias e novas rotinas. A solidão que sentia não era apenas física, mas também emocional, uma sensação de ter perdido não só as relações, mas também a capacidade de confiar.
Nos primeiros meses após a separação, Marta tentou resolver tudo sozinha. Acreditava que pedir ajuda seria sinal de fraqueza e que ninguém compreenderia o que tinha vivido. Esta postura, comum em sobreviventes de abuso narcisista, prolongou o sofrimento e dificultou a recuperação. Só após participar, por acaso, num grupo online de apoio a vítimas de relacionamentos abusivos é que percebeu que não estava sozinha. As histórias de outras pessoas ressoavam profundamente nela, dando-lhe um sentido de validação que não sentia há anos.
A partir desse ponto, Marta decidiu reconstruir a sua rede de apoio de forma consciente e gradual. Começou por restabelecer contacto com uma prima com quem tinha perdido ligação, explicando de forma honesta que tinha passado por uma relação abusiva e que precisava de se reaproximar. A prima recebeu-a com empatia, mas também com alguma cautela, afinal, anos de afastamento não se apagam de um dia para o outro. Marta entendeu que, para reconstruir pontes, teria de respeitar o ritmo e os limites de cada pessoa.
Adicionalmente à família, procurou terapia com uma psicóloga especializada em trauma relacional. Este apoio foi fundamental para identificar padrões internos que a faziam evitar a vulnerabilidade e para aprender a confiar gradualmente em novas pessoas. A psicóloga sugeriu-lhe que diversificasse as fontes de apoio, de modo a não depender exclusivamente de um ou dois contactos.
Seguindo esse conselho, Marta inscreveu-se num curso de culinária comunitário. A princípio, limitava-se a observar e a participar minimamente nas conversas. Com o tempo, percebeu que estas interações informais eram uma forma segura de praticar a socialização sem a pressão de criar laços imediatos. Conheceu Ana, uma colega de curso com quem começou a tomar café ocasionalmente. Esta amizade, construída de forma lenta e natural, deu-lhe confiança para se abrir a novas conexões.
No grupo online, Marta também começou a interagir mais ativamente, comentando as publicações de outros membros e oferecendo palavras de encorajamento. Ao perceber que podia ajudar outras pessoas, sentiu um fortalecimento interno: a sua experiência dolorosa podia ter um propósito positivo.
Ao fim de dois anos, Marta já tinha uma rede diversificada: familiares reaproximados, novas amizades, colegas de atividades e um grupo de apoio online sólido. Mais importante ainda, tinha aprendido a reconhecer sinais de relacionamentos saudáveis e a estabelecer limites claros. Compreendeu que um sistema de apoio não é apenas um conjunto de pessoas, mas uma teia de conexões que se reforçam mutuamente, proporcionando segurança emocional e práticas concretas de ajuda.
Este processo, no entanto, não foi linear. Houve tentativas de contacto com pessoas que não resultaram, momentos de frustração por se sentir ainda isolada e recaídas emocionais em que ponderou afastar-se novamente. O que a manteve no caminho foi a consciência, adquirida em terapia, de que o isolamento é terreno fértil para a manipulação narcisista, enquanto uma rede de apoio saudável atua como barreira protetora.
Hoje, Marta descreve o seu sistema de apoio como "o chão que me sustenta quando sinto que vou cair". Ainda enfrenta desafios e momentos de vulnerabilidade, mas sabe que tem a quem recorrer sem medo de julgamento.
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